Pejotização: a erosão silenciosa dos cofres públicos e dos direitos trabalhistas
JOTA.Info 2025-05-06
A pejotização, fenômeno caracterizado pela contratação de trabalhadores por meio de pessoas jurídicas em substituição ao vínculo empregatício formal, ganhou impulso significativo após a reforma trabalhista de 2017 e recentes decisões do STF.
Na perspectiva crítica de E.P. Thompson, este fenômeno representa uma transformação das relações de trabalho onde novas formas de exploração são legitimadas por estruturas jurídicas aparentemente neutras. Conforme Delgado, “a pejotização constitui fraude trabalhista perversa, por meio da qual o empregador exige que o trabalhador constitua pessoa jurídica como condição para sua admissão ou permanência no emprego”, representando uma fraude aos direitos sociais fundamentais dos trabalhadores.
O estudo elaborado por Marconi e Brancher revela que entre 2017 e 2022, o número de trabalhadores por conta própria classificados como MEIs aumentou 57%, enquanto os classificados como empresas do Simples Nacional cresceram 97%. Esta expansão reflete mais a institucionalização de relações de trabalho precárias do que um empreendedorismo genuíno. Conforme argumenta Maior, “a pejotização serve como mecanismo de rebaixamento do valor do trabalho, pela via da redução dos custos e da eliminação de direitos”.
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A validação da pejotização pelo STF, baseada nos princípios da liberdade econômica e autonomia contratual, privilegia a formalidade contratual em detrimento da realidade fática. Contudo, como sustenta Pereira, “há uma subordinação estrutural que se verifica quando o trabalhador se insere na dinâmica do tomador de serviços, independentemente de receber ordens diretas”. Este fenômeno colide com o princípio constitucional da valorização do trabalho humano, constituindo mutação constitucional não autorizada.
Comparativo fiscal e trabalhista: regime CLT versus pejotização
Fonte: elaborado com base em Marconi e Brancher (2023)
As repercussões fiscais da pejotização são alarmantes. O estudo de Marconi e Brancher estima que se os trabalhadores por conta própria surgidos após a reforma trabalhista tivessem sido contratados como celetistas, a arrecadação tributária teria sido pelo menos R$ 89 bilhões superior (caso em empresas do Simples Nacional), ou R$ 144 bilhões (caso em empresas do Lucro Real/Presumido) entre 2018-2023.
A arrecadação média por trabalhador pejotizado é 95% inferior à do trabalhador celetista, configurando o que Afonso et al. identificam como “erosão da base tributária”.
A projeção de que 50% da força de trabalho com carteira assinada passe a atuar como conta própria formal resultaria em perda arrecadatória anual de R$ 384 bilhões de reais (16,6% da arrecadação federal de 2023). Ademais, mais de R$ 15 bilhões deixaram de ser recolhidos ao FGTS desde 2018. Como observa Gomes, “o FGTS constitui direito fundamental do trabalhador e fundo público essencial para políticas habitacionais e de saneamento”, cuja deterioração afeta tanto a proteção individual quanto políticas públicas essenciais.
A pejotização atinge primordialmente serviços que exigem maior qualificação, como saúde, comunicação, financeiros e educação, contrariando a lógica da terceirização que teoricamente se destinaria a atividades-meio. Como adverte Dutra, esta prática “representa a descaracterização do próprio conceito de empresa como organização dos fatores de produção, fragmentando o processo produtivo”.
No âmbito previdenciário, trabalhadores pejotizados mantêm direito a benefícios, ainda que com contribuições substancialmente reduzidas. Segundo Gentil, “a sustentabilidade previdenciária depende da formalização das relações de trabalho e da qualidade dos postos, sendo o rebaixamento da proteção social fator que compromete o equilíbrio financeiro do sistema”.
A validação judicial da pejotização representa recuo significativo do princípio da primazia da realidade, pedra angular do Direito do Trabalho. Esta inversão hermenêutica, como nota Franco Filho, “subverte a lógica protetiva do Direito do Trabalho, desconsidera a desigualdade material entre as partes e a natureza cogente das normas trabalhistas”.
Na perspectiva thompsoniana, o fenômeno deve ser compreendido historicamente como reconfiguração das relações de classe. O trabalhador internaliza a ideologia do empreendedorismo, assumindo riscos antes socializados. Esta mudança na autopercepção do sujeito fragmenta a consciência de classe e dificulta mobilizações coletivas por direitos.
O esvaziamento do princípio da primazia da realidade pelas decisões do STF constitui marco na erosão do Direito do Trabalho. Ao privilegiar a forma contratual sobre a materialidade das relações laborais, o Judiciário inverte a lógica protetiva deste ramo do Direito, articulando-se a um projeto mais amplo de flexibilização e diminuição do custo do trabalho.
A fragmentação do controle fiscal decorrente da multiplicação de pequenas entidades jurídicas dificulta não apenas a fiscalização tributária, mas também o cumprimento de normas sanitárias, ambientais e de segurança, ampliando zonas de sombra regulatória na economia.
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A erosão da base fiscal compromete diretamente a capacidade do Estado de implementar políticas públicas redistributivas. O subfinanciamento de áreas como saúde, educação e assistência social intensifica-se com a perda arrecadatória, aprofundando desigualdades sociais e criando condições para a aceitação de trabalhos cada vez mais precários.
O fenômeno da pejotização revela-se como manifestação de um processo mais amplo de mercantilização do trabalho. A transformação do trabalhador em “empresário de si mesmo” não representa emancipação, mas sofisticação dos mecanismos de exploração. Esta transformação deve ser compreendida não como resultado de forças econômicas abstratas, mas como produto de escolhas políticas concretas, passíveis de contestação e reversão.
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