A reforma do setor elétrico e o elo frágil das distribuidoras
JOTA.Info 2025-05-30
A Medida Provisória 1.300/2025 foi saudada pelo Executivo como o alicerce de uma modernização do setor elétrico. De fato, seu texto ressignifica pilares históricos: transfere parte dos custos da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) para o mercado livre, cria o supridor de última instância, redefine o regime de autoprodução, antecipa a abertura do mercado para 90 milhões de unidades consumidoras e impõe um roteiro de separação entre a atividade de distribuição (o fio) e a comercialização de energia (energia).
Por trás desse cardápio heterogêneo, há um denominador comum: as concessionárias de distribuição foram transformadas em amortecedores de risco sistêmico sem a devida blindagem econômico-financeira.
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A virtude e o custo de socializar a CDE
O primeiro ponto a reconhecer é positivo. A media provisória finalmente corrige a assimetria que obrigava somente os consumidores cativos a bancar subsídios setoriais via CDE. A partir de 2026, todas as classes — livres ou reguladas — compartilharão esse encargo proporcionalmente ao consumo. A medida atenua o desequilíbrio histórico entre quem pode escolher seu fornecedor e quem permanece preso à tarifa regulada.
Contudo, o alívio tarifário obtido pelos usuários residenciais e de baixa renda é contrabalançado por um choque de custos para a indústria. Estudos preliminares de agentes de mercado estimam que, somados o fim do desconto de fio, as novas amarras à autoprodução e a realocação dos encargos, a conta de energia industrial pode subir entre 15% e 25% em 2026.
A inflação elétrica, por definição, repassa-se a cadeias produtivas: fertilizantes, siderurgia, alumínio e papel-celulose ver-se-ão pressionados, contaminando o IPP e, em seguida, o IPCA. A conquista de justiça tarifária, portanto, carrega um efeito colateral inflacionário que não pode ser ignorado.
Abertura do mercado: oportunidade e ameaça
A MP estabelece a abertura total do Ambiente de Contratação Livre (ACL) em duas etapas — agosto de 2026 para clientes industriais e comerciais em baixa tensão, e dezembro de 2027 para os demais consumidores. Em teoria, a liberalização estimula eficiência, inovação tarifária e serviços de valor agregado. Mas, na prática, lança as distribuidoras num círculo de pressões cruzadas.
A primeira é a separação entre a energia e o fio. Até 1º de julho de 2026, todas as concessionárias deverão segregar, ao menos contabilmente, a atividade de comercialização regulada da prestação do serviço público de distribuição, preservando o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos.
Na experiência internacional, processos de unbundling exigem compensações regulatórias – via revisão da base de remuneração ou ajustes de Parcela B – para que o patrimônio público concedido continue atraente a investidores. O texto da MP silencia sobre compensações explícitas.
A segunda pressão é a sobrecontratação e exposição involuntária. Ao perderem consumidores para o ACL, as distribuidoras carregam contratos de compra de energia assinados em leilões de longo prazo. O texto agora determina que o encargo correspondente seja rateado entre todos os consumidores, livres ou cativos.
A lógica é virtuosa – evitar a malfadada “espiral da morte” –, mas cria um duplo risco. De um lado, de judicialização por parte de consumidores livres que não aceitarão pagar por um risco que hoje é alocado apenas ao ambiente regulado. De outro lado, cria o risco de incentivo para que os próprios cativos acelerem sua migração, aumentando o custo médio remanescente.
O terceiro e último fator de pressão é a flexibilização da obrigatoriedade de contratar 100% da carga. A MP autoriza o regulador a reduzir o volume mínimo que as distribuidoras devem contratar no ACR, a fim de acomodar a migração de clientes.
Embora necessária, a flexibilização depende de regras e limites ainda inexistentes. Sem metodologia clara, as distribuidoras estão sujeitas à adoção ex-post de critérios políticos, corroendo a previsibilidade de investimentos.
Tarifa horária, pré-pagamento e afins: boas intenções, alta complexidade
No front tarifário, o governo foi ambicioso. Autoriza: (i) tarifas diferenciadas por horário; (ii) fornecimento pré-pago; (iii) tarifas multipartes que separem potência de energia; (iv) tarifas específicas para áreas de elevada inadimplência ou perdas; e (v) modalidades locacionais ou de qualidade. Todas as ideias constam de debates técnicos da Aneel há pelo menos uma década. A novidade é transformá-las em lei, outorgando mandato direto ao regulador.
Para as distribuidoras, o cardápio traz desafios operacionais e de caixa. O pré-pagamento, por exemplo, só funciona com medição inteligente universalizada. As tarifas multipartes exigem segregação de custos de capacidade no sistema de faturamento – investimento expressivo em TI.
Já as tarifas para áreas críticas implicam selecionar regiões dentro da mesma concessão e gerenciar repercussões político-sociais. Sem cronograma de remuneração para essas adaptações, as metas viram imposições de custo não coberto.
Autoprodução: menos incentivo, menos demanda firme
O endurecimento das regras de autoprodução é outro ponto sensível. Agora, apenas grupos com demanda contratada agregada superior a 30 MW e participação societária mínima na SPE terão direito aos benefícios do regime. A decisão corrige estruturas artificiais criadas apenas para capturar incentivos, mas reduz o apetite de projetos de cogeração e reduz a demanda firme das distribuidoras por gás natural – um impacto cuja magnitude ainda não foi estimada pelo governo.
Distribuidoras que investiram em programas de “linha verde” para autoprodutores podem ver parte de sua carteira evaporar ou, no extremo, retornar como carga cativa descontratada, agravando o risco de sobrecontratação no curto prazo.
SUI e a socialização de custos setoriais
A figura do Supridor de Última Instância (SUI) — reservada preferencialmente às próprias distribuidoras — pretende evitar interrupções de fornecimento quando comercializadores falham. Seus custos, todavia, serão arcados exclusivamente pelos consumidores do ACL.
O desenho reforça a ideia de que as distribuidoras se tornarão “bombeiros” sistêmicos: são responsáveis por garantir energia a quem optou pelo mercado livre, mas sem contraprestação regulada de receita; receberão, em troca, apenas o repasse de custos, não de margem. É um modelo que exige retribuição regulatória via Parcela B ou outro mecanismo de remuneração de desempenho, sob pena de banalizar a função concessionária.
O gás natural como hedge involuntário
Um ponto pouco explorado no debate público é a possibilidade de as distribuidoras de energia se tornarem, também, provedoras de “serviços de portfólio” para grandes clientes. A tarifa elétrica pós-MP deverá oscilar mais do que as tarifas de gás canalizado, que são reajustadas anualmente por índices indexados a petróleo ou IPCA, historicamente menos voláteis.
Ao firmar contratos estruturados — fornecimento elétrico spot mais contrato firme de gás –, consumidores industriais poderão travar parte de sua exposição ao PLD, despachando caldeiras ou cogeração a gás nos picos de preço da energia. Para o sistema, é uma válvula de alívio; para os agentes de geração de energia elétrica, porém, significa concorrência indireta no horário de ponta.
O que falta na MP
A MP impõe calendário agressivo de regulamentação: regras do SUI até fevereiro de 2026; unbundling até julho de 2026; abertura total do mercado até dezembro de 2027. Nada diz, contudo, sobre eventuais reequilíbrios extraordinários decorrentes da separação tarifária, ou sobre o financiamento de investimentos em digitalização necessários ao pré-pagamento e às tarifas horárias.
Para que a MP 1.300/2025 se converta em reforma efetiva, três providências são essenciais:
A primeira é um cronograma claro de reequilíbrio contratual. A Aneel deve antecipar consulta pública sobre metodologia de reequilíbrio decorrente do unbundling, evitando litígios judiciais de alto impacto.
A segunda é a regulação de flexibilidade de contratação. A redução do lastro obrigatório precisa de critério objetivo, baseado em métricas de churn e previsões de migração, para não perpetuar incerteza.
A terceira e última é um plano de modernização tarifária financiável. A implementação de tarifas horárias, pré-pagamento e multipartes exige reconhecimento prévio na Parcela B ou mecanismos de incentivo à eficiência, sob risco de descasamento entre obrigações e receita.
Se, por um lado, o texto avança em corrigir distorções históricas – como a socialização da CDE e a criação do SUI –, por outro transfere aos concessionários responsabilidades que demandam capital, tecnologia e governança.
Em vez de demonizar a modicidade tarifária, a reforma deveria assumir que, sem distribuidoras economicamente saudáveis, não há transição energética que resista a liberalizações apressadas. O fio continua essencial: cortá-lo das premissas de sustentabilidade econômico-financeira pode deixar o setor inteiro em curto-circuito.