A vontade de competência: a arte de condenar por cartel quem não fez parte de um

JOTA.Info 2025-08-04

Há um desafio que permeia qualquer sistema jurídico: acomodar as relações mútuas de seus institutos frente aos casos concretos levados ao Judiciário, às possibilidades latentes ainda por emergir e às incertezas que, presumivelmente, nem sequer poderiam ser concebidas à época de confecção da norma-base.

É intuitivo, portanto, que esse trabalho de acomodação seja um esforço diário, provavelmente sem fim, que depende de análise multilateral para que qualquer solução possa ser comemorada como passo de formiguinha.

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Vamos clarear com um exemplo. Todo mandado de busca e apreensão deve ter objeto bem delimitado[1] para evitar a fishing expedition por magistrados voluntaristas e o abuso de autoridade por policiais vigilantes[2] – uma barreira jurídica ao complexo de Batman que, vez por outra, acomete alguns desses agentes públicos.

Mas, para não se desequilibrar as forças processuais, nem se decretar um carnaval de nulidades a defensores convenientemente formalistas, foi necessário criar algumas chaves hermenêuticas para afastar problemas. Daí surgirem racionais como a teoria do juízo aparente e a admissão do encontro fortuito de provas (serendipidade) para servirem à justificativa de que, em certos casos, a produção atípica de prova não será nula.

Ocorre que, por vezes, essas chaves servem mais como facilitações do mau raciocínio, como camuflagem do non sequitur; na prática, um alívio ao dever de fundamentação da autoridade que deseja adotar determinado instrumento jurídico, mas se vê tolhida por alguma garantia fundamental metida a besta.

Então, tais teorias – que supostamente contam com premissas e condições de aplicação restritivas – se transformam em presunções puras, mesmo que evidentemente não legais.[3] Imposturas jurisdicionais e ministeriais dessa espécie também precisam ser debatidas fora dos autos, já que, lá dentro, os incentivos à superação ao corporativismo são mais fracos.

Recentemente tive contato com um caso curioso que conjuga esses tópicos do exemplo acima. Era o caso de cartel de combustíveis do Distrito Federal. Acompanhe a trama comigo, à moda de Shakespeare:

Ato I – a Justiça do DF, ao investigar cartel sob sua jurisdição, determina medidas que acabam revelando a interestadualidade das condutas;

Ato II – a Justiça do DF não comunica os fatos à Justiça Federal, que seria competente para a matéria, e segue à condenação dos agentes domiciliados no DF;

Ato III – a Justiça do DF empresta as provas produzidas sobre condutas interestaduais ao Cade, que condena administrativamente agentes do DF e de outros estados;

Ato IV – alguns dos sancionados administrativamente, não tendo exercido contraditório judicial porque não eram investigados, e tendo-o exercido na esfera administrativa “à moda do Cade”, suscitam a nulidade perante a Justiça Federal;

Ato V – a Justiça Federal, reconhecendo (1) sua competência para cartéis interestaduais e (2) que os sujeitos fora da jurisdição do DF jamais foram investigados ou processados, declara a Justiça do DF o “juiz natural” da causa com base no encontro fortuito de provas.

Os ansiosos talvez queiram discutir o evidente bis in idem nesse caso – apesar de o STF ter criado a fórmula de facilitação da “independência de instâncias” para tentar sepultar o problema[4] –, mas a proposta deste texto é outra: desde quando encontro fortuito é causa para fixação do juiz natural?

Pensemos juntos: se a Justiça Federal declara a Justiça Distrital o juiz natural de um caso de cartel interestadual por causa do encontro fortuito de provas, a Justiça Distrital passaria a ser, consequentemente, preventa para aquele caso. Isso, porque a prevenção é uma aptidão dos juízes competentes; um juiz incompetente não é prevento em hipótese alguma.

Daí devemos lembrar o entendimento do STJ de que o encontro fortuito não gera prevenção[5]; e, se não gera, a premissa do juiz natural cai por terra em absolutamente qualquer hipótese[6] de juiz incompetente que conhece de fato jurídico por encontro fortuito de provas.

Era esperado que assim fosse, pois o STJ, ao fixar esse entendimento, corretamente, considerou a nossa hipótese: se um juiz incompetente toma conhecimento de um delito por encontro fortuito de provas, ele não pode se tornar prevento justamente porque nunca foi competente para conhecer do fato jurídico. Não existe juiz natural incompetente; afinal, se o juiz é incompetente, jamais será natural. E é igualmente um contrassenso o juiz ser natural e inapto à prevenção, simultaneamente.[7] Tentar suprir incompetência por simples prática de ato processual é, portanto, um descalabro.

Por isso que a jurisprudência do STJ estabelece, como premissa, que o encontro fortuito de provas, quando realizado por juiz incompetente, seja seguido pela comunicação e remessa àquele que detenha competência para o caso[8] – ato processual que, algumas vezes, é qualificado como “dever de ofício de comunicar”.[9]

Mas, se a Justiça do DF decide, por omissão própria, não comunicar a Justiça Federal sobre os fatos que extrapolam sua competência, está obstando o real destinatário daquela prova – o juiz natural – de realizar o seu controle, inclusive por meio da garantia constitucional ao contraditório e à ampla defesa.[10] Exatamente por esta razão – o que não deveria surpreender qualquer justiceiro de repartição – o STJ considera que prova produzida por juiz incompetente é prova ilícita e, portanto, nula.[11]

Como um juiz, que não deseja ser forçado a declarar a nulidade dessas provas, pode limpar a barra do Judiciário e, por tabela, do Cade também? Muito simples: basta tirar da cartola o coelho da teoria do juízo aparente, pois, se a prova foi conhecida por um juiz que, na época, era aparentemente competente e, depois, foi declarado incompetente, seus atos podem ser convalidados e não há nulidade a ser reconhecida.

É uma forma meio infundada, porém eficaz, de bater a porta do tribunal na cara do jurisdicionado antes mesmo que ele possa perguntar: “mas, se o cartel era interestadual, como diabos ele achou que era competente?”

No Brasil, a Justiça do dia a dia não gosta muito de perguntas difíceis. Prefere deixar para as Cortes superiores decidirem mesmo que – verdade seja dita – elas também não estejam lá muito afins… No nosso pesadelo concreto, a Justiça do DF não atentou para a competência da Justiça Federal fixada pela Lei 10.446, de 2002[12], pela Orientação MPF 9, de 2014, pelo entendimento do CNMP[13] e pela jurisprudência do STJ.[14]

Assombra também a Justiça Federal não querer saber da sua competência. Qual dessas figuras seria a mais nefasta ao Estado de Direito: o juiz que não conhece o direito, ou o juiz que simplesmente não se importa?

Deixo a escolha ao leitor, mas atento à semelhança: os dois julgadores, implícita ou explicitamente, adotam “serendipidade”, “encontro fortuito” e “juízo aparente” como se fossem presunções, como um trampolim facilitador do duplo carpado hermenêutico: “se encontro fortuito, logo juiz natural”, ou “se juízo aparente, então válido”.

Para o juiz voluntarista, que tem vontade de competência – um verdadeiro “tesão por julgar”, na língua de Clóvis – e não pode deixar os supostos malfeitores escaparem por entre seus dedos, receber aval para desconsiderar as premissas e regras de aplicação desses institutos jurídicos é uma benção. E o jurisdicionado que se queixe ao bispo!

Assistir aos tribunais validando esse tipo de impostura jurisdicional lembra a resposta que Marco Lombardo deu ao cortesão estúpido quando este lhe perguntou o porquê de não receber presentes: “Ora, não é por outro motivo, senão porque você encontrou mais dos seus do que eu dos meus.”[15] Cedo ou tarde todo advogado percebe que seu trabalho é como o de Sísifo; e a acomodação da qual falamos no começo é a pedra que insiste em rolar montanha abaixo.


[1] Art. 243 do Código de Processo Penal.

[2] Art. 25 da Lei nº 13.869, de 2019.

[3] MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. “Quando as presunções deixam de ajudar e passam a turvar a cognição do julgador”. In: RIBEIRO, Carlos Vinicius Alves; DIAS TOFFOLI, José Antonio; RODRIGUES JR., Otávio Luiz (Coords.). Estado, direito e democracia: estudos em homenagem ao prof. dr. Augusto Aras. Belo Horizonte: Fórum, 2021, pp. 81-92.

[4] HC nº 198.911 ED-AgR/SP, Rel. Min. Edson Fachin, Segunda Turma, DJe 7.6.2021; RMS nº 33.582 AgR/DF, Rel. Min. Rosa Weber, 2.10.2020.

[5] RHC nº 47.009/SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, DJe 8.11.2016.

