A evolução dos softwares jurídicos e a revolução cognitiva no Legal Ops
JOTA.Info 2025-10-14
O Direito sempre encontrou no suporte material e no fluxo de informações a medida de sua força e efetividade. A estela de Hamurabi, gravada em pedra há quase quatro mil anos, é o exemplo simbólico da gênese do apoio informacional ao Direito. A lei, fixada em totem de basalto, fazia-se visível a todos, transmitindo noção de autoridade.
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Em passo seguinte, o pergaminho cumpria o mesmo papel, mas com a vantagem da mobilidade. O papel e, mais tarde, a imprensa de Gutenberg aceleraram essa circulação, tornando a norma estocável e replicável em escala. A máquina de escrever trouxe precisão; o computador pessoal, velocidade e capacidade de armazenamento.
Cada salto tecnológico, à sua maneira, expandiu a memória do Direito e a sua difusão social. Mas todos partilhavam um traço em comum: eram instrumentos de registro e organização, não de apoio cognitivo. Com a chegada da Inteligência Artificial, estamos diante de algo qualitativamente distinto. Não se trata apenas de mudar o suporte, mas de permitir que a tecnologia emule parte — muitas vezes significativa — do trabalho intelectual que sempre coube ao operador jurídico.
A importância da novidade está no fato de que ela inicia a era da automação completa do ciclo de produção documental do advogado. A evolução dos softwares jurídicos, que pode ser dividida em sete estágios, nos traz perspectiva quanto ao valor produtivo das novas possibilidades.
Os Softwares Legado: Repositórios e Organização Operacional
Os quatro primeiros estágios constituem o que chamo de Softwares Legado. Eles foram responsáveis por trazer produtividade, padronização e segurança ao trabalho jurídico.
1º estágio — Softwares de consulta a leis e jurisprudência
A primeira onda de digitalização jurídica foi marcada pelos sistemas de consulta normativa e jurisprudencial. Com o avanço dos bancos de dados, tornou-se possível acessar códigos, leis, regulamentos e precedentes sem depender de bibliotecas físicas.
Linha do tempo: anos 1970 até hoje, com forte expansão nos anos 1990 e 2000. Soluções de destaque: LexisNexis, Westlaw, Thomson Reuters/Revista dos Tribunais.
2º estágio — ERPs jurídicos e sistemas de gestão processual
Nos anos 1990 e 2000, surge a segunda geração de Softwares Legado: ERPs jurídicos e sistemas de gestão processual. O foco sai da mera consulta para o controle administrativo e processual. Possibilitaram a organização de fluxos de processos judiciais e administrativos, controlar prazos, centralizar informações de clientes e demandas.
Linha do tempo: consolidação a partir da década de 1990, com maturidade nos anos 2000–2010. Soluções de destaque: Projuris, SAP for Legal, Legal One (Thomson Reuters).
3º estágio — CLMs (Contract Lifecycle Management)
A terceira onda é marcada pelos Contract Lifecycle Management (CLMs). Diferente da gestão processual, aqui o foco é o ciclo de vida dos contratos: redação, negociação, aprovação, execução e monitoramento.
Linha do tempo: ascensão na década de 2010, com grande expansão a partir de 2015. Soluções de destaque: Ironclad, Icertis, Docusign CLM.
4º estágio — Compliance e governança documental (Legal Ops)
O quarto estágio foi o das ferramentas de compliance e governança documental, que conectaram o jurídico às demais áreas de negócio. Nessa fase, bases de dados passaram a ser estruturadas para auditorias, due diligence e integração regulatória, oferecendo maior transparência e padronização. É nesse contexto que floresce a disciplina de Legal Operations (Legal Ops).
Linha do tempo: consolidação nos anos 2010, com forte expansão após os marcos regulatórios de compliance e privacidade (FCPA, Sarbanes-Oxley, GDPR, LGPD). Soluções de destaque: Convercent, NAVEX Global, OneTrust, Thomson Reuters Compliance.
Esses quatro estágios foram essenciais. Trouxeram ordem, reduziram custos e aumentaram a confiabilidade dos processos e informação. Constituem uma base sólida para uma verdadeira revolução: a era dos insights, da geração semi-automática de documentos e da ação robótica. É a era da computação cognitiva a serviço do direito.
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Soluções Nativas em IA: Insights, Geração e Ação
5º estágio — IA Analítica
A fronteira para as Soluções Nativas em IA é rompida no quinto estágio com a chegada dos sistemas de analytics jurídico. Agora, não basta mais registrar e organizar: é possível extrair inteligência. É a era dos insights. Com jurimetria e análise preditiva, escritórios e departamentos passaram a identificar padrões de decisão, calcular probabilidades de êxito e antecipar tendências regulatórias. Operam pela extração de inteligência de grandes volumes de dados jurídicos (litígios, contratos, regulações).
