O problema invisível dos 80 milhões de processos
JOTA.Info 2025-08-01
Mais de 80 milhões de processos tramitam hoje no Brasil. Não é novidade. O que talvez ainda não tenhamos enfrentado com a devida profundidade é a pergunta incômoda por trás desse número: por que, apesar de tantas reformas, discursos e esforços institucionais, o volume da judicialização continua a crescer?
Já aprovamos um novo Código de Processo Civil, com foco na consensualidade, na mediação e na valorização dos precedentes. Já investimos em plataformas tecnológicas, câmaras de conciliação e métodos alternativos de resolução de conflitos. Racionalizamos, normatizamos, uniformizamos. Ainda assim, os números não param de subir.
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Talvez porque o problema nunca tenha sido realmente enfrentado. Na verdade, talvez as soluções propostas até aqui tenham, inadvertidamente, agravado o cenário. Em vez de aproximar os sujeitos do processo, acabamos por afastá-los ainda mais. Juízes cada vez mais distantes das partes. Partes cada vez mais invisíveis para os juízes. Advogados cada vez mais limitados em sua atuação. Um sistema que, na tentativa de se tornar mais eficiente, tornou-se menos humano.
O uso dos precedentes como fundamento central das decisões judiciais trouxe, sim, previsibilidade. Mas também gerou um efeito colateral perigoso: decisões tomadas de cima para baixo, com menos escuta, sensibilidade e atenção às especificidades do caso concreto. Julgar passou a ser aplicar um modelo pré-aprovado, muitas vezes sem qualquer contato direto com quem busca justiça. E o incentivo à conciliação, embora relevante, tem sido frequentemente conduzido por estruturas periféricas, que retiram o juiz da cena e transformam o processo em um protocolo a ser cumprido. E não em um espaço de escuta legítima.
A consequência disso é o esvaziamento da confiança no sistema. Quando alguém sente que não foi ouvido, quando percebe que sua história foi tratada como estatística, tende a buscar a justiça de novo. E de novo. E de novo. O conflito não se encerra. Ele se repete. Se multiplica.
O que falta é escuta. Escuta real. Escuta com presença. Escuta com empatia. Falta um sistema que coloque as pessoas de volta no centro. Que reconheça o valor do encontro. Que compreenda que nenhuma racionalização substitui o poder transformador da palavra acolhida e da dor legitimamente reconhecida.
Ainda não tentamos isso. Ainda não apostamos em um modelo de justiça que tenha como premissa o olhar direto, a escuta ativa, o tempo compartilhado. Ainda não tentamos fazer do processo menos um instrumento de controle e mais um espaço de reconstrução da confiança. Não há tecnologia, norma ou precedente que substitua esse gesto fundamental: estar diante do outro, escutá-lo e decidir com a consciência de quem julga pessoas – e não apenas papéis.
Talvez esse seja o verdadeiro passo adiante. Porque nenhuma reforma processual resolverá o que só o encontro pode curar.