RN 623/24 e fiscalização responsiva da ANS

JOTA.Info 2025-11-24

A entrada em vigor da Resolução Normativa 623/2024, em 1º de julho de 2025, inaugura um novo ciclo regulatório na saúde suplementar, possivelmente um dos mais desafiadores dos últimos anos.

O normativo revoga a antiga RN 395/2016, que por quase uma década disciplinou as regras de relacionamento entre operadoras e beneficiários, e dá início a uma era de fiscalização responsiva, conduzida pela Diretoria de Fiscalização (DIFIS) da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

Com notícias da Anvisa e da ANS, o JOTA PRO Saúde entrega previsibilidade e transparência para empresas do setor

Diferentemente do modelo anterior, caracterizado por uma atuação essencialmente repressiva e sancionatória, a nova diretriz busca estimular a conformidade e prevenir falhas antes que estas resultem em penalidades. A premissa é clara e ao mesmo tempo ambiciosa: estimular boas práticas e reconhecer “quem faz bem-feito”, sem abrir mão do rigor na apuração de condutas lesivas aos consumidores e ao equilíbrio setorial.

Diante desse novo cenário regulatório, vale destacar alguns pontos centrais e os impactos que já se desenham para o setor de saúde suplementar.

De início, um dos pontos de inflexão mais relevantes da RN 623/24 e que mais deve gerar ajustes internos é a exigência de respostas conclusivas às solicitações dos beneficiários. A norma veda expressamente o uso de expressões genéricas como “em análise” ou “em processamento” e obriga as operadoras a comunicarem de forma clara, precisa e final se um pedido foi autorizado ou negado, indicando os fundamentos legais ou contratuais da decisão.

Além disso, o normativo introduz novos prazos e obrigações para demandas não assistenciais, como mensalidades, reajustes, portabilidade e cancelamentos, que devem ser respondidas em até sete dias úteis, inovação que amplia o escopo de regulação e aumenta substancialmente o volume de registros e monitoramentos internos.

Essa exigência, embora represente avanço na experiência do beneficiário, impõe pressão operacional significativa às operadoras e administradoras de benefícios, especialmente no tocante à adequação de scripts de atendimento, sistemas de CRM, e fluxos internos de resposta, áreas que demandam reestruturação e suporte jurídico-regulatório especializado.

Em resposta ao histórico de judicializações, reclamações e à necessidade de maior previsibilidade regulatória, a nova norma foi estruturada em torno de três eixos principais: transparência, rastreabilidade e resolutividade.

Assim, as operadoras passam a ser obrigadas a:

• Fornecer número de protocolo no início do atendimento, inclusive para demandas não assistenciais;

• Permitir o acompanhamento virtual do andamento das solicitações;

• Garantir atendimento eletrônico 24 horas por dia, sete dias por semana;

• E medir a resolutividade de seus canais, com a ANS autorizada a requisitar os indicadores de desempenho.

Na prática, trata-se de um movimento de aproximação da saúde suplementar com padrões de governança corporativa e compliance regulatório, impondo a cada operadora um dever de autovigilância e de resposta tempestiva, passível de fiscalização direta pela DIFIS.

Outro avanço regulatório é o reforço do papel da Ouvidoria, que passa a ser instância obrigatória de reanálise das negativas de cobertura.

A operadora deverá informar ao beneficiário, no ato da negativa, o prazo e o canal para requerer nova avaliação dentro da estrutura da própria empresa, medida que visa resolver conflitos na origem, antes que se convertam em Notificações de Intermediação Preliminar (NIP) ou demandas judiciais.

Essa diretriz se alinha ao modelo de fiscalização responsiva, ao privilegiar a solução administrativa e o aprendizado institucional, substituindo o paradigma punitivo pelo estímulo à conformidade voluntária. A Ouvidoria, portanto, deixa de ser mero canal de registro e assume papel estratégico na gestão da experiência do beneficiário e na mitigação de riscos regulatórios.

Com a relevância das novas regras, a DIFIS passa a acompanhar de forma mais próxima o Índice Geral de Reclamações (IGR), classificando publicamente as operadoras conforme seu desempenho em metas de excelência ou metas de redução.

Essas metas terão impacto direto na esfera sancionadora. Operadoras com bom desempenho poderão obter redução de até 80% nas multas aplicadas, enquanto aquelas que não atingirem os índices mínimos poderão sofrer agravamento de até 10% no valor das penalidades.

Em termos práticos, a regulação passa a premiar a conformidade, incentivando políticas internas de monitoramento de indicadores de satisfação, compliance regulatório e gestão de risco reputacional.

Embora a RN 623/24 dialogue com uma agenda positiva de governança e prevenção, seu cumprimento integral exigirá profunda revisão de fluxos operacionais, processos de atendimento e protocolos de comunicação com beneficiários.

Será indispensável que operadoras e administradoras de benefícios adotem programas estruturados de adequação regulatória, que contemplem:

• Revisão dos scripts de call center e SAC;

• Atualização dos procedimentos internos de registro e guarda de protocolos;

• Mapeamento de riscos de inconformidade;

• Criação de métricas de resolutividade auditáveis.

A experiência mostra que a ausência de padronização documental e de clareza na comunicação é uma das principais causas de autuações e de NIPs na ANS. Assim, a assessoria jurídica especializada desempenha papel essencial não apenas na interpretação normativa, mas também na implantação prática de soluções de conformidade, funcionando como elo entre a inteligência regulatória e a operação assistencial.

Como visto, a RN 623/2024 representa uma inflexão no modelo de supervisão da saúde suplementar. Ao mesmo tempo em que eleva o padrão de atendimento e transparência, também aumenta a responsabilidade e os custos de conformidade das operadoras.

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Nesse contexto, o verdadeiro desafio será conciliar o protagonismo regulatório da ANS com a sustentabilidade econômico-operacional do mercado. Para tanto, o diálogo técnico entre operadoras, administradoras, assessorias jurídicas e o próprio regulador será determinante.

A fiscalização responsiva, se corretamente aplicada, pode ser o instrumento que finalmente substitui a cultura punitiva pela cultura de eficiência, transformando o setor em um ambiente de cooperação regulatória, previsibilidade e fortalecimento institucional, sendo estes pilares indispensáveis para a perenidade do sistema suplementar brasileiro.