Ponta de espada, ponta de língua e divisão de Poderes

JOTA.Info 2020-06-18

Grande a discussão recente sobre a intervenção militar com suporte no artigo 142 da Constituição. O próprio Supremo Tribunal Federal, provocado por partido político – em esclarecedora liminar do ministro Fux –, deixou claro que nem a literalidade do dispositivo, nem interpretações sistemática, histórica, teórica ou sociológica autorizam o disparate.

A ordem democrática reserva missão relevante às Forças Armadas. Mas a democracia não é o regime da “ponta de espada” ou do predomínio da ameaça sobre o direito. No Estado de Direito, prevalece a “ponta de língua” ou a preponderância do diálogo, da rotatividade do poder, do respeito à oposição. Raymond Aron dizia que a democracia consiste na “concorrência pacífica pelo exercício do poder” (“Introduction à la philosophie politique: démocratie et révolution.” Le livre de Poche, 2019 [1997], p.52). O momento atual de intimidações aos Poderes é preocupante. Macula a ordem jurídica. Exige paz. Por isso, o enquadramento constitucional do papel das Forças Armadas – “instituições nacionais permanentes e regulares” – e o exame da sua posição face à divisão de Poderes são importantes.

Primeiramente, registre-se que, sequer sob tortura hermenêutica, pode-se extrair do artigo 142 a mais leve referência à atribuição de “poder moderador” às Forças Armadas. Nada – insista-se: uma palavra sequer – é dito sobre isso no texto. Acrescente-se que a nobre função de garantia dos Poderes é atribuída às Forças Armadas, no artigo 142, na condição de “instituições permanentes” que, por óbvio, não se equiparam e estão abaixo dos Poderes constitucionais. Instituições não são Poderes.

A autoridade suprema que o Presidente possui sobre as Forças Armadas não equivale a uma supremacia do Executivo sobre os demais Poderes ou a Constituição. Tudo bem explicado ao Chefe do Executivo e ao povo na didática decisão do ministro Fux.

No direito brasileiro, nada se sobrepõe à soberania da Constituição. Nenhum agente estatal “dispõe de poderes extraconstitucionais ou anticonstitucionais, ainda que em momentos de crise”, no dizer do Ministro Fux. Muito menos podem as Forças Armadas ser usadas para a defesa de um Poder contra outro. São aspectos basilares de um Estado Democrático. Temos Constituição demasiadamente minuciosa. Algo da magnitude de um “poder moderador” ou da possibilidade de uma “intervenção militar”, em afronta a qualquer Poder, se existisse na Constituição, estaria mais do que expresso. Não há base constitucional para esses pesadelos nostálgicos e autoritários.

Do prisma histórico, impensável que Constituição resultante de Assembleia Constituinte eleita e que marcou a passagem da ditadura para a redemocratização incorresse em tamanho equívoco: superar o estado militarista para atribuir aos próprios militares a “moderação” armada (!) de conflitos entre os Poderes.

Aqueles que foram retirados do poder ficariam com a incumbência de controlar seus novos ocupantes? Não teria propósito. Se a Constituição de 1988 tivesse sido fruto de revolução popular ou outorgada por junta militar, imaginar as Forças Armadas como moderadoras da relação entre Poderes, no limite, faria sentido. Da maneira como foi debatida e votada nossa Constituição, insano que o Constituinte cogitasse de atribuir aos militares tal capacidade.

Nos primeiros anos do curso de Direito os estudantes têm contato com os principais teóricos. Um deles é Kelsen. Para Kelsen, o direito é organização da limitação da força. O Estado e o uso da força são derivações do direito. É famosa a passagem da “Teoria Pura do Direito” que distingue o comando da norma jurídica da ordem do “bando de salteadores”. O que diferencia o poder de tributar do fisco da milícia que determina “Mãos ao alto! Passe o dinheiro”? Kelsen responde: há que se distinguir entre uso autorizado e uso proibido da força. Autorizado por quem? Por órgão da ordem jurídica. Por norma válida vinculadora do destinatário. Por Constituição que seja a base da coerção eficaz. Se o artigo 142 não autoriza às Forças Armadas nem a moderação do conflito entre Poderes nem a intervenção militar, qualquer movimento nessas direções caracterizaria intolerável ruptura da ordem. A simples ameaça de causar grave ofensa à democracia e à divisão dos Poderes é criminosa.

