O que (ou a quem) a Lei de Segurança Nacional de fato protege?

JOTA.Info 2021-03-24

A Lei de Segurança Nacional (LSN) foi uma das bases legais mais importantes para a perseguição política durante a Ditadura Militar no Brasil (1964-1985), especialmente ao tratarmos das versões anteriores à de 1983. Ainda vigente após o processo de redemocratização, questiona-se se tal legislação foi de fato recepcionada pela Constituição Federal de 1988 (CF), uma vez que suas disposições foram utilizadas justamente para criar “inimigos da Nação” e justificar ações arbitrárias por parte do governo militar.

Nesse meio tempo, de todos os lados do espectro político, a existência dessa lei continua sendo defendida como um sacrifício que é válido – seja por ser uma “arma” contra a oposição ao governo, quanto por, teoricamente, poder ser utilizada contra aqueles que ameaçam instituições hoje democráticas, como o Supremo Tribunal Federal (STF). Indo em contramão ao segundo pensamento, que é o único com alguma intenção de constitucionalidade, defendo que a continuidade da LSN em nosso sistema jurídico em nada se justifica como ferramenta protetora dos cidadãos. Para isso, precisamos entender por que e como essas normas de segurança nacional surgiram.

Desde o início da República, em 1889, até 1935, quando da criação na Era Vargas da primeira lei que abordaria a segurança nacional, os chamados “crimes contra a segurança do Estado” eram tipificados no Código Penal (CP), nos títulos I e II, respectivamente sobre a “existência política da República” e a “segurança interna da República”. O CP de 1940, elaborado durante o Estado Novo, não mais previa tais crimes, sendo eles passados justamente para aquela que seria a LSN do Governo Vargas, que a fizera de forma mais rigorosa e com menos garantias processuais do que as presentes no CP.

A legislação de segurança nacional de Vargas não deve ser observada da mesma forma que a sua sucessora, visto que o termo “segurança nacional” só passou a ter um endereçamento teórico e ideológico mais institucionalizado na Ditadura Militar. O conceito é originário do National War College dos Estados Unidos, que elaborou a “doutrina de segurança nacional” para combater uma suposta “ameaça comunista” no contexto posterior à Segunda Guerra Mundial, isto é, em meio à Guerra Fria. Tal doutrina foi incorporada por nossa Escola Superior de Guerra e aplicada a diversas normas da Ditadura, especialmente as LSN.

Em termos gerais, a doutrina de segurança nacional fundamenta-se na necessidade de um consistente desenvolvimento econômico e de uma estrutura forte para garantir a segurança interna do país. Portanto, justificava uma atuação incisiva do Estado por meio da segurança nacional, que faria o que fossenecessário para atingir tais objetivos, expressão essa que, como bem sabemos, significava o atropelo de direitos fundamentais. Com o Decreto-Lei nº 314/67 (uma das LSN), junto com o Ato Institucional nº 5/68, os crimes contra a segurança nacional ganharam uma subjetividade passiva extra: o conceito de “Nação” seria adotado em detrimento daquele de “Estado”, dando-se a ideia de que não se tratava de um crime praticado contra a autoridade estatal, mas sim contra os cidadãos e a sociedade civil. Com a soma dessas normas, confundia-se a criminalidade comum com aquela que seria a criminalidade política. O que as distinguia era simplesmente a vontade das autoridades.

A LSN vigente, de 1983 veio de um cenário de transição com a Lei de Anistia, em que movimentos sociais e de oposição à Ditadura Militar apontavam a incompatibilidade da Lei de 1978 com a redemocratização do país. Entre aqueles que estudam a LSN, não é pacífico o debate sobre a sua recepção pela CF, bem como o fato de ela continuar ou não incorporando a ideologia da Ditadura. Uma série de autores já destacaram pontos da lei que indicam sua inconstitucionalidade – debatendo-se se ela seria integral ou parcial.

Em face disso, sou partidária daqueles que enxergam na própria existência da lei algo inerentemente contrário àquilo que a CF prevê.

Mesmo assim, alguns pontos problemáticos da lei foram superados graças à nova Constituição. Podemos citar as garantias do réu e sua defesa, como a autorização da incomunicabilidade do indiciado no período inicial das investigações, por prazo prorrogável de cinco dias (art. 33, §§1º e 2º) e o recolhimento do preso em estabelecimento diverso dos presos comuns (art. 33, §3º), além da possibilidade de manter o indiciado preso ou sob custódia por um prazo de 15 dias, comunicando o fato ao juízo competente (art. 33, caput). Assim, esses problemas puderam ser afastados pelos incisos LXI e LXIII do art. 5º (ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária e o direito do preso de ser informado de seus direitos). A CF também modificou a competência para o julgamento desses crimes, que seria da Justiça Militar (art. 30 da LSN), passando agora à Justiça Comum, especificamente a Federal (art. 109, IV).

No entanto, muitos outros aspectos perigosos da lei persistiram. Tratando-se de referências à doutrina de segurança nacional, a LSN possui os arts. 22 e 23, que vão criminalizar a propaganda e a conduta de incitar a “luta de classes”, como referência à ideia de que o “inimigo da Nação” era o opositor do governo, de esquerda. Fragoso propunha que fosse feita uma interpretação democrática, pois “nenhuma lei é suficientemente má quando temos bons juízes”. Todavia, creio que abrir tal espaço de arbitrariedade através da manutenção desses tipos penais é arriscado demais, sendo mais adequado reforçar a necessidade de leis bem redigidas e com propósito efetivo de proteção a garantias fundamentais e democráticas.

Outro ponto da lei alvo de críticas é o uso de expressões vagas e indeterminadas, como é o caso do termo “sabotagem” (art. 15), que não possui uma definição técnica ou uma descrição dos atos que o caracterizam, e a expressão “grupos paramilitares”, que dá ampla margem para a interpretação sobre quem deve ser qualificado como tal.

É possível fazer uma lista extensa desses termos, como “entrar em entendimento com governo ou grupo estrangeiro” (art. 8º), “incitar a subversão da ordem política ou social”, “incitar a animosidade entre as Forças Armadas” (art. 23), entre outros. Tratamos de um tipo penal aberto, constituindo-se uma afronta aos princípios da taxatividade e da anterioridade da lei, presentes no princípio da legalidade (art. 5º, XXXIV, CF), que vai de encontro a interpretações extensivas, ampliativas ou ambíguas em relação ao tipo penal[1]. Diante disso, a legalidade proíbe que sejam criadas figuras penais cuja descrição é feita de forma vaga e indeterminada[2].

Nilo Batista aponta esses fatores como “imperfeições técnicas” da LSN, além de trazer o detalhe das incriminações sobrepostas, ou seja, incriminações inúteis, voluptuárias, tanto internamente quanto em relação a outras legislações. Isso porque fala em “saquear, roubar…” e “devastar, depredar”, isto é, núcleos do mesmo tipo penal, como se houvesse alguma diferença entre eles. Ainda, o art. 21 trata da revelação de segredo militar, sendo que o art. 144 do Código Penal Militar já aborda o ato de revelar notícia, informação ou documento cujo sigilo seja de interesse da segurança externa do país, tornando inútil o dispositivo na LSN.

Apesar de alguns entenderem que houve de fato um abandono da lógica da Ditadura Militar, a LSN de 1983 continua sendo uma lei especial que faz referência ao Direito Penal Militar em detrimento do Direito Penal Comum, o que demonstraria um regime de excepcionalidade para esses crimes.

Conforme mencionado anteriormente, as leis de segurança nacional da Era Vargas eram conectadas com o Direito Penal Comum, demonstrando-se que aquele não é o único caminho possível em termos de legislações de segurança nacional. Ademais, como comenta Fragoso, “a formulação de leis especiais nesse material é sempre inspirada pelo propósito de submeter a repressão desses crimes a critérios de particular severidade; que não correspondem a uma visão liberal”.

Aqueles que defendem a existência de uma LSN como sacrifício pela democracia devem considerar o que motivaria manter a lei vigente, se nas diversas hipóteses de efetiva ameaça (isto é, além de mera manifestação do pensamento) o CP é ou pode ser capaz de contemplar uma ameaça a bens jurídicos importantes, como o art. 253, sobre transporte de explosivos. Se tratamos de ofensa a ideais democráticos no campo da manifestação do pensamento, obtemos alguma efetividade no debate público ao encarcerar os dissidentes? Enquanto sequer conquistamos a efetivação do Direito à Memória no Brasil, por que trocamos essa luta por uma defesa de um uso casuístico da LSN para refrear figuras antidemocráticas (cujas ideias não morrem com sua prisão, ainda mais quando são “influenciadoras”)?

Ao comentar sobre a lei anterior, de 1978, Nilo Batista traz reflexão ainda pertinente para a atual LSN: a manutenção, no Direito brasileiro, de crimes de lesa-majestade, como os aqui descritos, que tratam da ofensa à honra de representantes dos poderes da União. Para Batista, essa não é uma questão de motivação política, sendo puramente relativa à honra do indivíduo afetado, que não merece ter sua honra pessoal mais tutelada do que a de qualquer outro cidadão. Entendo ainda que, se prezamos pela liberdade de expressão, figuras públicas são e devem ser mais do que qualquer outro cidadão alvo de críticas e comentários, sendo sempre necessário pesar até que ponto, por exemplo, é válido tutelar toda e qualquer manifestação do pensamento contra um Presidente da República.

Diante dessa exposição, trago o questionamento se a existência da LSN está de fato protegendo os cidadãos e as instituições democráticas, ou se é apenas uma renovação da mesma cartada da “majestade” do Império, que se via lesada pelas críticas à sua administração ou poder. Quando aceitamos o sacrifício de manter vigente uma lei feita pela Ditadura para servir à Ditadura, estamos somente nos deixando enganar pelo termo “Nação”, acreditando na ladainha de que nós, cidadãos brasileiros, somos aqueles protegidos, e não atacados, pela lei.


O episódio 53 do podcast Sem Precedentes discute ações sobre a Lei de Segurança Nacional, que tem sido usada em inquéritos contra críticos de Bolsonaro. Ouça:


[1]NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 15.

[2]BATISTA, Nilo. Bases Constitucionais do Princípio da Reserva Legal. in Revista de Direito Penal e Criminologia n.35. Rio de Janeiro: Forense. 1983, p. 57.