Dez anos do desastre de Mariana: o que foi feito e o que ainda há por fazer
JOTA.Info 2025-06-06
Em novembro deste ano, completam-se dez anos do rompimento da barragem do Fundão, em Mariana (MG), considerado o maior desastre socioambiental brasileiro. Milhares de pessoas ainda convivem com os efeitos da tragédia: a perda de familiares, casas, trabalhos e o vínculo com o território são ainda presentes na vida dos atingidos.
Os desdobramentos do caso ocorrem tanto na Justiça brasileira quanto na inglesa. “O caso de Mariana expõe as diversas e plurais fragilidades do país ao lidar com crimes ambientais. A falta de punição para esse tipo de crime fortalece a crença de que o seu cometimento não trará maiores consequências”, afirma Mariana Pimentel, mestre e doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e sócia do escritório Medina Guimarães.
Para compreender de forma integral cada acontecimento vinculado ao caso, o Estúdio JOTA traça uma linha do tempo e retoma os fatos envolvidos em cada etapa da tragédia.
Uma tragédia anunciada
No dia 5 de novembro de 2015, por volta das 16h20, aconteceu o rompimento da barragem de Fundão, localizada em Bento Rodrigues, a 35 km do centro do município de Mariana. A tragédia causou a morte de 19 pessoas, provocou o aborto de um bebê em uma sobrevivente e trouxe destruição para toda uma comunidade. Mais de 600 pessoas ficaram desabrigadas, além de 1,2 milhão sem acesso à água potável.
Além do fator humano, a catástrofe também repercutiu no ecossistema da região. Estima-se o despejo de mais de 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração, compostos principalmente por óxido de ferro, água e lama.
O material contaminou a bacia do Rio Doce e seus afluentes, que se estendem por Minas Gerais e Espírito Santo, até desaguar no Atlântico, a 663 km do local do rompimento. Após a chegada da lama no oceano, há registros científicos que mostram que a contaminação chegou até o litoral sul da Bahia e norte do Rio de Janeiro. Ao todo, cerca de 50 municípios foram atingidos – o que consolidou o rompimento como a maior tragédia ambiental da história do Brasil.
A barragem era gerenciada pela Samarco, uma mineradora joint venture entre a brasileira Vale e anglo-australiana BHP Billiton, que iniciou sua operação em 2008 e, ao longo dos anos, passou por paralisações de suas atividades e intervenções em sua infraestrutura.
A partir de 13 de novembro, o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público de Minas Gerais deram, em conjunto, início às investigações sobre as causas do rompimento da barragem. No começo, o caso foi tratado como um “acidente”, porém, em seguida a investigação apontou para a possibilidade de um cenário de risco conhecido – e não mitigado pelos seus responsáveis.
Ao longo dos anos, investigações técnicas, denúncias dos órgãos públicos e relatórios oficiais pontuaram uma série de falhas no sistema de drenagem, omissão diante de alertas sobre possíveis riscos e negligência por parte das empresas envolvidas.
Além disso, o caso foi parar na Corte de Londres, onde o julgamento contra a BHP começou em 21 de outubro e foram apresentadas evidências de que as mineradoras receberam “alarmes precoces” e “sinais de alerta” pelo menos 6 anos antes do colapso. Os primeiros sinais de defeitos na barragem foram identificados em abril de 2009 – ou seja, apenas cinco meses após início das operações, no fim de 2008.
“Desde 2010, há no Brasil uma Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB), que, no fim do dia, era pouco efetiva e atualizada desde sua criação. Tanto que a barragem do Fundão, em Mariana, não havia sido classificada corretamente sobre os riscos e nem estava sendo monitorada adequadamente, o que contribuiu para o seu rompimento em 2015”, avalia o advogado e consultor Bruno Teixeira Peixoto, professor de Direito Ambiental e de Avaliação de Impactos Socioambientais na FGV Educação Executiva.
O que foi feito?
Nos primeiros meses de 2016, foi firmado um termo entre os governos federal, estaduais – de Minas Gerais e Espírito Santo – e a mineradora Samarco para ações de recuperação de todos os municípios atingidos pelo evento.
Os trabalhos deveriam ser executados pela Fundação Renova, criada com esse objetivo. Ao longo dos anos, a instituição se tornou alvo de críticas por falta de autonomia, concentração de decisões nas mineradoras e pouca participação da população atingida.
