Privacidade digital e investigação penal: celular como extensão da mente e do corpo
JOTA.Info 2025-08-16
Em 2014, a Suprema Corte dos Estados Unidos, no julgamento do caso Riley v. California, afirmou que os celulares modernos são “verdadeiras janelas para a vida privada” e, por isso, o seu acesso pelo Estado demanda rigoroso controle judicial. O entendimento ecoa com força no Brasil, onde a discussão sobre a apreensão e o desbloqueio de celulares em investigações criminais ainda carece de parâmetros claros e uniformes.
Nas últimas décadas, os celulares deixaram de ser meros aparelhos para chamadas e mensagens e se tornaram dispositivos centrais da vida cotidiana. Hoje, armazenam contatos, agendas, registros de localização, históricos de navegação, conversas privadas, fotos, vídeos, comprovantes de pagamento, documentos de trabalho, dados médicos e muito mais.
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Em termos práticos, funcionam como extensões do corpo e da mente, guardando fragmentos de memória e traços da personalidade de seus usuários. Essa densidade informacional desperta o interesse não apenas de empresas que personalizam anúncios, mas também das autoridades responsáveis pela persecução penal, para as quais o celular se converte em um verdadeiro repositório de informações pessoais e contextuais, capaz de oferecer ao processo penal elementos objetivos que auxiliam na elucidação dos fatos investigados.
O valor probatório dos celulares no processo penal
Historicamente, um dos maiores desafios do processo penal sempre foi provar o elemento volitivo — a intenção do agente no momento da conduta. No plano acadêmico e teórico, é relativamente simples identificar a intenção de um agente ao cometer um crime. Em enunciados de provas universitárias, por exemplo, as intenções costumam ser claramente explicitadas, quase como se pairasse sobre a cabeça do personagem um “balão de pensamento”, típico das histórias em quadrinhos.
Na prática forense, porém, a realidade é muito mais complexa. É raro saber, com certeza, o que se passava na mente de uma pessoa no momento da ação. Teria ela a intenção de matar ou apenas lesionar? Assumiu o risco do resultado ou acreditou sinceramente que nada aconteceria? Tinha o propósito de injuriar ou fez apenas uma brincadeira de mau gosto?
Nesse cenário, o celular funciona como uma “memória externa” do indivíduo. Conversas, pesquisas, anotações, geolocalizações e registros multimídia podem fornecer indícios objetivos que, somados a outros elementos, ajudam o juiz a formar seu convencimento motivado.
Mas, como determina o art. 5º, X e XII, da Constituição Federal, o acesso a esse conteúdo não pode ser irrestrito. Obrigar alguém a desbloquear o próprio aparelho pode configurar violação ao direito à não autoincriminação (nemo tenetur se detegere), protegido também pelo Pacto de San José da Costa Rica.
O Superior Tribunal de Justiça já reconheceu, no RHC 51.531/RO, que o acesso ao conteúdo de um celular só pode ocorrer com consentimento expresso do titular ou ordem judicial fundamentada, que demonstre a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida.
Essa compreensão, contudo, não encerra a discussão. Em razão da relevância prática e da frequência com que a questão se apresenta nas investigações, o Supremo Tribunal Federal foi chamado a estabelecer parâmetros mais objetivos. O resultado foi o julgamento do Tema 977 de repercussão geral, no qual a corte buscou equilibrar a proteção da privacidade digital com as exigências da persecução penal, definindo hipóteses em que o acesso a dados de celulares pode ocorrer sem autorização judicial prévia.
Tema 977 do STF: a flexibilização da reserva de jurisdição
O STF, ao julgar o ARE 1.042.075/SP, fixou a tese de repercussão geral conhecida como Tema 977. A corte decidiu que:
- A mera apreensão física de um celular não exige autorização judicial.
- O acesso aos dados internos, como regra, depende de consentimento expresso do titular ou de ordem judicial fundamentada e delimitada.
- Excepcionalmente, no caso de encontro fortuito de um aparelho, é legítimo acessar dados apenas para identificar o proprietário ou esclarecer autoria, mesmo sem ordem judicial prévia, desde que haja justificação posterior.
- A autoridade policial pode adotar medidas para preservar os dados antes da autorização judicial, como desconectar o aparelho da internet para evitar apagamento remoto.
No caso concreto, um acusado de roubo deixou cair seu celular durante a fuga. Policiais acessaram dados do aparelho, identificaram o proprietário e realizaram a prisão. O STF entendeu que a medida foi legítima, pois visava exclusivamente à identificação do autor do crime.
Entre proteção e eficiência
A decisão do STF introduz uma distinção relevante:
- Celular apreendido junto ao investigado (especialmente em flagrante): exige ordem judicial ou consentimento para acesso ao conteúdo.
- Celular encontrado longe do titular: admite acesso limitado para identificação, com justificativa posterior.
Essa diferenciação, ainda que prática, reforça a visão do celular como extensão da mente e do corpo. Quando próximo ao titular, goza de máxima proteção; quando afastado, admite-se mitigação parcial dessa proteção.
O desafio adiante
À medida que a relação entre pessoas e dispositivos móveis se intensifica, a Justiça brasileira precisará refinar os critérios para compatibilizar direitos fundamentais e eficiência investigativa.
Isso requer atualização legislativa e jurisprudencial constante, capaz de acompanhar o avanço tecnológico sem comprometer garantias que são pilares do Estado democrático de Direito.
Se o corpo humano é inviolável, o mesmo deveria valer para o corpo digital — e cada flexibilização dessa premissa precisa ser tratada com a cautela e excepcionalidade que a Constituição exige.
Riley v. California, 573 U.S. 373 (2014).
STF, RE 1.042.075/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 13.11.2018.
Constituição Federal, art. 5º, III.
Constituição Federal, art. 5º, X e XII.
Pacto de San José da Costa Rica, art. 8º, 2, g.
STJ, RHC 51.531/RO, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 19.11.2014.