Mulheres vítimas de violência e preservação do direito à imagem fora dos autos
JOTA.Info 2025-08-04
No último dia 15 de julho, o estado do Rio Grande do Norte aprovou a Lei 12.258/2025, disciplinando a proibição da utilização pelo agressor do nome ou imagem da mulher vítima de feminicídio ou de violência doméstica.
A medida legislativa, embora providencial e acertada, não constitui uma novidade propriamente dita, uma vez que, em novembro de 2023, o Maranhão, de forma pioneira, já havia aprovado a Lei Estadual 12.118/2023, diploma popularmente conhecido como Lei Mariana Costa, regulamentando também, dentro do seu território, a vedação do uso do nome e/ou da imagem da vítima de feminicídio ou de violência doméstica pelo agressor ou por seus familiares. Em 18 de dezembro de 2024, a Paraíba também aprovou legislação específica a respeito do tema.
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As três leis estaduais chamam a atenção para um ponto específico do enfrentamento à violência contra as mulheres observado com alguma frequência – sobretudo em casos envolvendo agressores com significativo poderio financeiro –, mas pouco debatido: a necessidade de preservação da imagem da vítima fora do processo em curso.
Infelizmente, não é incomum a constatação do uso da imagem e/ou nome da vítima fora dos autos com o objetivo de, a um só tempo, influenciar o resultado do processo (inclusive em casos de feminicídio) e, ainda, vilipendiar a dignidade da ofendida. Postagens depreciativas em redes sociais, produções audiovisuais objetivando desconstruir a imagem da vítima, fixação de outdoors pela cidade, veiculação do nome e/ou imagem da vítima em notícias falsas. Todos os exemplos mencionados foram extraídos de casos reais.
Nessa perspectiva, as leis aprovadas por MA, PB e RN guardam intensa similitude. A Lei maranhense dispõe em seu art. 1º que: “Fica proibida a utilização do nome e/ou imagem de mulher vítima de feminicídio ou de violência doméstica, por parte do agressor ou sua família, em mídias, propagandas ou entrevistas, sejam virtuais ou impressas, no âmbito do Estado do Maranhão”.[1] O diploma potiguar possui dispositivo inaugural análogo[2], tal como ocorre na lei estadual paraibana[3].
Os diplomas estaduais mencionados preveem como termo a quo para a referida proibição a concessão da medida protetiva de urgência à ofendida (art. 1º, §2ª, das três leis estaduais) e estabelecem, ainda, um prazo de 48 horas para a remoção do conteúdo veiculado indevidamente com o nome ou a imagem da mulher vítima de violência (art. 1º, §1º, das três leis estaduais).
Em caso de descumprimento, as leis em comento estabelecem a penalidade de multa e a destinação dos valores arrecadados à promoção de políticas públicas voltadas à defesa do direito das mulheres (art. 2º, §2º, da Lei 12.258/2025; art. 4º da Lei 12.118/2023; e art. 2º da Lei 13.513/2024).
Pois bem. Realizado esse panorama acerca da forma pela qual o tema foi regulamentado pelos Estados do Maranhão, Paraíba e Rio Grande do Norte, parece-nos necessário aprofundar alguns pontos: a) abrangência do direito fundamental à imagem; b) a constitucionalidade das leis estaduais mencionadas e; c) propostas para o aperfeiçoamento do tema.
Abrangência do direito fundamental à imagem
Dentre o rol de direitos fundamentais previstos no catálogo da Constituição Federal de 1988, o Poder Constituinte Originário inseriu o direito à imagem logo no art. 5º, inciso X (“são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”).
Em âmbito infraconstitucional, o direito à imagem também recebe a roupagem de direito da personalidade, visto que possui regramento disciplinado pelo Capítulo II do Código Civil de 2002 (Dos Direitos da Personalidade), especificamente no art. 20 do mencionado codex, o qual conta com a seguinte redação: “Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais”.
Da interpretação dos artigos mencionados, é possível deduzir sem maiores esforços interpretativos a existência de um sólido alicerce normativo que protege o direito fundamental à imagem de violações por parte de terceiros. No âmbito do enfrentamento à violência contra as mulheres, o tema ganha contornos ainda mais sensíveis, tendo em vista a situação de vulnerabilidade vivenciada pela ofendida.
Não por acaso, em maio de 2024, o legislador alterou a Lei Maria da Penha e acrescentou o art. 17-A, que disciplina o sigilo do nome da vítima em processos nos quais se apurem crimes cometidos em contexto de violência doméstica e familiar.
Dito isso, e com a finalidade de esclarecer o real alcance das leis estaduais aprovadas pelos estados do Maranhão, Paraíba e Rio Grande do Norte em prol das mulheres vítimas de violência, é necessário destacar ao leitor que doutrina[4] e jurisprudência[5] classificam o direito fundamental à imagem a partir de uma tríplice compreensão: a) imagem-retrato, b) imagem-atributo e c) imagem-voz.
Em breve síntese, a “imagem-retrato” pode ser compreendida pela reprodução gráfica da figura humana (v.g., fotos, vídeos etc.). Já a “imagem-atributo” consiste no conjunto de expressões cultivadas pela própria pessoa e reconhecidas pela sociedade (v.g., honra objetiva e subjetiva). Por fim, a “imagem-voz” é caracterizada pela reprodução fonográfica e sonora da voz humana.
Neste contexto, as leis estaduais que proíbem a utilização da imagem da mulher vítima de violência doméstica e familiar pelo agressor ou por seus familiares devem ser aplicadas aos três espectros do direito fundamental à imagem: imagem-retrato, imagem-atributo e imagem-voz. Esta é, aliás, a única interpretação que se coaduna com o art. 5º, inciso X, da Constituição Federal de 1988.
Constitucionalidade das leis estaduais em comento
Outro ponto que certamente merece uma abordagem destacada neste texto diz respeito ao tema da constitucionalidade das respectivas leis estaduais aprovadas pelos estados do Maranhão, Paraíba e Rio Grande do Norte. Desde já, este articulista se posiciona de forma categórica pela constitucionalidade das respectivas leis.
O sistema constitucional de repartição de competências permite aos Estados, de forma concorrente à União, legislar sobre procedimentos, nos termos do art. 24, inciso XI, da Constituição Federal de 1988. Não havendo norma geral específica sobre a matéria, o próprio texto constitucional autoriza o exercício da competência plena pelos Estados, conforme dispõe o artigo 24, §3º, da Constituição Federal de 1988.
A título exemplificativo, em abril de 2024, o Supremo Tribunal Federal julgou constitucional uma lei editada pelo estado de Mato Grosso que criou o chamado “Cadastro Estadual de Pedófilos e condenados por crimes cometidos em contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher”.[6]
Seguindo a mesma linha de raciocínio, e também em matéria de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher, inúmeros Estados da Federação editaram leis estaduais disciplinando procedimentos a serem aplicados em caso de constatação de episódio de violência doméstica ou familiar contra a mulher no interior de condomínios edilícios. O tema já foi inclusive abordado de forma aprofundada nesta coluna.[7]
Diante deste cenário, é possível afirmar que a contribuição para o aperfeiçoamento do sistema de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher pelos Estados não é de hoje, e que o Supremo Tribunal Federal vem convalidando iniciativas adotadas nesse sentido.
Propostas para o aperfeiçoamento do tema
Em termos metodológicos, o aperfeiçoamento da proteção à imagem da mulher vítima de violência fora dos autos pode ser dividido em dois fronts: as iniciativas promovidas pelo próprio Poder Público, tais como as três leis estaduais editadas pelos estados do Maranhão, Paraíba e Rio Grande do Norte, e, ainda, as possibilidades de atuação da própria vítima perante o sistema de justiça, objetivando a remoção do ilícito.
Sob a primeira perspectiva, embora – reitera-se – sejam louváveis as iniciativas promovidas pelos três Estados mencionados ao longo deste texto, o ideal, em termos protetivos, especialmente a fim de assegurar uma proteção para todas as mulheres vítimas de violência em território nacional, consistiria justamente na edição de uma lei federal disciplinando ao menos normas gerais a respeito do tema, sem retirar a autonomia dos Estados para legislar – sempre de forma mais protetiva – de modo suplementar.
Rememora-se ao leitor um ponto muito importante: as iniciativas promovidas pelos estados do MA, PB e RN promovem a preservação da imagem da mulher vítima de violência administrativamente, consolidando um iter procedimental mediante a utilização da estrutura da própria administração pública para fiscalizar eventual ilícito e aplicar multa ao agressor e/ou aos seus familiares. Nesta via, não há alternativa mais adequada senão a capilarização do modelo estadual já implementado pelos três Estados para todo o país.
A expansão do modelo em comento ao longo deste texto não impede, porém, que a própria vítima postule perante o sistema de justiça a remoção do ilícito e a consequente reparação pelos danos causados, nos exatos termos do art. 5º, inciso X, da Constituição Federal de 1988, e do art. 20 do Código Civil. Em verdade, somente a coexistência de ambos os modelos protetivos (atuação estatal e atuação da vítima) é capaz de oferecer uma resposta adequada à luz do texto constitucional e dos parâmetros protetivos oriundos do Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Na perspectiva da vítima, o Superior Tribunal de Justiça possui um robusto emaranhado de entendimentos em matéria de preservação do direito à imagem e arbitramento de indenização pelos danos causados às mulheres vítimas de violência.
A título de exemplo, chegou recentemente ao Tribunal da Cidadania um caso envolvendo a realização de matéria jornalística por determinado veículo de comunicação que, ao noticiar um crime de estupro de vulnerável, atribuiu conduta ativa (leia-se, responsabilidade) à vítima. Na oportunidade, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a natureza ilícita do ato por abuso de direito e o consequente dever de indenizar o dano psicológico causado à ofendida.[8]
Em outra oportunidade, ao analisar um caso cível envolvendo a prática conhecida como “pornografia de vingança”, a Corte reconheceu ser desnecessário que o rosto da mulher vítima de violência esteja evidenciado para fins de caracterização do dano moral.[9]
Para além da postulação de eventual reparação pelos danos causados à imagem, mulheres vítimas de violência também encontram no sistema de justiça uma via célere para a remoção do conteúdo ilícito envolvendo seu nome e/ou imagem. Em tais casos, a propositura de uma tutela cautelar antecedente de remoção do ilícito, nos termos do art. 497, parágrafo único, do CPC, atinge de forma célere o fim colimado pela ofendida: a remoção do conteúdo atentatório à sua imagem. Ao redigir o mencionado artigo, o legislador sequer exigiu a existência de dolo ou culpa. Vejamos: “para a concessão da tutela específica destinada a inibir a prática, a reiteração ou a continuação de um ilícito ou a sua remoção, é irrelevante a demonstração da ocorrência de dano ou da existência de culpa ou dolo”.[10]
Entretanto, embora o sistema de justiça disponha de instrumentos céleres para a remoção do ilícito, não se desconhece a dinamicidade dos danos causados à imagem de mulheres vítimas de violência em um período conhecido como “era das redes sociais”. A situação se acentua em razão de tais atos ilícitos geralmente serem praticados durante a tramitação de processo cível ou criminal envolvendo a ofendida e o agressor.
O referido estado de coisas torna ainda mais importante a extensão para todo território nacional do modelo “administrativo” instituído pelos estados do Maranhão, Paraíba e Rio Grande do Norte. Em última análise, os modelos administrativo e judicial se complementam e possuem uma única razão de existir: proteger a imagem de mulheres e meninas vítimas de violência fora dos autos em que figuram na posição de vítimas.
Espero que tenham gostado. Até a próxima!
[1] MARANHÃO. Lei nº 12.118, de 10 de novembro de 2023. Estabelece a proibição da utilização do nome ou imagem da mulher vítima de feminicídio ou violência doméstica, no âmbito do Estado do Maranhão. São Luís: Assembleia Legislativa, 2023.
[2] RIO GRANDE DO NORTE. Lei nº 12.258, de 15 de julho de 2025. Dispõe sobre a proibição da utilização do nome ou imagem da mulher vítima de feminicídio ou violência doméstica, no âmbito do Estado do Rio Grande do Norte. Natal: Assembleia Legislativa, 2025.
[3] PARAÍBA. Lei nº 13.513, de 18 de dezembro de 2024. Dispõe sobre a proibição da utilização do nome ou imagem da mulher vítima de feminicídio ou violência doméstica, no âmbito do Estado da Paraíba. João Pessoa: Assembleia Legislativa, 2024.
[4] GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. 27. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2025, p. 221.
[5] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 569812/SC. Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 16/6/2005
[6] STF, ADI 6620, Rel. Min. Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, julgado em 18/04/2024
[7] HEEMANN, Thimotie Aragon. Condomínios edilícios e o combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. Jota, 2025. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direito-dos-grupos-vulneraveis/condominios-edilicios-e-o-combate-a-violencia-domestica-contra-a-mulher. Acesso em: 01 ago. 2025.
[8] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1875402/SP. Rel. Min. Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 23/4/2024
[9] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1735712/SP. Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 19/5/2020,
[10] BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil.