Juiz condena advogada que chamou médico de comunista por não receitar cloroquina

JOTA.Info 2021-03-19

Em decisão favorável a médico hostilizado por uma advogada apoiadora do presidente Jair Bolsonaro, o juiz Guilherme de Macedo Soares, da 2ª Vara do Juizado Especial Cível de Santos, resolveu pedir desculpas aos profissionais de saúde em nome da causídica. Ele estipulou indenização por dano moral em 10 salários mínimos ao médico, que se recusou a prescrever a cloroquina, “o remédio do presidente”, como solicitava a advogada. 

“A ré infelizmente não teve a sensibilidade de entender que o momento não se presta para hostilizar os profissionais da saúde, muito pelo contrário, deveriam ser tratados como heróis, pois, assim o são. Arriscam suas vidas e as vidas daquelas que eles mais amam para combater a doença alheia. Estão na linha de frente, prontos para o ‘que der e vier’, e lamentavelmente ainda precisam passar por situações como essa. A sociedade precisaria se juntar e pedir desculpas em nome da ré, a começar por este julgador: RECEBA MINHAS SINCERAS DESCULPAS!”, disse Soares, em caixa alta.

No caso em questão, o médico estava de plantão em 26 de maio do ano passado, no Pronto Socorro do Hospital Ana Costa, em Santos. Ele atendeu a advogada Adelaide Rossini de Jesus, que reclamava de frio e tosse seca. Mesmo diante do quadro, ela disse não ter interesse em fazer o teste da Covid-19 e pediu a prescrição dos medicamentos cloroquina e azitromicina. 

Depois de examiná-la e concluir que a paciente tinha os sinais vitais bons, o médico pediu um eletrocardiograma. A mulher, no entanto, informou que apenas desejava tomar o “remédio do presidente”, insistindo na prescrição como forma profilática de tratamento ao novo coronavírus, propondo-se a assinar qualquer termo de consentimento.

O médico explicou para a mulher que, em vista do quadro clínico dela e da ausência de comprovação de eficácia científica do medicamento para a Covid-19, não se sentia confortável para prescrever aqueles medicamentos, além de os sintomas não indicarem a doença. Neste momento, ele chamou cinco colegas. Todos foram unânimes ao afirmar que, em razão de ela ter quase 80 anos, ela correria risco de sofrer efeitos colaterais, o que incluía morte súbita durante a noite, caso o pedido dela fosse atendido.

A mulher ficou mais nervosa e exaltada. Disse ser advogada, ameaçou o médico de processo, relatou que o presidente dos Estados Unidos, à época, Donal Trump, tomava cloroquina e que o presidente do Brasil havia autorizado o uso. Durante a consulta, ainda, passou a ligar para várias pessoas, afirmando que os médicos do local eram comunistas.

Por ela seguir insistindo na “receita do Bolsonaro”, além de afirmar que faria um boletim de ocorrência, o médico encerrou o atendimento, dizendo que a prescrição dos medicamentos de combate à Covid-19 é a critério do médico, segundo orientação do Ministério da Saúde. Mas, no dia seguinte, a mulher fez uma postagem no Facebook em que repetia as ofensas, incluindo o nome e CRM do médico.

“Cheguei à seguinte conclusão:Se onde estou pagando não me receitam, imagine onde devem dar de graça. ASSIM AS PESSOAS CONTINUAM MORRENDO POR NÃO ESTAREM TOMANDO O REMÉDIO CORRETO!”, publicou, acrescentando reportagem que tratava do número de mortes por Covid no país, dando a entender que estas derivariam da recusa de médicos em prescrever a cloroquina. Neste ponto, o médico foi quem registrou ocorrência, ao entender que a mulher o acusava de omissão de socorro. 

À Justiça a mulher disse jamais ter se recusado a fazer o teste de Covid-19, mas que queria apenas começar a fazer uso dos remédios com acompanhamento médico. Admitiu que disse que levaria o caso à polícia, mas para preservação de seus direitos, “pois se viesse a falecer da doença seus 3 filhos que são advogados iriam buscar seus direitos na Justiça”. 

“PESSOAS HAVIAM MORRIDO BERRANDO QUE QUERIAM TOMAR O REMÉDIO DO BOLSONARO”, escreveu novamente em maiúsculas ao juiz, e ela achou que deveria alertar as pessoas na medida em que o mesmo estaria ocorrendo num hospital particular. 

