O tempo não resolve todos os problemas: o caso do art. 29 da Lei Anticorrupção

JOTA.Info 2025-08-16

O Partido Verde acionou o Supremo Tribunal Federal (STF), durante o recesso da corte, para questionar a constitucionalidade do art. 29 da Lei 12.846/2013, a Lei Anticorrupção, que assim dispõe: “O disposto nesta Lei não exclui as competências do Conselho Administrativo de Defesa Econômica, do Ministério da Justiça e do Ministério da Fazenda para processar e julgar fato que constitua infração à ordem econômica”.

A ADI 7846 aponta que o dispositivo permitiria o tão conhecido conflito entre balcões, de modo que as punições pelos diversos legitimados a partir de um ato de corrupção poderiam ser cumulativas, sem a devida compensação entre as esferas.

Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas

A discussão não é propriamente nova. Na ADI 7.449/DF, o Sindicato Nacional da Indústria da Construção Pesada defendia que fosse conferida interpretação conforme ao art. 29 da Lei 12.846/2013, “de modo a atribuir-lhe o sentido segundo o qual as competências do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e dos Ministérios da Justiça e da Fazenda para processar e julgar fato que constitua infração à ordem econômica não alcançam a pessoa jurídica que responder ou houver respondido a processo sancionatório perante a Controladoria-Geral da União (CGU) pelo mesmo fato, sob pena de haver sobreposição de sanções que ofenda a princípio de ne bis in idem”. A ação, porém, acabou não conhecida pelo STF.

O tempo passou, mas o problema continuou a existir.

Como se sabe, os cartéis atingem também as contratações públicas, de forma a aumentar os lucros dos participantes, apresentando as mais diversas manifestações: propostas fictícias, não apresentação de propostas, rodízios de concorrentes, divisão de mercados, subcontratações etc. Por vezes, agentes públicos são corrompidos com o escopo de direcionarem licitações em favor de alguns grupos cartelizados.

A cartelização é causa direta do dano relativo ao sobrepreço obtido indevidamente pelas empresas cartelizadas. Com os mecanismos combinados, é possível restringir a oferta e elevar o preço de venda à Administração. Assim, a diferença de preço com e sem a atuação do cartel, multiplicada pela quantidade vendida no período em que duraram as condutas anticompetitivas constituiria uma primeira manifestação do dano que as práticas combinadas poderiam gerar.

O cálculo deste sobrepreço é matéria que goza de diversos critérios, sendo analisado classicamente pelo Cade, na forma da Lei 12.529/2011. É importante ter em mente que, de acordo com a Lei de Defesa da Concorrência, em seu art. 36, §3º, I, d, constitui infração à ordem econômica –acordar, combinar, manipular ou ajustar com concorrente, sob qualquer forma preços, condições, vantagens ou abstenção em licitação pública.

Ocorre que, em sentido bastante semelhante, o art. 5º da Lei 12.846/2013 estabelece que constituem atos lesivos à administração pública, nacional ou estrangeira, aqueles que, no tocante a licitações e contratos, frustrem ou fraudem, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo de procedimento licitatório público. Há nítida sobreposição, portanto, entre as condutas previstas na Lei Anticorrupção e na lei do Cade.

O dispositivo do art. 29 da Lei 12.846/2013 merece interpretação conforme, a fim de que a responsabilização relacionada ao ressarcimento de danos em decorrência das práticas de cartel ocorra exclusivamente em uma única esfera, de preferência o Cade, o qual apresenta maior expertise no levantamento do eventual dano ocasionado pela prática colusiva.

Como apontado pelo Partido Verde, há risco relevante de, considerando a premissa de reparação integral, mais de um órgão reputar-se competente para o referido ressarcimento, havendo enriquecimento sem causa do Estado, problema este há muito conhecido no âmbito dos acordos de leniência e de não persecução.

Ao menos quanto o dano a ser ressarcido, não é coerente com a vedação ao enriquecimento sem causa do Estado que os valores atinentes ao sobrepreço e danos eventualmente causados sejam objeto de ressarcimento tanto na esfera do Cade, quanto na esfera da Lei Anticorrupção.

Se isto fosse possível, restaria evidenciado que a primeira esfera condenatória não teria sido integral, a abrir espaço para condenação posterior, ainda que suplementar, o que indicaria verdadeira contradição sistêmica. Nesta lógica, sempre subsistiria o questionamento quanto à entidade competente para proferir a última palavra no que se refere ao cálculo do valor a ser ressarcido.

De fato, diante da tradicional e mais preparada competência do órgão de defesa da concorrência, é salutar a resolução do conflito entre órgãos colegitimados. Os últimos tempos têm sinalizado um melhor diálogo institucional, com o Acordo de Cooperação Técnica 01/2020 CGU/AGU/MJSP/TCU, bem como o Acordo de Cooperação Técnica CGU/Cade 52/2023, no qual a Controladoria procura aproximar-se do Cade.

Como apontado em outro texto publicado neste JOTA, embora ainda seja cedo para se cogitar uma mesa conjunta de negociação de leniência CGU/Cade, o Supremo Tribunal Federal pode auxiliar na aproximação dos referidos legitimados, coordenando os balcões. Vamos torcer para que o mérito finalmente seja julgado!