Um Supremo Juizado Especial Constitucional?

JOTA.Info 2021-03-24

A petição inicial da ADI 6764, proposta no dia 20 de março de 2021, ajuizada pelo presidente da República, contra os decretos dos governadores de São Paulo, Rio Grande do Sul e Distrito Federal, relacionados às medidas de contenção da pandemia do COVID -19, não veio assinada por nenhum advogado. Curiosamente, a Advocacia-Geral da União (AGU) não assinou a peça da petição inicial, que é assinada de forma eletrônica exclusivamente pelo presidente, que é legitimado na forma do art. 103, I, da CF para propor ação direta de inconstitucionalidade[1].

A questão que surge é se o presidente possui capacidade postulatória plena para litigar perante o órgão máximo do Poder Judiciário, mesmo sem ostentar a condição de advogado, regularmente inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)?

A resposta simples seria que, desde a ADI 127 de 1989, o Supremo Tribunal Federal (STF) autoriza essa prática por entender, em linhas gerais, que a capacidade postulatória decorre diretamente do art. 103, I, da Constituição de 1988[2].

É justamente essa possibilidade aberta e essa prática autorizada e implementada para diversos presidentes que se pretende criticar aqui pelos argumentos a seguir.

Em primeiro lugar, numa interpretação literal, é perceptível que o art. 103 da Constituição de 1988 fala que podem propor ADI e ADC os legitimados constantes dos incisos do artigo, dentre eles o presidente da República.

Legitimidade não se confunde com capacidade postulatória, assim como ser parte em juízo não se confunde com advogar.

Em uma interpretação sistemática, é preciso entrelaçar o art. 103 com os arts. 131 e 133 da Constituição, de acordo com os quais a advocacia é uma função essencial à administração da Justiça. Os atos privativos dos advogados, que regulamentam o exercício da atividade de advogar, encontram-se no art. 1º, da Lei n. 8.906/94, que é o Estatuto da Advocacia e da OAB.

É verdade que existem casos em que se dispensa a figura do advogado, como nos juizados especiais ou, até mesmo, há a dispensa o Poder Judiciário, por exemplo, na arbitragem. Contudo, são hipóteses envolvendo direitos individuais disponíveis e que encontram razões da dispensa do advogado estabelecidas na ADI 1127, julgada em definitivo, apenas, em 2018[3].

Não é o caso dos direitos em jogo na jurisdição constitucional, que trata da higidez do ordenamento jurídico e, portanto, envolve temas de interesse público dos mais relevantes, como o direito à saúde em tempos de pandemia. Afinal, o Supremo não é – nem pode ser reduzido – a um supremo juizado especial constitucional, nem a postulação para que exerça a função de guardião da constituição pode ser confundido a atuação de um juiz que julga o direito individual disponível, principalmente quando está diante das ações do controle de constitucionalidade em abstrato, que visam a manutenção da coerência e higidez da Constituição e da própria democracia constitucional.

Em uma interpretação histórica, verifica-se que a ADI 127 de 1989 autorizou a capacidade postulatória plena do chefe do Executivo nessas hipóteses. A Ação, porém, data de 1989. O ministro Celso de Mello votou, inicialmente, pela necessidade do advogado. Contudo, o ministro Sepúlveda Pertence inaugurou a divergência pela desnecessidade no que foi seguido pelos demais ministros. Ficando Celso de Mello vencido.

O caso é anterior à Lei n. 8.906/94, que exige a presença do advogado e também anterior a Lei n. 9868/99, cujos arts. 3[4] e 14[5] parecem, numa interpretação literal, abarcar essa posição do STF, que vem se repetindo acriticamente em diversas decisões posteriores.

Embora consolidada a jurisprudência, essa não parece, com todo respeito, ser a melhor posição, se interpretarmos finalisticamente os dispositivos constitucionais. A partir desse olhar, cabe uma interpretação conforme à Constituição desses artigos da Lei n. 9.868/99 para que a expressão “quando acompanhada por advogado” exija a presença do Advogado para conferir capacidade postulatória em juízo ao presidente e a todos os demais legitimados, pelos argumentos que se passa a expor.

Em primeiro lugar, a presença do advogado, como o AGU, ou os membros da própria carreira, subscrevendo pelo presidente, permite melhorar a qualidade das petições e, consequentemente, da proteção dos direitos fundamentais pretendida nas ações do controle de constitucionalidade.

Em outras palavras, a AGU é também uma instituição de garantias dos direitos fundamentais, pois exerce o papel técnico de discernir o que é a verdadeira necessidade de manutenção da ordem constitucional e o que é interesse político de ocasião do Presidente da República. Nos processos em que se discute o sistema jurídico de forma abstrata, a condição técnica de operadores do sistema jurídico é filtro necessário para qualificar o processo da jurisdição constitucional e evitar a alegação de judicialização da política.

É, por isso, que existem os dois artigos da constituição que transformam o advogado e a AGU em instituições de garantia dos direitos, no caso o de preservação da própria Constituição. São eles os arts. 131 e 133.

Em segundo lugar, não haveria nenhum prejuízo às atribuições do Chefe do Executivo, uma vez que é ele mesmo nomeia o AGU que está, de certa forma, subordinado a ele, mas cuja experiência como advogado e a possibilidade de um aconselhamento de alguém nessa posição tenderia a melhorar a qualidade da argumentação. Além do mais, não há argumentos de razão pública para o presidente bypassar o seu próprio advogado.

Em terceiro lugar, permitir a advocacia perante o órgão de cúpula do Poder Judiciário parece uma afronta – ou no mínimo um desprestígio – à separação de poderes. Em outros países, exige-se para litigar em cortes superiores não apenas uma carteira da ordem dos advogados, mas uma carteira especial. Daí vem inclusive a distinção em língua inglesa dos advogados (lawyers como gênero), que se subdivide entre o solicitor (para as primeiras instâncias) e o barrister (para instâncias recursais), por exemplo.

Permitir a advocacia no STF sem habilitação jurídica explícita parece equiparar o STF a um inexistente “juizado especial constitucional”. E a Suprema Corte não é nem pode ser um supremo juizado especial constitucional. Toda a construção desde a E.C. n. 45/04 tem sido na direção de construir uma Corte Constitucional, como Corte de Precedentes.

Em quarto e último lugar, em que pese a importância de manter os precedentes estáveis e coerentes como determinar o art. 926 do CPC, este dispositivo também determina que eles sejam íntegros. Por isso, é que se defende aqui uma visão crítica da posição consolidada no STF. Por isso, defende-se a necessidade de advogado e a vedação a capacidade postulatória plena do chefe do Executivo.

Afinal, integridade institucional do STF e da AGU exigem isso. A presença do Advogado tenderá a propiciar um debate de qualidade mais elevada na jurisdição constitucional, em especial tendo em conta a tradição brasileira, latino-americana de Presidentes que são monológicos, seja pelo perfil ensimesmado, seja pelo excesso de competências e atribuições de poderes que concentram.

Esse diálogo institucional, entre o chefe do poder executivo e a instituição de garantias, AGU, parece uma exigência mais do que razoável e não um mero formalismo. Poderia promover um produtivo diálogo não só para a jurisdição constitucional, mas também para a proteção dos direitos fundamentais e para a própria democracia constitucional.

Por fim, em boa hora, essa necessidade do advogado para postulação e a diferença entre a legitimidade e a capacidade postulatória, que defende-se aqui, acabou sendo  devidamente reconhecida pela decisão do ministro Marco Aurelio, relator da ADI 6764, que chamou de “erro grosseiro” na representação judicial, erro esse que impede, inclusive, o  saneamento.


O episódio 53 do podcast Sem Precedentes discute ações sobre a Lei de Segurança Nacional, que tem sido usada em inquéritos contra críticos de Bolsonaro. Ouça:


[1] O presente artigo foi escrito e aprovado para publicação antes da decisão de 23.03.2021 que indeferiu a petição inicial da ADI 6764.

[2] http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=266140

[3]http://stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDiarioProcesso.asp?numDj=201&dataPublicacaoDj=24/09/2018&incidente=3957839&codCapitulo=2&numMateria=28328&codMateria=8

[4] Lei n. 9.868/99: Art. 3o A petição indicará: Parágrafo único. A petição inicial, acompanhada de instrumento de procuração, quando subscrita por advogado, será apresentada em duas vias, devendo conter cópias da lei ou do ato normativo impugnado e dos documentos necessários para comprovar a impugnação.

[5] Lei n. 9.868/99: Art. 14. A petição inicial indicará: Parágrafo único. A petição inicial, acompanhada de instrumento de procuração, quando subscrita por advogado, será apresentada em duas vias, devendo conter cópias do ato normativo questionado e dos documentos necessários para comprovar a procedência do pedido de declaração de constitucionalidade.