Projetos de crédito de carbono: direito à terra e territórios tradicionais no Brasil

JOTA.Info 2025-08-03

A abordagem sobre o mercado voluntário do crédito de carbono no Brasil, no contexto das mudanças climáticas, demonstra a relevância da análise do aspecto fundiário do local onde esses projetos são desenvolvidos, em razão das novas formas de apropriação ilícita de terras públicas, com a finalidade de se beneficiar desses créditos, enquanto ativo financeiro transnacional, em áreas de florestas públicas, que compreendem território de povos e comunidades tradicionais.

A observância do direito à propriedade e posse da terra constituem aspectos antecedentes ao projeto e para sua validade, assim como aos negócios jurídicos que forem realizados, uma vez que não se pode falar em usufruto da floresta e direito à titularidade dos créditos de carbono florestal dissociados do direito de posse e propriedade da terra.

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De acordo com a legislação brasileira, esses projetos geram negócios jurídicos sobre as terras onde as florestas estão situadas. Essa obrigação segue o imóvel rural, independente de quem seja o dono na terra, ou seja, pode a obrigação ser cobrada a partir de quem seja o proprietário da terra, no caso de venda ou doação, por exemplo (Lei 6.015/1974).

Por isso, os negócios jurídicos, decorrentes da comercialização desses créditos, devem constar nos documentos da propriedade da terra (registros imobiliários), que ficam registrados nos cartórios de registros de imóveis, para conhecimento de todos e para a continuidade do cumprimento da obrigação, no caso de venda da propriedade da terra.

Essa matéria ficou elucidada após o advento da Lei 15.042/2024, que instituiu o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa e previu a titularidade do crédito de carbono a partir da titularidade da terra. Assim, no caso de terras públicas devolutas e unidades de conservação, a lei estabelece que a titularidade sobre os créditos de carbono gerados é da União, estados e municípios, conforme a titularidade e usufruto das terras (federais, estaduais, distritais ou municipais).

Para povos indígenas, comunidades agroextrativistas em reservas extrativistas e comunidades quilombolas, a lei também assegura a titularidade do crédito de carbono gerado em suas terras, “independente de titulação”, assim como aos beneficiários dos assentamentos da reforma agrária (artigo 43 da Lei 15.042/2024).

Todavia, muitos projetos de crédito de carbono desconsideram esse direito a terra e alcançam áreas que constituem território de povos e comunidades tradicionais, apropriando-se ilicitamente dos créditos, conforme demonstra o trabalho desenvolvido pela Defensoria Pública do Estado do Pará, que aponta a “grilagem do crédito de carbono”.

Essa grilagem consiste na apropriação ilícita de terras públicas, em áreas de florestas públicas, mediante a elaboração de documento que simule a propriedade privada da terra (como é o caso do uso do Cadastro Ambiental Rural) com o propósito de se apropriar ilicitamente da titularidade do crédito de carbono florestal, enquanto ativo financeiro transnacional e fruto civil das florestas, para auferir lucro financeiro na sua comercialização, no mercado internacional.

No monitoramento permanente realizado pela Defensoria Pública, iniciado no ano de 2023, foram alcançados mais de seiscentos documentos de propriedade da terra, nos anos de 2023 ao ano de 2025, registrados irregularmente em nos cartórios de registros de imóveis do estado do Pará, que compreende a Amazônia brasileira.

Parte desses documentos estavam sobre áreas de comunidades tradicionais ribeirinhas em área de florestas protegidas e destinadas pelas comunidades, em projetos de crédito de carbono elaborados por empresas não brasileiras que se apropriaram ilicitamente desses créditos, sem qualquer benefício social para as comunidades tradicionais.

Nesse sentido, nesses projetos,  não se pode desprezar o aspecto fundiário (direito de posse e propriedade da terra), assim como a responsabilidade dos compradores destes créditos, social e ambiental,  já que em projetos ilegais tem-se a ilegalidade dos negócios jurídicos que comercializam esses créditos. Afinal, se o projeto não protege a floresta e viola o direito de comunidades tradicionais, povos indígenas e quilombolas, na prática, aquele que comprou os créditos também não compensa suas emissões, assim como gera impacto social e climático.

Portanto, para o debate sobre as mudanças do clima e implementação dos projetos de crédito de carbono, mostra-se relevante o enfrentamento de problemas fundiários, estruturais e históricos, especialmente no complexo sistema fundiário brasileiro, que está associado ao desmatamento e apropriação ilícita de terras em áreas de florestas públicas, que compreendem territórios tradicionais. Em outros termos, enfrentar a apropriação ilícita de terras públicas e do crédito de carbono constitui medida de proteção dos territórios tradicionais e de enfrentar a “lavagem climática”.

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Este artigo é fruto das reflexões realizadas no âmbito do projeto/prática “Combate à Grilagem do Carbono”, desenvolvido na Defensoria do Estado do Pará, premiado como prática destaque no tema meio ambiente e sustentabilidade, na 21ª edição do Prêmio Innovare