No entanto, em agosto do mesmo ano, a Justiça Federal anulou a homologação do acordo, após críticas do MPF em relação à ausência da participação dos atingidos pelo desastre, além de apontarem insuficiência das medidas previstas de recuperação. Em novembro de 2016, a Justiça Federal aceitou a denúncia do Ministério Público Federal e a Samarco, a Vale e a BHP Billiton se tornam réus por crimes ambientais.
Somente em fevereiro de 2018, houve a aprovação de um novo projeto urbanístico para a reconstrução do subdistrito de Bento Rodrigues. Em maio, a Fundação Renova implantou o canteiro de obras para o reassentamento das famílias, cuja entrega sofreu sucessivos atrasos e só começou efetivamente em 2023.
Nesse ano, ainda foi assinado o Termo de Ajustamento de Conduta referente à governança pública, conhecido como TAC Governança. O documento assinado pelo MPF, órgãos públicos e as mineradoras previa a integração das comunidades atingidas nas decisões no processo de reparação dos danos causados pelo desastre.
O ano de 2019 foi marcado por críticas ao processo burocrático e lento de reparações, investigações sobre falhas na assistência e disputas judiciais envolvendo proteção à saúde das comunidades atingidas e validade das indenizações. No mesmo ano, a Justiça Federal determinou a retomada do pagamento integral das indenizações pela Samarco.
Em 2020, foi homologado um acordo de R$1 bilhão para compensar os estados e os municípios afetados. Nesse período, foi criado o sistema Novel para organizar o pagamento de indenizações a trabalhadores informais – como pescadores, artesãos e lavadeiras. O programa foi encerrado após três anos, por decisão do TRF-6, por falhas no modelo adotado.
Por outro lado, em outubro, órgãos governamentais expediram uma recomendação tanto à Fundação Renova quanto às mineradoras responsáveis pelo desastre pela veiculação de peças publicitárias com informações dúbias ou até mesmo incorretas sobre o caso. No final de 2020, a Vale pagou multas ao governo mineiro e firmou acordos de reassentamento. Contudo, fez questionamentos sobre as autuações ambientais feitas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
No ano seguinte, a Samarco entrou com pedido de recuperação judicial para reestruturar uma dívida estimada em R$ 50 bilhões, após paralisação das operações devido à tragédia.
Em 2022, a Vale assinou um termo de ajustamento de conduta com o Ministério Público de Minas Gerais e o governo estadual, comprometendo-se ao pagamento de R$ 236 milhões por descumprir o descomissionamento de barragens. O descomissionamento está relacionado ao ato de esvaziar áreas que armazenam rejeitos, de forma a encerrar o uso da barragem.
O MPF anunciou o fim das negociações de repactuação com as mineradoras envolvidas. Mesmo após 264 reuniões mediadas pelo Conselho Nacional de Justiça, não houve acordo sobre valores e cronograma de indenizações.
As negociações só foram retomadas em março de 2023, ano em que ocorreram os primeiros reassentamentos nas casas reconstruídas em área próxima ao epicentro da tragédia, no chamado “novo Bento”.
A Samarco foi multada em R$ 1 milhão por dia de atraso das entregas. Em agosto deste ano, a Justiça inglesa incluiu a Vale na ação coletiva movida por cerca de 620 mil pessoas, a pedido da BHP Billiton.
Em novembro, houve a retomada do julgamento dos acusados pela Justiça Federal. A União e os estados apresentaram uma proposta às mineradoras. Esse acordo prevê que parte significativa das ações reparatórias seja gerida pelo poder público, com recursos transferidos pelas empresas.
O relatório final da Câmara dos Deputados divulgado em 2023 apontou falhas indicadas pelas vítimas no acordo de reparação liderado pela Fundação Renova. Dessa forma, houve a proposta de que o governo federal assumisse a gestão do novo acordo, em busca de maior transparência e participação social.
Em 21 de outubro de 2024, quatro dias após o início do julgamento na Inglaterra, a BHP, juntamente com a Vale e a Samarco, firmou um acordo de R$ 170 bilhões com as autoridades brasileiras para ações de reparação e compensação dos danos causados pelo desastre. Esse acordo foi homologado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em novembro de 2024. No entanto, 31 municípios optaram por não aderir ao acordo, em busca de reparações mais significativas por meio da ação judicial em Londres, no Reino Unido.
“No ajuizamento de nova Ação Civil Pública (ACP), os municípios autores alegam que, entre 2015 e 2018, o desastre impactou em cerca de R$ 250 bilhões em termos de Produto Interno Bruto (PIB), com projeções de até R$ 547 bilhões até 2034. Números que contrastam com os do acordo das autoridades brasileiras”, diz Peixoto.
Julgamento em Londres
Em 2018, o escritório Pogust Goodhead, representante de cerca de 620 mil atingidos pelo rompimento da barragem, anunciou uma ação em busca de indenizações na Justiça inglesa – tendo em vista que a Samarco é controlada pela anglo-australiana BHP Billiton, que à época mantinha sede em Londres.
Após quatro anos, em julho de 2022, a Justiça aceitou julgar a ação. O julgamento teve início, de fato, no dia 21 de outubro de 2024, e durou 13 semanas, até março de 2025, com testemunhos de executivos e ex-executivos da BHP sendo confrontados com apresentação de evidências e audiências com especialistas em direito civil e societário brasileiro, bem como direito ambiental brasileiro e geotecnia.
A defesa dos atingidos pontuou que havia problemas estruturais, os quais indicavam falhas no sistema de drenagem. Também apresentaram evidências que a Samarco recebeu alertas sobre a estrutura ao menos seis anos antes da catástrofe. Em nota, a BHP refutou as alegações feitas no tribunal.
Durante o julgamento, o engenheiro Allen Marr, indicado pela defesa da BHP, afirmou que uma “solução temporária” foi usada na barragem do Fundão por três anos, até o seu rompimento, e que não foi feita a devida avaliação de estabilidade da estrutura. A barragem de Mariana foi avaliada no “mais alto perfil de risco” anos antes de seu colapso. Testemunhas e especialistas descreveram como a Samarco operava as barragens muito acima dos limites de segurança aceitos na indústria. Em 2013, o Dr. Andrew Robertson – especialista em barragens de rejeitos – levantou preocupações de que a Samarco havia “levado a barragem a limites de tolerância operacionais que estão além do que considero apropriado. E continua fazendo isso”. Também foi demonstrado que a Vale chegou a despejar rejeitos em volumes dez vezes superiores ao acordado com a Samarco.
Uma decisão é aguardada para as próximas semanas, em meados do ano. O valor total solicitado pelas vítimas é de mais de US$ 44 bilhões, equivalente a R$ 230 bilhões. Caso a BHP seja considerada responsável, o processo avançará para a fase de cálculos das indenizações – com previsão para ocorrer em outubro de 2026.
Essa é considerada a maior ação ambiental coletiva do mundo. O valor é pautado em uma série de prejuízos causados pelo rompimento da barragem, como perdas de propriedade, impactos na moradia, deslocamento, falta de acesso à água e energia elétrica, além dos impactos psicológicos e sociais aos antigos moradores da região.
A expectativa sobre a sentença da Justiça britânica se soma à frustração de quem, no Brasil, ainda busca justiça quase uma década após a tragédia. Para juristas, o caso internacional pode ter repercussão no cenário interno.
Para Peixoto, o trâmite da ação no Reino Unido expõe as falhas do sistema brasileiro e oferece uma via alternativa de justiça: “A ação coletiva dos atingidos de Mariana representa uma alternativa de respostas mais efetivas e abrangentes aos danos individuais e coletivos causados pelo desastre.”
“Não foi por acaso que o Judiciário britânico acolheu as razões recursais dos procuradores desta ação. Foram fundamentos que partiram de regras de processo civil inglês, em hipóteses nas quais se verifique risco de potencial injustiça ou dano indevido contra os autores da ação diante da demora nas reparações no Brasil”, acrescenta o especialista em direito ambiental.
“A aplicação de sanções fora do país pode influenciar no fortalecimento do Direito Ambiental no Brasil, seja porque é possível que haja efetiva responsabilização dos agentes que causaram o dano ambiental, seja porque as decisões proferidas na esfera internacional poderão influenciar o comportamento e a mentalidade dos julgadores brasileiros em casos futuros”, avalia a Pimentel.
O que ainda há por fazer
Apesar dos avanços formais, o caminho até uma reparação efetiva segue incompleto. Até hoje, a maior parte das vítimas segue sem reparação integral pelos danos causados com o rompimento da barragem. Atrasos em indenizações, reassentamentos incompletos e ausência de recuperação ambiental plena são aspectos que confirmam a trajetória lenta e desigual.
