Concorrência e desenvolvimento: equilíbrio que não pode ser perdido
JOTA.Info 2025-05-30
Está em discussão no governo um projeto de lei que provavelmente proporá mudanças significativas na regulação da concorrência no Brasil. Ele parte de propostas que foram elaboradas pelo Ministério da Fazenda, sugerindo a criação de um instrumento para designação de plataformas como “sistemicamente relevantes” e atribuindo ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) a capacidade de impor obrigações a essas empresas.
Legislações semelhantes surgiram na Europa muito recentemente, como o Digital Markets Act (DMA) e o Digital Markets, Competition and Consumer’s Act (DMCC), este último que parece ser a principal inspiração para as sugestões que foram encaminhadas no relatório “Plataformas Digitais: aspectos econômicos e concorrenciais e recomendações para aprimoramentos regulatórios no Brasil”, publicado em outubro de 2024.
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Alguns pontos de atenção merecem ser discutidos. A política de defesa da concorrência é amplamente reconhecida como um elemento central para impulsionar a produtividade, fomentar a inovação e sustentar o crescimento econômico. Cumprir essa missão exige uma gestão estratégica dos recursos, priorizando ações que realmente façam a diferença no desenvolvimento do país. Nesse contexto, qualquer mudança no regime de defesa da concorrência precisa ser cuidadosamente avaliada, dado que é essencial garantir que os princípios que asseguram benefícios concretos aos consumidores sejam preservados.
Afinal, alterações substanciais podem comprometer tanto a integridade dos mercados quanto a eficácia das políticas concorrenciais. Esse cuidado se torna ainda mais relevante diante da necessidade de fortalecer a competitividade global e atrair mais investimentos para o país.
Para avaliar essa mudança, é importante perguntar: será que o Cade não tem atuado em diversos setores que potencialmente serão objeto dessa regulação?
Mesmo sem uma legislação específica, o Cade já atua de forma ativa na análise das práticas comerciais de empresas de tecnologia, buscando proteger a concorrência nos diferentes segmentos do mercado digital.
A própria audiência pública realizada pelo Cade em fevereiro deste ano já mostrava um maior foco por parte da autarquia na análise de operações de concentração e investigações sobre práticas envolvendo segmentos digitais. Apenas para ficar com exemplos mais óbvios, especificamente sobre ecossistemas digitais para dispositivos móveis, foram discutidos casos, como o Inquérito Administrativo 08700.002940/2019-76, que trata do “caso Google Android”, e o Inquérito 08700.009916/2024-25, sobre a “Google Play Store”
E o Cade tem ido além: exemplos bem evidentes de uma tendência de enforcement maior podem ser vistos a partir do uso de medidas preventivas, que são decisões provisórias adotadas antes do julgamento final de um processo administrativo, com o objetivo de evitar que uma prática cause danos irreparáveis ou de difícil reparação enquanto a investigação ainda está em andamento.
O Cade instaurou um processo administrativo contra a Apple, em novembro de 2024, após denúncia do Mercado Livre, que acusava a empresa de abusar de sua posição dominante ao proibir desenvolvedores de oferecerem bens ou serviços digitais usados fora de seus aplicativos. Nessa ocasião, adotou uma medida preventiva, obrigando a Apple a permitir que aplicativos vendam bens digitais diretamente aos consumidores na App Store, antecipando os efeitos do que viria a ser uma decisão final do caso.
Outro caso interessante que demonstra sua atuação ocorreu também no início deste ano, quando o Cade adotou uma medida preventiva contra o Itaú Unibanco, no contexto de um processo administrativo que investigava práticas anticompetitivas no setor de carteiras digitais. A ação foi motivada por uma representação do Ministério Público Federal, baseada em denúncias da Associação Brasileira de Internet (Abranet), que alegou que o banco impôs barreiras às transações de carteiras digitais concorrentes, como recusas indiscriminadas de transferências e pagamentos.
Como a regulação ex-ante só se justificaria diante de falhas de mercado evidentes, e um enforcement ex-post ineficaz, o desenho de uma proposta de regulação tem uma barra alta para justificar uma mudança tão relevante no cenário concorrencial brasileiro.
Levando em consideração que efeitos de rede ou meramente escala não bastam para justificar a reconfiguração do modelo concorrencial, a definição de plataformas “sistemicamente relevantes” e a imposição de obrigações comportamentais ex ante precisam ser acompanhadas de critérios claros, proporcionalidade e garantias institucionais, para que a nova arquitetura não comprometa inovação nem crie custos desnecessários, desestimulando investimentos.