Preço dos medicamentos e o decreto de Trump: hora de repensar modelo vigente?
JOTA.Info 2025-05-30
A ordem executiva anunciada pelo presidente Donald Trump que visa equalizar os preços dos medicamentos nos Estados Unidos aos praticados em diferentes países traz ao centro do debate um tema relevante, porém sensível, da política publica global: o preço dos medicamentos inovadores.
Embora os desdobramentos práticos da medida ainda sejam incertos, dados os antecedentes políticos e legais de tentativas similares e as recentes oscilações nas decisões sobre tarifas internacionais, seu potencial simbólico e econômico pode ser significativo. Especialmente para países como o Brasil, que utilizam os EUA como um dos principais benchmarks para preços farmacêuticos.
Com notícias da Anvisa e da ANS, o JOTA PRO Saúde entrega previsibilidade e transparência para empresas do setor
Por que isso importa para nós?
No Brasil, os preços dos medicamentos são regulados pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), que usa como referência um conjunto de países para estabelecer os tetos de precificação. Os Estados Unidos estão entre essas referências.
Em outras palavras, qualquer queda nos preços nos EUA pode causar um efeito cascata em países como o Brasil – especialmente para produtos novos sem histórico de comercialização no país. Isso é especialmente relevante para medicamentos de alto custo, como terapias avançadas, cujo valor pode ultrapassar R$ 18 milhões por paciente.
A fala de Trump, que afirma que “os americanos estão subsidiando os sistemas europeus” mostra um fato conhecido, mas raramente enfrentado: os Estados Unidos, com menos de 5% da população mundial, representam quase a metade das vendas da indústria farmacêutica global.
De acordo com o estudo “Medicare FFS part B and international drug prices: A comparison of the top 50 drugs”, de 2020, os preços dos medicamentos nos EUA são, em média, o dobro dos preços nos países da OCDE.
Essa realidade pode provocar distorções nos incentivos à inovação global. Quando as empresas ajustam seus preços pensando principalmente no mercado americano, elas criam uma lógica de precificação descolada das capacidades de pagamento dos demais países, pois já nascem com preços para maximizar margens nos EUA. Para mercados como o brasileiro, isso representa uma barreira de acesso significativa – mesmo com regulação.
O desafio de não penalizar a inovação
Importante destacar: buscar preços mais justos não implica atribuir à indústria farmacêutica a totalidade da responsabilidade pelo cenário atual, mas sim repensar os mecanismos sistêmicos que sustentam modelos de precificação pouco transparentes.
Precisamos preservar os incentivos à inovação, especialmente em áreas onde ainda não temos cura, melhora significativa na qualidade de vida dos pacientes ou doenças consideradas negligenciadas. Mas, para isso, é fundamental construirmos um sistema mais transparente e baseado em evidências, que vá além da retórica.
É nesse ponto que proponho uma reflexão sobre o que chamo de access washing — uma prática cada vez mais comum, em que empresas proclamam compromisso com o acesso, mas sem medidas concretas que viabilizem a entrada e a permanência de terapias nos sistemas públicos de saúde, especialmente nos países de baixa e média renda.
Assim como no greenwashing, que se apropria superficialmente da agenda ambiental, o access washing transforma o discurso sobre equidade em uma peça de marketing, enquanto os modelos comerciais e regulatórios permanecem restritivos e inacessíveis financeiramente para a maioria da população mundial.
Uma oportunidade para repensar o sistema
É preciso reconhecer que, no caso de Trump, muitas das propostas anteriores — como a política de “nação mais favorecida” de 2020 — foram suspensas judicialmente ou abandonadas por sucessores. No entanto, a sinalização política é importante. Quando um dos maiores mercados globais sinaliza a necessidade de reformar seu sistema de preços, surge uma oportunidade para repensar os modelos vigentes.
A proposta, seja um gesto retórico ou o início de uma mudança concreta repleta de incertezas técnicas e legais, tem o mérito de colocar o debate sobre o custo da inovação no centro da agenda global.
O Brasil já começou a trilhar esse caminho com modelos como o acordo de compartilhamento de risco no SUS para uma terapia gênica, assinado recentemente. Se os EUA avançarem na direção de preços mais alinhados com o valor entregue – e não apenas com o poder de mercado –, isso poderá fortalecer as iniciativas globais de precificação baseada em valor e incentivar a cooperação entre sistemas de saúde.
Podemos estar diante de um novo capítulo de negociação internacional, no qual acesso, inovação e a sustentabilidade não sejam forças em conflito, mas elementos de uma mesma equação. Se isso ocorrer, quem ganha é o paciente. E, com ele, toda a sociedade.
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Este texto não reflete necessariamente as opiniões das instituições a que o autor é associado
Brasil. CMED – Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos. Resolução CMED nº 2, de 5 de março de 2004. Aprova os critérios para definição de preços de produtos novos e novas apresentações de que trata o art. 7º da Lei nº 10.742, de 6 de outubro de 2003. Alterada pela Resolução CMED nº 4, de 15 de junho de 2005, publicada no DOU, de07/10/2005, e pela Resolução CMED nº 4, de 18 de dezembro de 2006, publicada no DOU, 12/03/2007. Brasília, DF; 2004.
Centers for Medicare & Medicaid Services. Medicare FFS Part B and International Drug Prices: A Comparison of the Top 50 Drugs. U.S. Department of Health & Human Services, 2020. Disponível em: https://aspe.hhs.gov/sites/default/files/private/pdf/264421/Part-B%2520Drugs-International-Issue-Brief.pdf. Acesso em: 15 maio 2025.
FARIAS, Melissa; PINTO, Márcia. Critérios de definição de preços de medicamentos no Brasil e em países selecionados: uma revisão comparada. Jornal Brasileiro de Economia da Saúde, v. 13, n. 3, p. 322–337, 2021.DOI:10.21115/JBES.v13.n3.p322-37.Disponível em: https://www.jbes.com.br/index.php/jbes/article/view/114. Acesso em: 15 maio. 2025.