Para além dessas referências, Kelsen equipara o uso da força com a violência do “bando de salteadores”. É a ordem jurídica, e não o contrário, que define pressupostos para o uso da coação e os indivíduos autorizados a fazê-lo.

Dessa maneira, o Direito protege os cidadãos que estão submetidos ao uso da força do emprego da força por parte dos não autorizados. E, quando a questão é saber se o uso da força é ou não lícito, cabe a um tribunal independente responder e a ninguém mais. O Judiciário se transforma no “regulador do uso político da violência” (Tércio Sampaio Ferraz Jr., “O Judiciário frente à divisão de poderes: um princípio em decadência? ”, Revista USP, n.21, 1994, p.18).

Possuir o monopólio do uso legítimo da violência exige prudência. Não se conhece caminho civilizado que não seja o Estado de Direito. Não cabe à “ponta da espada” se intrometer nesses assuntos. Intimidar e aterrorizar os demais Poderes pela “ponta da espada” revela imaturidade. Extrapola aquilo que, por definição, é excessivo: o abuso de autoridade (José Eduardo Faria, “Abuso de autoridade. De quem? ”, JOTA, 03.06.2020). Quem possui competência legal para dizer que uma ordem é “absurda”? O destinatário da ordem emanada da autoridade? Qual a utilidade do devido processo legal se qualquer agente público puder acusar o tribunal de ter feito “julgamento político”? Definitivamente, não é na ”ponta da espada” que essas questões são respondidas.

A divisão de Poderes é resultado de gradativa diferenciação funcional da sociedade. Da perspectiva da sociologia do direito, essa diferenciação viabiliza operações comunicativas diversificadas. Na modernidade, inexiste relação hierárquica entre os Poderes, mas sim campos infungíveis entre sistemas especializados. Nas democracias, a independência e harmonia entre os Poderes, apesar das flexibilizações que permitem sobreposições, reservam formas de comunicação específicas a cada Poder.

O Parlamento não prolata Acórdãos. O Executivo não vota Leis. O Judiciário não governa. Os três são Poderes políticos. Assentam alicerces em duas bases comuns: as leis e o uso da força. Ao lado da emissão de moeda, utilizar a força e dizer o direito são monopólios que caracterizam a Unidade do Estado. Porém, há limites essenciais para que se compreenda a separação de tarefas.

A relação entre o sistema jurídico e o sistema político é mediada por complexos mecanismos que, a um só tempo, aproximam e afastam um do outro. O mais importante é a própria Constituição. A partir dela se estabiliza “dupla troca” comunicativa a ser observada com atenção. Aqui reside núcleo da vida política e jurídica democrática. De uma parte, o sistema político toma a iniciativa de oferecer a ferramenta essencial ao funcionamento do sistema jurídico: as premissas decisórias para o desempenho do direito, notadamente as leis. O sistema jurídico retribui com aceitação dos limites impostos pelas premissas e com a aplicação das leis. Essa é a primeira troca.

O segundo intercâmbio é de iniciativa do sistema jurídico: oferecer as premissas, agora, para o uso da força. Sem chancela jurídica, ninguém pode ser preso, ter bens expropriados, ver poderes constitucionais tolhidos ou sofrer coerção legal. O sistema político também retribui a esse serviço: oferece meios coercitivos para a execução das ordens.

A “dupla troca” não é relação de meio e fim, causa e efeito ou ordenação hierárquica. Ela é constitutiva do jogo sistêmico entre direito e política, pautado pela circularidade interna aos sistemas. A política depende desse controle externo e independente. Sem isso, fica fragilizada e perde operacionalidade.