Linha do tempo: difusão a partir da década de 2010, acelerada nos anos 2020. Soluções de destaque: Premonition, Lex Machina, JusAnalytics.
6º estágio — IA generativa com assistentes
O sexto estágio inaugura a chamada Revolução Cognitiva, com a entrada da IA generativa aplicada por meio de assistentes jurídicos digitais. Plataformas baseadas em LLMs tornam-se capazes de revisar contratos, elaborar minutas e responder a consultas em tempo real. A partir da emulação da atividade de redação, revisão e análise jurídica em linguagem natural, a relação advogado–software passa a ser colaborativa: um copiloto jurídico que aumenta a velocidade e reduz o custo das entregas.
Linha do tempo: a partir de 2022–2023, com a popularização de LLMs comerciais (GPT, Claude, etc.)
Soluções de destaque: Harvey AI e Casetext CoCounsel
7º estágio — IA generativa com agentes autônomos
O sétimo estágio amplia a fronteira: chegam os agentes jurídicos autônomos. Diferente dos assistentes que respondem sob demanda, nesse caso contamos com sistemas capazes de executar tarefas complexas de ponta a ponta, interagindo com múltiplos sistemas, aprendendo com feedback e conduzindo fluxos jurídicos praticamente sem a intervenção humana.
Intervalo temporal: 2024–2025, em experimentação no mercado. Soluções de destaque: LawDroid Agents.
O Novo Cenário: Consequências e Cuidados
Os Softwares Legado não desaparecem. A tendência é que se tornem a base para a integração com soluções nativas em IA. Essa união criará algo maior que a soma das partes. A depender do caso de uso, os Softwares Legado podem ser substituídos por inteligência artificial, o que dispensaria integrações mais complexas.
Partindo do pressuposto de que os dados possam ser estruturados com facilidade, o retorno sobre o investimento (ROI) das novas aplicações tende a ser significativamente superior àquele dos Softwares Legado. Isso gera uma oportunidade imediata de mais funding para as áreas de Legal Ops. A depender da medição e da estratégia de implantação, podem evitar contratações, gerar ganhos de eficiência e mudar a configuração operacional. Tanto em escritórios quanto em departamentos jurídicos, a confiança em soluções nativas em IA pode gerar ganhos imediatos. Desde que sejam especializadas e personalizadas — e que integrações complexas não sejam indispensáveis —, representam hoje a estratégia mais aconselhada para que o gestor de Legal Ops obtenha quick wins.
Gestores jurídicos terão a oportunidade de aliviar seus orçamentos e mostrar ganhos financeiros de forma muito mais clara do que foi possível com Softwares Legado. Escritórios de advocacia terão a oportunidade de se diferenciar e até mesmo aumentar suas margens. Consultorias e desenvolvedores altamente especializados constituem o caminho ideal para garantir ganhos sólidos.
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Especificamente em relação ao 6º e 7º estágios, é fundamental entender que soluções padronizadas tendem a não destravar todo o valor que se pode extrair da IA. Diferentemente dos Softwares Legado, a IA permite que dados proprietários sejam facilmente transpostos ao treinamento da máquina. Respeitados os cuidados com privacidade, segurança e governança de dados, essa estratégia permite resultados personalizados e mais assertividade na geração de conteúdo. Por exemplo: na geração de contratos, o uso de modelos consolidados do próprio usuário é muito mais eficiente do que recorrer a padrões pré-estabelecidos. Nesse sentido, por não poderem atuar de forma dedicada a cada cliente, empresas que prometem a “roupa da IA” acabam por entregar apenas parte do valor que a IA pode trazer. Esse é um ponto que exige a máxima atenção.
Outro ponto importante é a suposição (quase mito) de que LLMs de uso geral substituem o desenvolvimento altamente especializado. Apostar nessa possibilidade equivale a se abrir para erros, soluções muito menos assertivas e a necessidade de intervenção humana constante. A regra de ouro é apostar na personalização.
O ciclo operacional e criativo do operador do direito ruma para a digitalização e automação integrais. É um processo que levará pelo menos uma década para se consolidar. Por outro lado, há muitos ganhos que podem ser apropriados agora. Pioneiros se beneficiarão de forma mais acentuada das vantagens competitivas relativas. Restringir-se à condição de espectador não é a melhor opção. O momento é de ação.