Além disso, afirmou que nos “estados em que a medicação está em uso a queda de óbitos foi muito grande”. Ela destacou, por fim, que se alguém precisa “entrar na JUSTIÇA PARA RELAMAR DE QUEM SIMPLESMENTE QUIS FAZER VALER SEU DIREITO DE TENTAR SALVAR SUA PRÓPRIA VIDA E ALERTOU SEUS AMIGOS COM RELAÇÃO A ISSO, REALMENTE ESTAMOS NUMA DITADURA ONDE NOSSOS PENSAMENTOS E CRENÇAS NÃO PODEM MAIS SEREM EXPOSTOS”. (sic)

Ela invocou o direito à liberdade de expressão e à crítica e disse que se o médico “se sentiu acuado por uma velhinha de quase 80 anos”, desculpa-se e acrescentou que em nenhum momento houve qualquer ofensa à imagem ou à honra do médico. E voltou a dizer que governadores oposicionistas estão desviando verba federal e escondendo a cloroquina para desacreditar o presidente.

Decisão

Ao analisar o caso, o juiz Guilherme de Macedo Soares lamentou a atual situação do Brasil, em que não há mais “debate saudável de ideias, mas de ataques grotescos e recíprocos, recheados de ofensas, intolerância e ódio, fomentados diariamente por blogueiros de ambas as vertentes, que usualmente espalham as chamadas fake news”. 

Ele afirmou que não resta dúvidas de que a mulher é pessoa de “ferrenha posição política”, o que transparece mesmo na contestação a ele, nos autos do processo, bem como nas publicações que ela faz nas redes sociais. O magistrado relatou ter visitado o perfil dela no Facebook na data da prolação da sentença, mas que foi inviável chegar até a data da publicação em disputa.

“E não há nada de errado nisto, eis que o Estado Democrático de Direito em que vivemos permite a qualquer pessoa expressar sua opinião política, dentro dos limites que a lei autoriza. E é exatamente a extrapolação dos limites que dá causa ao presente processo”, disse. Soares afirmou que não entraria no mérito da eficácia dos medicamentos contra a Covid-19, mas ressaltou que a comunidade científica descartou o uso da cloroquina, incluindo o médico francês Didier Raoult, que deu início à defesa do medicamento para esse fim, a Apsen, maior fabricante desse fármaco no país, e o hospital Albert Einstein, mencionado pela própria mulher como hospital de referência — onde ela teria “tratamento adequado”.

O juiz afirmou que dois pontos importantes teriam de ser destacados. O primeiro deles é a supremacia da decisão do médico quanto ao tratamento a ser dado ao paciente. É o médico que tem a palavra final sobre o assunto, não cabendo ao paciente impor o que acha melhor no seu caso. “É evidente que este tem a faculdade de discordar, buscar uma segunda opinião de outro médico, ou quantas desejar. Porém, em hipótese nenhuma pode exigir que o profissional ceda à sua opinião.”

O segundo é o que é conhecido por “efeito Dunning-Kruger”, que, segundo ele, pode ser definido como “um fenômeno que leva indivíduos que possuem pouco conhecimento sobre um assunto a acreditarem saber mais que outros mais bem preparados, fazendo com que tomem decisões erradas e cheguem a resultados indevidos; é a sua incompetência que restringe sua capacidade de reconhecer os próprios erros. Estas pessoas sofrem de superioridade ilusória.”

Assim, o magistrado inverteu a situação. Sugeriu um exercício de imaginação em que a mulher, que é advogada, recebesse em seu escritório uma pessoa que quisesse entrar com uma ação na Justiça mas fosse por ela desaconselhada. A pessoa então se exalta, ameaça, afirma saber do que está dizendo e ainda publica nas redes sociais críticas com o nome e o número da OAB dela. “É incontroverso que a requerida tentou coagir o autor em seu ambiente de trabalho.”

O magistrado também considerou ser lamentável ‘que os fatos tenham por personagem a requerida, que é advogada, e mesmo com todo o conhecimento e cultura amealhados durante a sua longa vida, proceda da forma como fez, acreditando ainda que apenas exerceu seu direito de crítica e opinião, quando na verdade o que fez foi expor o autor à execração pública, notadamente por aqueles que defendem os mesmos ideais que os seus”.

A ação tramita com o número 1010084-11.2020.8.26.0562.