[6] Vale um esclarecimento aqui: dizer que um juiz não é prevento por causa do encontro fortuito não significa que dizer que não possa ser o juiz natural após o encontro fortuito. O racional estabelecido pelo STJ apenas tenta evitar que a prevenção seja entendida como consequência necessária do encontro fortuito, o que erroneamente supriria a verificação de competência no caso concreto. Por exemplo, se um juiz toma conhecimento, por encontro fortuito, de fato jurídico cuja matéria está sob sua competência, e ele é o único competente para aquela matéria em sua comarca, ele se torna o juiz natural não por causa da prevenção, mas pela inexistência de outros juízes competentes para conhecer da prova. Ou seja, a competência exclusiva, não a prevenção, é o fator determinante nesta hipótese.

[7] Se a prevenção é aptidão do juiz competente, deve-se concluir que o juiz inapto à prevenção o é por causa da incompetência. Mas esclareçamos um ponto a mais: inaptidão à prevenção não se confunde com não ser prevento no caso concreto. Um juiz do trabalho é inapto à prevenção de causas criminais, mas um juiz federal criminal não é necessariamente prevento para todo e qualquer fato novo referente a uma operação de repressão à macrocriminalidade econômica – como nos ensinou a Operação Lava Jato. Ou seja, enquanto, no primeiro caso, o juiz não é natural em nenhuma hipótese, no segundo, ao menos poderia ser, se prevento. A conclusão, em dois postulados: (1) se é inapto, logo é incompetente, portanto não é juiz natural; e (2) se é apto, logo é competente, portanto pode ser juiz natural.

[8] REsp nº 1.840.783/RS, Rel. Min. Messod Azulay Neto, decisão monocrática, DJEN 10.6.2025; AgRg no AREsp nº 1.130.864/AP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, Quinta Turma, DJe 28.6.2021; HC nº 482.040/PA, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, DJe 23.5.2019; HC nº 395.983/DF, Rel. Min. Nefi Cordeiro, Sexta Turma, DJe 26.9.2018.

[9] REsp nº 2.101.414/RN, Rel. Min. Carlos Cini Marchionatti (Desembargador convocado do TJRS), decisão monocrática, DJEN 1.7.2025.

[10] Art. 5º, inciso LV, CRFB/88.

[11] A jurisprudência nesse ponto é tão clara, inequívoca e volumosa que a leitura chega a ser maçante: RHC nº 130.197/DF, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, DJe 12.11.2020; RHC nº 23.715/MT, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, Sexta Turma, DJe 2.2.2017; AREsp nº 245.077/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, decisão monocrática, DJe 22.10.2013; AgRg no RHC nº 119.456/SC, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, DJe 12.11.2021; AREsp nº 1.913.397/SC, Rel. Min. Laurita Vaz, decisão monocrática, DJe 13.2.2023; RHC nº 168.797/PI, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, DJe 10.3.2023. Faço questão de destacar um precedente feito sob medida para o nosso caso: “O Estado Democrático de direito não admite o aproveitamento de atos praticados por juiz incompetente, mesmo, segundo alguns, em nome da moralidade ou combate à criminalidade. 3. No caso epígrafe, as provas obtidas por meio de interceptações telefônicas, não possuem eficácia jurídica, vez que deferidas por Juiz Estadual de plantão, em questões que eram de competência da Justiça Federal. 4. Ordem concedida para determinar o desentranhamento de toda a prova obtida por juízo incompetente.” (HC nº 148.261/RS/ Rel. Min. Laurita Vaz, Quinta Turma, DJe 14.8.2012.)

[12] Art. 1º Na forma do inciso I do § 1º do art. 144 da Constituição, quando houver repercussão interestadual ou internacional que exija repressão uniforme, poderá o Departamento de Polícia Federal do Ministério da Justiça, sem prejuízo da responsabilidade dos órgãos de segurança pública arrolados no art. 144 da Constituição Federal, em especial das Polícias Militares e Civis dos Estados, proceder à investigação, dentre outras, das seguintes infrações penais: (…) II – formação de cartel (incisos I, a, II, III e VII do art. 4º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990); (…)

[13] Conflito de Atribuições nº 1.00405/2021-16, Rel. Cons. Oswaldo D´Albuquerque, Plenário, j. 2.6.2021.

[14] HC nº 117.169/SP, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 16.3.2009; HC nº 32.292/RS, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ 3.5.2004; CC nº 194.007/BA, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, decisão monocrática, DJe 10.2.2023.

[15] ANÔNIMO. O Novellino: as cem novelas antigas, ou livro de novelas e de bem falar gentil. Araçoiaba da Serra: Editora Mnēma, 2024, p. 134.