No acordo de repactuação, as mineradoras ofereceram alguns programas para indenização às vítimas, entre eles o Programa de Indenização Definitiva (PID). Contudo, pelos critérios de elegibilidade do programa, boa parte dos atingidos que são parte na ação inglesa não pôde aderir. A própria BHP reconheceu publicamente, em relatório apresentado a seus acionistas, que o acordo no Brasil contemplaria apenas 40% dos clientes da ação na Inglaterra e o Pogust Goodhead, em parceria com a Punter Southall Analytics (PSA), uma empresa britânica especializada em análise quantitativa e de dados, estimou que apenas 36% dos mais de 620 mil reclamantes na Inglaterra estariam aptos à repactuação, deixando de fora aproximadamente 407 mil atingidos. O programa determina ainda que os que aderirem à repactuação assinem uma cláusula de quitação desistindo de ações judiciais no Brasil e no exterior, incluindo a ação inglesa.
Ao avaliar a resposta institucional ao desastre, Peixoto destaca uma série de entraves que, segundo ele, atravessam toda a década. “De modo muito resumido, podemos destacar algumas incontroversas ineficiências e falhas de 2015 até agora. Começando pelas desconformidades em termos de transparência, participação e governança da Fundação Renova”, pontua Peixoto.
Em relação aos processos judiciais, a situação também é semelhante. As ações penais movidas contra as mineradoras ainda permanecem em andamento. Desde então, o processo foi marcado por interrupções, mudanças de juízes e disputas jurídicas sobre a competência das ações. Somente em 2023, a Justiça Federal retomou as audiências, com o depoimento de representantes legais das empresas e executivos envolvidos.
Mas, até o momento, não houve nenhuma condenação criminal efetivada no país – algo que é foco de crítica de organizações socioambientais e do Ministério Público. Esse trâmite arrastado é visto como um grande exemplo da dificuldade em responsabilizar criminalmente empresas por crimes ambientais no Brasil. “Sem mencionar o outro rompimento da barragem de Brumadinho, em 2019, com causas e efeitos similares e que também não está livre de obstáculos estruturais como em Mariana”, acrescenta Peixoto.
De acordo com relatório mensal da Agência Nacional de Mineração (ANM), de fevereiro deste ano, há cerca de 917 barragens de mineração no país. Dessas, cerca de 75 são classificadas na categoria de alto risco – sendo 30 somente em Minas Gerais.
A dor de quem ficou à margem
Para além das localidades oficialmente reconhecidas como atingidas, como Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, há uma parcela significativa da população que também sofre os impactos da tragédia — mas que segue invisível nas políticas de reparação.
São moradores de distritos próximos, como Águas Claras, a 35 quilômetros da barragem do Fundão, que lidam até hoje com os prejuízos do desastre e pedem por reconhecimento institucional. Esse município está a 4 quilômetros do rio Gualaxo do Norte, um dos principais afluentes do Rio Doce.
A contaminação do rio atingiu não só a fauna e flora da região, bem como a infraestrutura das construções, saúde dos moradores e economia local. “Após o rompimento da barragem, só vieram efeitos negativos para toda a região. Tivemos nossas casas danificadas e trincadas. O excesso de poeira afetou nossas plantações e nossos alimentos deixaram de ser bem aceitos na feira de Mariana. Mas isso não é analisado pelo Poder Público e não somos reconhecidos como atingidos”, explica Maria de Fátima Castro Carneiro, moradora de Águas Claras.
Para ela, o sentimento de abandono é reforçado pela exclusão dos processos oficiais de reparação. “A nossa comunidade não participa de quase nenhum acordo. Em Águas Claras, por exemplo, poucas pessoas foram beneficiadas”, diz. A moradora participa do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) por meio de ações de luta por uma reparação justa e em denúncia das violações ocorridas após a catástrofe.
Sobre o novo acordo firmado entre o Governo Federal e as mineradoras, ela observa com ceticismo. “Essa repactuação pode até ampliar o número de pessoas reconhecidas, mas são valores irrisórios. O esquecimento é maior ainda em relação às pessoas que moram nos locais mais distantes ou que têm menos informação. A Justiça tinha que vir até essas pessoas”, comenta.
Para Maria de Fátima, a sensação de desamparo cresce a cada ano: “Quanto mais tempo passa, mais distante fica a esperança — não só a minha, como a de várias outras pessoas.”
