O plenário virtual e a incongruência da tese firmada no RE 599.316/SC

JOTA.Info 2021-03-19

A pandemia da Covid-19, declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) há um ano, alterou radicalmente a vida de todos e exigiu adaptações imediatas. Não foi diferente com o Poder Judiciário, que precisou adequar seu funcionamento e suas práticas para garantir a ininterrupção da prestação jurisdicional.

No Supremo Tribunal Federal (STF), as atividades e as previsões normativas foram rapidamente revisadas. Por meio da Emenda Regimental nº 53/2020 e da Resolução STF nº 672/2020, ambas do fim de março de 2020, os formatos das sessões de julgamento foram atualizados.

No primeiro ato, foi autorizado que todos os processos de competência do Tribunal fossem julgados em ambiente eletrônico a critério do relator (o chamado plenário virtual).

Até então, poderiam ser analisados eletronicamente apenas a existência ou não de repercussão geral e os julgamentos de agravos internos, embargos de declaração, medidas cautelares em ações de controle concentrado, referendos de medidas cautelares e tutelas provisórias e recursos e ações cuja matéria discutida tivesse jurisprudência dominante no STF.

Com a nova regra, julgamentos de repercussão geral e do mérito de ações de controle concentrado passaram a poder ocorrer por meio do sistema virtual.

Pela segunda norma, o Tribunal permitiu que as sessões de julgamento presenciais fossem realizadas por videoconferência.

Relativamente ao Plenário Virtual, o julgamento funciona, resumidamente, da seguinte forma: (i) os processos são incluídos em pauta diretamente pelo relator (isto é, independe do presidente do Tribunal, que define a pauta para as sessões presenciais); (ii) os julgamentos se iniciam, como regra, numa sexta-feira, ocasião em que o relator disponibiliza o seu relatório e o seu voto; e (iii) os demais ministros possuem até seis dias úteis para se manifestar. Além disso, qualquer dos magistrados pode pedir o destaque do processo para julgamento presencial.

Ainda de acordo as regras aplicáveis, os ministros possuem as seguintes opções de voto no sistema: (a) acompanho o Relator; (b) acompanho o relator com ressalva de entendimento; (c) divirjo do relator; ou (d) acompanho a divergência.

Em quaisquer dos casos, podem apresentar voto escrito, devendo fazê-lo, obrigatoriamente, quando acompanharem o relator com ressaltas ou apresentarem divergência.

A demonstração das regras acima é relevante, pois, recentemente, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a sistemática de voto do plenário virtual vale mais do que o conteúdo do voto dos ministros. Foi o que se entendeu, por unanimidade, no julgamento dos Embargos de Declaração opostos no Recurso Extraordinário nº 599.316/SC.

Com efeito, o RE nº 599.316/SC compreende o Tema nº 244 da Repercussão Geral, cuja discussão consistiu em definir se é constitucional a previsão contida no art. 31 da Lei nº 10.865/2004.

Este dispositivo prevê que será vedado aos contribuintes, a partir de agosto de 2004, o desconto de créditos de PIS/Cofins não cumulativos relativos à depreciação ou amortização de bens do ativo imobilizado adquiridos até 30 de abril de 2004.

O mérito do recurso foi incluído na pauta de julgamento virtual com início em 19 de junho de 2020 e com encerramento em 27 de junho de 2020. E, concluído o julgamento, o Tribunal, por maioria de votos, negou provimento ao Recurso Extraordinário da União Federal e fixou a seguinte tese: “Surge inconstitucional, por ofensa aos princípios da não cumulatividade e da isonomia, o artigo 31, cabeça, da Lei nº 10.865/2004, no que vedou o creditamento da contribuição para o PIS e da Cofins, relativamente ao ativo imobilizado adquirido até 30 de abril de 2004”.

Contudo, uma análise mais detalhada dos votos disponibilizados no plenário virtual indica conclusão diversa da lançada. É que a tese fixada contradiz o que foi manifestado na maioria dos votos apresentados no sistema, bem como em outros julgados do STF. Explica-se.

O ministro Marco Aurélio, negando provimento ao recurso, apontou, em seu voto, que a norma em análise violava os princípios da não cumulatividade e da isonomia.

Relativamente ao primeiro princípio, afirmou que a Constituição garante a não cumulatividade do PIS/Cofins sem limitações, compensando-se na saída o montante devido e recolhido na entrada.

No que se refere à isonomia, o ministro entendeu que o dispositivo trata, diferentemente, sem fundamento lógico para a distinção, contribuintes que adquiriram bens para o ativo imobilizado em meses consecutivos (abril e maio de 2004).

Este voto foi seguido, sem a apresentação de voto escrito, pelos ministros Cármen Lúcia, Rosa Weber e Roberto Barroso.

Em seguida, o ministro Alexandre de Moraes apresentou voto divergente para dar provimento ao Recurso Extraordinário da União. Assentou que a não cumulatividade do PIS e da Cofins não decorre de imposição constitucional, mas sim de conformação da lei, de modo que a limitação estipulada pelo art. 31 da Lei n° 10.865/2004 encontra-se dentro do campo de liberalidade do legislador. Afirmou, ainda, que, como consequência, não haveria violação ao direito adquirido à irretroatividade ou à segurança jurídica.

Acompanharam a divergência, sem a apresentação de voto escrito, os ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello.

Até aqui, houve a apresentação de dois votos escritos e a manifestação de sete ministros: o do relator, acompanhado por mais três ministros; o do ministro Alexandre de Moraes (divergente), acompanhado por mais dois ministros. Um placar parcial de quatro votos a três pela inconstitucionalidade por violação à não cumulatividade e à isonomia.

Parte-se, então, para os demais votos escritos apresentados. O ministro Edson Fachin, assim como o relator, negou provimento ao Recurso Extraordinário da União. Todavia, explicitou, em seu voto, que não haveria inconstitucionalidade por violação à não cumulatividade ou à isonomia. A inconstitucionalidade decorreria da violação à irretroatividade, à proteção da confiança e à segurança jurídica.

Igualmente, o ministro Ricardo Lewandowski se manifestou no sentido de que, embora a Constituição preveja a não cumulatividade do PIS e da Cofins, não fixou os critérios a serem observados, deixando a cargo do legislador ordinário o estabelecimento do regime de tributação. Por outro lado, manifestou pela violação aos princípios do direito adquirido e da irretroatividade tributária.

Embora os ministros Edson Fachin e Ricardo Lewandowski tenham discordado do relator em relação aos fundamentos adotados para negar provimento ao Recurso Extraordinário, ambos se manifestaram no sistema do Plenário Virtual por acompanhá-lo, sem fazer menção a ressalva. Importante mencionar também que o voto do min. Lewandowski não foi juntado ao acórdão (o do min. Toffoli foi juntado de forma duplicada).

Por sua vez, o ministro Dias Toffoli apresentou voto escrito para divergir do relator e, em parte, do ministro Alexandre de Moraes. Asseverou a inexistência de violação à não cumulatividade, à irretroatividade, à segurança jurídica, à não surpresa e à isonomia.

Quanto ao voto do min. Moraes, a divergência consistiu unicamente no alcance da decisão. Enquanto o ministro Alexandre de Moraes dava provimento ao recurso para denegar a segurança, o min. Toffoli lhe dava provimento apenas para assentar a constitucionalidade do dispositivo questionado.

Finalmente, o min. Luiz Fux, em seu voto escrito, seguiu o caminho da divergência, apontando a inexistência de violação à não cumulatividade, à segurança jurídica e à irretroatividade.

Ao final do julgamento, por seis votos a cinco, foi negado provimento ao Recurso Extraordinário da União. Porém, na análise dos votos, apenas quatro ministros se manifestaram pela violação à não cumulatividade e à isonomia. Os outros sete ministros rechaçaram tais ofensas.

De todo modo, ao fim, em razão da sistemática de votos no plenário virtual, prevaleceu a tese proposta pelo relator, que, como visto, declarou “inconstitucional, por ofensa aos princípios da não cumulatividade e da isonomia, o artigo 31, cabeça, da Lei nº 10.865/2004…” (destacou-se).

É de se registrar, também, que a tese firmada conflita com o entendimento já exposto pelo STF em recentíssimos julgamentos, a exemplo dos ocorridos na análise do RE 607.642/RJ e do RE 570.122/RS, nos quais se expressou que o constituinte conferiu ao legislador ordinário margem para a definição do regime e das técnicas da incidência não cumulativa do PIS e da Cofins.

Em face desse acórdão, a União apresentou Embargos de Declaração para apontar a incongruência mencionada, mas, em novo julgamento virtual ocorrido entre os dias 26 de fevereiro de 2021 e 05 de março de 2021, o STF, por unanimidade, negou-lhes provimento.

Chama a atenção, porém, a fundamentação do voto do relator, acompanhado por todos os ministros:

“A tônica, no plenário virtual, é o lançamento de votos em campo específico no sistema. Os pronunciamentos disponibilizados revelam que fui acompanhado, sem ressalva, pelos ministros Luiz Edson Fachin, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Luís Roberto Barroso, sendo alcançada a maioria, conforme consignado na ata do julgamento”.

Isto é, o STF decidiu: para a fixação da tese de repercussão geral, vale mais a sistemática de voto do Plenário Virtual do que o conteúdo do voto dos ministros.


O episódio 52 do podcast Sem Precedentes discute os bastidores e as desconfianças envolvendo o caso Lula no Supremo Tribunal Federal. Ouça: