Sustentabilidade e dever de diligência
JOTA.Info 2025-04-23
Na coluna da semana passada, tratei do recente julgamento do STF que possibilita a punição de empresas que adquirem, de forma reprovável, produtos relacionados ao trabalho escravo[1]. Esse é um dentre os inúmeros temas que evidenciam a importância das discussões atuais sobre a alocação de responsabilidades nas cadeias contratuais.
A recente Diretiva 2024/1760 da União Europeia[2] representa uma importante iniciativa para disciplinar a referida alocação de responsabilidades, uma vez que passa a exigir a due diligence corporativa em questões de sustentabilidade, aqui vista em um sentido mais amplo, de forma a abarcar igualmente a proteção dos direitos humanos. O objetivo da norma é fomentar o comportamento sustentável e responsável nas operações das empresas, incluindo as relações inerentes às cadeias globais de valor.
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Na prática, a Diretiva estabelece um dever de devida diligência corporativa (corporate due diligence duty) para as grandes empresas – com mais de mil empregados e faturamento acima de € 450 milhões – cujo propósito é identificar e resolver potenciais e atuais impactos adversos, sobre direitos humanos e meio ambiente, das operações da companhia, aí incluídas suas subsidiárias e também seus parceiros comerciais no contexto das cadeias globais de valor.
Além disso, a Diretiva prevê a obrigação de que grandes empresas adotem e tornem efetivos os melhores esforços para encontrarem e implementarem planos de transição para a mitigação dos efeitos da mudança climática, em total alinhamento com os objetivos do Acordo de Paris.
Diante da responsabilidade em relação a fornecedores, conclui-se que, além das empresas com sede na Europa, das empresas europeias com operações no Brasil ou das empresas brasileiras com receitas na União Europeia, a Diretiva incide, ainda que indiretamente, a todas as empresas brasileiras que sejam fornecedoras de empresas europeias.
Apesar de ser bem pormenorizada, a Diretiva tem como um de seus núcleos a definição da extensão do dever de diligência, assim descrito em seu art. 5º.:
Art. 5º. Dever de diligência Os Estados-Membros asseguram que as empresas exerçam, com base no risco, o dever de diligência em matéria de direitos humanos e de ambiente, de acordo com o estabelecido nos artigos 7º a 16º (“dever de diligência”), realizando as seguintes ações:
a) Integrando o dever de diligência nas suas políticas e nos seus sistemas de gestão dos riscos, em conformidade com o artigo 7º;
b) Identificando e avaliando os efeitos negativos reais ou potenciais, em conformidade com o artigo 8º, e, se necessário, priorizando os efeitos negativos e potenciais em conformidade com o artigo 9º;
c) Prevenindo e atenuando os efeitos negativos potenciais, e fazendo cessar os efeitos negativos reais e minimizando a sua extensão, em conformidade com os artigos 10º e 11º;
d) Concedendo reparação pelos efeitos negativos reais, em conformidade com o artigo 12º;
e) Desenvolvendo uma colaboração construtiva com as partes interessadas, em conformidade com o artigo 13º;
f) Estabelecendo e mantendo um mecanismo de notificação e um procedimento de reclamação, em conformidade com o artigo 14º;
g) Monitorizando a eficácia da sua política e das suas medidas em matéria de dever de diligência, em conformidade com o artigo 15º;
h) Comunicando publicamente informações sobre o dever de diligência, em conformidade com o artigo 16º”.
Como se pode observar, o devido dever diligência está conectado à gestão de riscos, tema que também já tive oportunidade de abordar anteriormente[3]. Além das iniciativas individuais, as empresas terão que designar internamente um “representante autorizado”, que será responsável pela implementação da Diretiva, por responder aos órgãos fiscalizadores dos Estados-Membros e por colaborar com estes.
Descumprimentos do devido dever de diligência sujeitarão as empresas a multas e indenizações, valendo ressaltar que o art. 29, que trata da responsabilidade civil das empresas e do direito à compensação integral, deixa claro que se trata de responsabilidade subjetiva, em que a empresa responde pelo seu dolo ou negligência.
Não é sem razão que, em relação à cadeia produtiva, o artigo traz a ressalva de que “[a] empresa não pode ser considerada responsável se os danos tiverem sido causados apenas pelos seus parceiros comerciais na cadeia de atividades da empresa.”
Tal preocupação conecta-se diretamente com o Considerando 19 da Diretiva, ao esclarecer que a obrigação das empresas em relação a seus parceiros comerciais é sempre de meio, partindo da premissa de que “[a] empresa deverá tomar medidas adequadas que permitam alcançar os objetivos do dever de diligência, combatendo eficazmente os efeitos negativos de forma proporcionada face ao grau de gravidade e à probabilidade do efeito negativo. Haverá que ter em conta as circunstâncias do caso concreto, a natureza e a extensão do efeito negativo e os fatores de risco pertinentes, inclusive, no referente à prevenção e minimização dos efeitos negativos, as especificidades das operações comerciais da empresa e da sua cadeia de atividades, o setor ou a área geográfica em que os seus parceiros comerciais operam, o poder da empresa para influenciar os seus parceiros comerciais diretos e indiretos e a possibilidade de a empresa aumentar o seu poder de influência”.
O art. 29 ainda prevê, sem seu item (5), que “[a] responsabilidade civil de uma empresa por danos decorrente da presente disposição não prejudica a responsabilidade civil das suas filiais ou de quaisquer parceiros comerciais diretos e indiretos na cadeia de atividades da empresa” e que “[s]e os danos tiverem sido causados conjuntamente pela empresa e pela sua filial ou parceiro comercial, direto ou indireto, ambos são solidariamente responsáveis, sem prejuízo das disposições de direito nacional relativas às condições da responsabilidade solidária e ao direito de recurso.”
Como se vê, a Diretiva europeia é uma importante medida para evitar o fenômeno da “irresponsabilidade organizada”, por meio do qual as empresas se aproveitam de diversas estratégias de desverticalização, incluindo a terceirização, não apenas para a racionalização e a maior eficiência de seus processos produtivos, mas também para se furtarem das responsabilidades devidas.
Como já tive oportunidade de defender em outra oportunidade[4], tais estratégias afrontam o princípio do necessário equilíbrio entre poder e responsabilidade, o qual, além das justificativas éticas e jurídicas, apresenta igualmente importante justificativa econômica, já que, sem as devidas responsabilidades, os agentes econômicos têm incentivos para a assunção excessiva de riscos, sem os devidos cuidados e com grande probabilidade de gerar externalidades negativas e danos para terceiros.
Não é sem razão que o tema tem sido discutido em vários países, incluindo o Brasil, onde o PL 572/2022, ora em trâmite no Congresso Nacional[5], também procura implementar a responsabilidade dos agentes econômicos pela sustentabilidade ao longo da cadeia produtiva, como se verifica pelo seu art. 7º.:
Art. 7º. As empresas deverão realizar processo de devida diligência para identificar, prevenir, monitorar e reparar violações de direitos humanos, incluindo direitos sociais, trabalhistas e ambientais, devendo, no mínimo:
I – Abranger aquelas que a empresa pode causar ou para as quais possa contribuir, por meio de suas próprias atividades, ou que estejam diretamente relacionadas às suas atividades e operações, produtos ou serviços por meio de suas relações comerciais;
II – Ser contínuo, reconhecendo que os riscos de violação aos direitos humanos podem mudar com o passar do tempo, conforme se desenvolvem suas atividades e operações e o contexto operacional da empresa”.
O texto deixa claro que a responsabilidade empresarial pela sustentabilidade – prevendo, ao lado do meio ambiente e dos direitos humanos, igualmente os direitos trabalhistas – exige compromissos das empresas que se estendem igualmente às suas relações comerciais.
Assim, por mais que possam existir controvérsias em relação ao tema – inclusive no que diz respeito ao porte das empresas que deverão se sujeitar a tal dever, considerando os custos respectivos, e como implementar tais medidas de forma proporcional e atenta à segurança jurídica – fato é que é importante avançar na discussão, especialmente quando se trata de assuntos que, como a tutela do meio ambiente e a dos direitos humanos, não podem mais aguardar.
[1] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/sancoes-por-aquisicoes-de-produtos-relacionados-ao-trabalho-escravo
[2] https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/HTML/?uri=OJ:L_202401760
[3] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/dever-de-diligencia
[4] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/voce-nao-pode-terceirizar-responsabilidades
[5] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2258247&filename=Avulso%20PL%20572/2022#:~:text=Cria%20a%20lei%20marco%20nacional,de%20políticas%20públicas%20no%20tema.&text=(*)%20Atualizado%20em%2013%2F4,em%20virtude%20de%20novo%20despacho.&text=e%20HELDER%20SALOMÃO)-,Cria%20a%20lei%20marco%20nacional%20sobre%20Direitos%20Humanos%20e%20Empresas,de%20políticas%20públicas%20no%20tema.