Já é possível falar que a reforma administrativa é inconstitucional?
JOTA.Info 2025-08-01
Um texto preliminar da reforma administrativa deverá ser apresentado nos próximos dias pelo GT da Câmara dos Deputados. Em que pese ainda não se ter o documento, como concordaria Norman Fairclough, um dos principais expoentes da Análise Crítica do Discurso, a reflexão sobre os discursos dos parlamentares integrantes do GT pode embasar uma discussão sobre a constitucionalidade das alterações pretendidas, pois a linguagem é um grande indicativo do que poderá se tornar a prática social.
Das entrevistas concedidas e nas falas registradas nas audiências públicas sobre o tema, percebe-se um discurso paradoxal desses parlamentares, pois, de um lado, buscam tranquilizar os servidores de que a estabilidade a eles assegurada não será afetada, do outro, defendem a ampliação do uso de contratos temporários e a centralidade da avaliação de desempenho.
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Ao fazerem questão de ressaltar em suas falas que não seriam reavivadas pelo GT as inovações veiculadas pela PEC 32/2020, que buscavam confrontar abertamente o instituto da estabilidade, ao passo em que se posicionam pela massificação dos temporários e por acelerar a regulamentação a avaliação de desempenho, é possível visualizar, desde logo, que as propostas a serem apresentadas acarretarão o mesmo processo de erosão constitucional da proposta de reforma administrativa de 2020, mas com uma dinâmica diferente: a prática do constitucionalismo abusivo.
Indícios do constitucionalismo abusivo
A noção de constitucionalismo abusivo, capitaneada por David Landau desde o seu artigo “Abusive Constitutionalism”, é útil para descrever o uso estratégico de instrumentos formais de mudança constitucional com o propósito de corroer os fundamentos do regime democrático, sem a aparência de ruptura institucional aberta. Trata-se de um fenômeno em que reformas formalmente válidas produzem, em seu conteúdo e efeitos, retrocessos estruturais no arranjo constitucional, muitas vezes sob o disfarce da legalidade procedimental, dada a presunção de legitimidade da atividade do constituinte derivado.
O que caracteriza a prática não é a ilegalidade formal, mas a corrosão substancial da democracia e de suas estruturas de proteção. Em outras palavras, é a subversão do espírito da Constituição por meio do uso ostensivamente fiel à sua letra, ainda que mantida a aparência democrática.
O remédio contra isso é conceber uma ideia “cláusulas pétreas implícitas” ou de “princípios estruturantes” do constitucionalismo, para admitir que nem todos os limites à reforma constitucional estão expressamente enumerados no art. 60, § 4º, da Constituição, podendo decorrer da própria estrutura lógica do sistema constitucional.
É nesse ponto que se insere o núcleo da presente análise: a estabilidade no serviço público, enquanto instrumento de proteção institucional da Administração Pública, deve ser compreendida como núcleo central da Constituição de 1988, porquanto confere densidade ao princípio da impessoalidade, assegura a continuidade administrativa, impede o uso clientelista do Estado e resguarda o interesse público contra pressões políticas ou econômicas indevidas.
Embora não conste expressamente no rol pétreo, a estabilidade integra o núcleo central regime jurídico-administrativo constitucional, e sua supressão, ainda que indireta e mascarada pela regularidade do processo legislativo, é desestruturante. Nesse sentido, toda proposta de reforma constitucional que, a pretexto de racionalizar a gestão pública, desloca a centralidade da Administração para vínculos precários ou fragiliza as garantias estruturais dos servidores efetivos deve ser examinada à luz do paradigma do constitucionalismo abusivo.
Esse uso distorcido dos mecanismos constitucionais excepcionais (contratações temporárias) e punitivos (avaliação de desempenho) constitui um caso exemplar daquilo que Landau denomina como “erosão democrática com aparência constitucional”.
Em vez de revogar frontalmente a estabilidade tal como na PEC 32, a reforma administrativa que se denota dos discursos parlamentares buscaria desidratá-la por dentro, por meio da proliferação de vínculos precários e da intimidação funcional do servidor estável, configurando um desvio de finalidade institucional e um abuso constitucional da forma.
De volta à Assembleia Nacional Constituinte
Para manter-se vinculante, a Constituição carece de atualizações face às complexidades e contingências naturais do desenrolar das novidades sociais. Mas é preciso se atentar para os limites dessa atualização, tendo em vista que a Constituição também precisa ser resistente às demandas por modernização que desfigurem o seu núcleo essencial, sob pena de se ter apenas um texto constitucional abusivamente atualizado, e não a prática de um verdadeiro constitucionalismo.
Ou seja, uma Constituição necessariamente contém elementos atemporais, e uma das formas de visualizá-los é estudar as dinâmicas das respectivas assembleias constituintes. No que diz respeito à estabilidade moldada pela Constituição de 1988, os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte denotam sua reação ao período anterior: especialmente durante a ditadura, proliferaram contratações sem concurso e regimes celetistas precários, abrindo brechas para nepotismo e apadrinhamentos.
No ambiente de redemocratização, os constituintes buscaram fortalecer o serviço público de carreira, exigindo concurso para ingresso e garantindo a estabilidade após o estágio probatório, como forma de profissionalizar a administração.
As pressões por modernização e enxugamento da máquina não são novidade, especialmente na década de 1980, em que o Brasil amargou profunda crise fiscal. E foi nesse contexto que o constituinte optou pela estabilidade como forma de alavancar Brasil, em contraposição ao roteiro de flexibilização que surge em momentos de necessária reorganização econômica, privilegiando uma visão de Estado forte e impessoal.
Percebe-se, portanto, que a estabilidade enquanto ferramenta de gestão pública é um marco atemporal do Estado brasileiro de 1988. A manutenção meramente figurativa do instituto, para dar lugar aos contratos precários e intimidações dos servidores efetivos que restarem, implica em constitucionalismo abusivo por corroer o núcleo central da administração constitucional.
É possível falar em reforma administrativa discursivamente inconstitucional
O modelo de reforma administrativa discursado pelo GT da Câmara enseja graves riscos institucionais e democráticos que ultrapassam a esfera funcional do servidor público e projetam efeitos sistêmicos sobre a própria configuração do Estado brasileiro.
Do ponto de vista institucional, a substituição progressiva de quadros permanentes por agentes contratados sob regimes temporários e desprovidos de garantias mínimas de permanência compromete a continuidade administrativa, a formação de conhecimento técnico acumulado e a memória institucional dos órgãos públicos.
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O enfraquecimento da estabilidade compromete a independência política dos servidores, abrindo caminho para práticas de patrimonialismo, clientelismo e aparelhamento ideológico, justamente os males historicamente combatidos no processo de redemocratização.
Sob a ótica democrática, esses discursos comprometem os mecanismos de contenção do poder previstos no arranjo constitucional de 1988, pois fragilizam uma das principais barreiras à instrumentalização política da burocracia estatal. A estabilidade não constitui privilégio individual, mas proteção institucional voltada a assegurar que o exercício da função pública não se submeta aos humores do governo de turno.
Dessa forma, a reforma administrativa intencionada pelos integrantes do GT, ainda que não revogue expressamente a estabilidade, é exemplo de constitucionalismo abusivo, por meio da manipulação de institutos de exceção previstos na Constituição de 1988 para minar garantias institucionais estruturantes da Administração Pública cidadã e republicana de 1988.