Se a análise da separação de Poderes, ao invés de assentada em estruturas formais, incorporar as contingências das mudanças tanto no modo de se fazer política – com mobilizações tecnológicas, ataques virtuais, uso de robôs – quanto no desempenho da jurisdição – emprego de algoritmos, inteligência artificial, provas probabilísticas, técnicas de aceleração de respostas aos casos difíceis – abrirá espaço para redescrição atualizada da divisão de Poderes, seus principais elementos (limitações recíprocas, harmonia e independência, freios e contrapesos) e institutos (impeachment e controle de constitucionalidade).

Casos graves, como o das “fake news”, ganharão novas cores. Qual a sede do STF? Onde estão os ataques aos Poderes? Como disparos eletrônicos destroem reputações? Aí estão os problemas da nova divisão de Poderes.

Aparentemente, a relação entre o poder político e o poder jurídico contrapõe panela de ferro – Executivo e Legislativo – a panela de barro (Judiciário). Fácil prever o resultado do embate, dessa perspectiva simplória. Em situações extremas, a política pode modificar as premissas de decisão ou negar execução dos julgados. Nada disso está ao alcance do Judiciário.

Porém, observação mais detida nota que, ao longo do tempo, as dependências que a política cria em relação ao sistema jurídico reequilibram o jogo a favor do direito e mudam o embate de patamar. Basta que se repense nas técnicas de controle de constitucionalidade ou na expansão dos controles judiciais sobre agências, políticas e ações administrativas.

O acúmulo de poderes forja ônus para a política. O fardo da concentração, curiosamente, gerou as condições e a necessidade histórica – inclusive de legitimação – de que instância externa à política confirme a validade do direito e autorize o emprego da força. Se os tribunais possuem função política, certamente ela gravita em torno desse ponto estratégico para a política e para o direito: interromper o circuito da vontade e da força.

Quanto maiores a Administração e a produção legislativa, maiores, também, os tentáculos do sistema jurídico. A política contemporânea é dependente desse circuito. Interrompê-lo ou desgastá-lo traz mais prejuízos à política do que poderiam imaginar o cabo, o soldado e seus superiores que ousassem fechar o STF. Melhor embainhar a espada inteira e destravar a ponta de língua. Cooperação, conversa e respeito à independência e harmonia entre os Poderes são os primeiros passos.

Com precisão, Niklas Luhmann vai ao ponto: “Com a força não é possível ter tudo aquilo que se quer e, consequentemente, não é possível querer tudo aquilo que se poderia ter com a força. A forma jurídica se interpõe sem que com isso a autonomia e a forma democrática de formação da vontade política sejam postas em dúvida” (“La differenziazione del diritto”. Il Mulino, 1990, p. 162; do mesmo autor, “Potere e codice politico”, Feltrinelli, 1982, pp. 42-46). Seria importante que a autoridade suprema das Forças Armadas atentasse para isso. A “ponta da espada” não condiz com a “ponta da língua”. A força não combina com Poderes independentes e harmônicos. Quem se orientar pela ameaça do uso da força, sem a chancela do direito, perderá credibilidade para o diálogo. Perderá, também, legitimidade, consenso e justificativas para a obediência.

A norma constitucional e a interpretação conferida pelo o STF oferecem balizas toleráveis do uso da violência. Ultrapassadas – por exemplo, com intervenção militar diante de conflito entre poderes – quem controlará o uso da força? Quem dela abusou? O Poder vilipendiado? Quem manterá a diferenciação entre a política e o direito? (Fernando Rister e Orlando Villas Bôas Filho, Separação de poderes na modernidade. Uma releitura sistêmica. Curitiba, Juruá, 2018, p.79).

O valor militar deve unir inteligência, atenção ao espírito civil predominante na sociedade e clareza sobre sua missão constitucional. A formação rigorosa das Forças Armadas é garantia de que elas sabem que não será com videntes, astrólogos e demagogos, muito menos com negação da ciência, desprezo ao saber, notícias falsas e desrespeito à legalidade que construiremos a nação próspera que merecemos. Fora da razão e da civilidade, sobra o governo da força bruta, do sofisma e dos alertas aterrorizantes. Nossas Forças Armadas não se deixarão amesquinhar.