Hard Choices: quando o setor elétrico se depara com desafios distributivos

JOTA.Info 2021-03-31

Esta segunda coluna é o verdadeiro nascimento da Vozes Negras no Direito, espaço que surgiu da necessidade de vermos negros apontando temas relativos à sua formação acadêmica e temas que em que atuem profissionalmente, sendo a primeira coluna a tratar especificamente sobre um tema controvertido que não se relaciona à Diversidade e Inclusão (D&I).

Neste sentido, será abordado hoje um dos temas mais controvertidos do setor elétrico brasileiro, qual seja, o adequado tratamento da chamada geração distribuída (GD) pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL).

Nos últimos quatro anos foi verificado um crescimento extraordinário da geração distribuída, tornando-se um setor econômico que gera centenas de milhares de empregos, enquanto propicia economia nas faturas mensais de energia elétrica a consumidores residenciais, bem como a comércios e indústrias dos mais diversos portes.

No entanto, com a ascensão extraordinária de sua importância no cenário brasileiro, cresceram na mesma proporção (se não ainda mais fantasticamente) os questionamentos quanto às causas subjacentes da lucratividade de projetos de GD e, consequentemente, de sua popularidade.

Isso porque parte da atratividade da GD advém do fato de ser possível a compensação entre a energia gerada com o consumo mensal do consumidor, ou seja, não se trata de uma operação de compra e venda de energia elétrica entre a distribuidora local e o consumidor que tenha instalado um sistema de geração distribuída.

Essa operação é definida pelo normativo da matéria, a Resolução Normativa nº 482/2012 (REN ANEEL nº 482/2012) como sendo:

“Art. 2º Para efeitos desta Resolução, ficam adotadas as seguintes definições:

(…)

III – sistema de compensação de energia elétrica: sistema no qual a energia ativa injetada por unidade consumidora com microgeração ou minigeração distribuída é cedida, por meio de empréstimo gratuito, à distribuidora local e posteriormente compensada com o consumo de energia elétrica ativa;” (Grifou-se)

Esta definição, que trata  a relação entre a energia gerada pelo consumidor como um empréstimo gratuito para a distribuidora, sendo passível de compensação nas mesmas condições comerciais, permitiu a concessão de benefícios fiscais por meio do Convênio ICMS 16, de 22 de abril de 2015, o que na prática implica a incidência do  Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS) apenas sobre a parcela da energia não compensada.

Tal fato, somado ao mecanismo de empréstimo gratuito da energia gerada por meio da GD, faz com que surjam sérias dúvidas quanto aos efeitos distributivos da geração distribuída.

Explica-se: além da redução do ICMS recolhido pelos consumidores atendidos parcial ou integralmente por GD (mas ainda conectados às redes de distribuição da distribuidora de energia local) ser menor do que o de consumidores com consumo equivalente, há efeitos sobre as distribuidoras com custos (alegadamente não ressarcidos) em relação à estruturação de reforços na rede e nos indicadores de perda de energia, bem como repasse de encargos para consumidores que não possuem GD, o que impacta desproporcionalmente os mais pobres.

Com isso, não se busca dar uma resposta definitiva sobre a pertinência ou não da manutenção dos incentivos à GD, tampouco estabelecer o cronograma de redução dos subsídios e/ou fixar o patamar ótimo dos citados subsídios para a diminuição do impacto negativo sobre demais consumidores e distribuidoras de energia e aproveitamento dos benefícios ambientais advindos de uma produção de energia mais próxima do consumidor e advindo de fonte renovável.

A questão técnica relativa à tangibilização e tradução dos benefícios da disseminação da GD na sua configuração atual em termos financeiros é de complexidade ímpar, da mesma forma que os trade-offs envolvidos em privilegiar a geração descentralizada em detrimento de grandes projetos de geração de energia renovável.

Para ilustrar a complexidade envolvida nas escolhas que devemos tomar enquanto sociedade, no 30º Leilão de Energia Nova A-6 foi obtido o preço de R$ 84,00/MWh[1] em projetos de fonte solar fotovoltaica, enquanto a tarifa residencial brasileira média estava em R$ 463,54/Mwh em 2014[2]. Tem-se assim que, ao menos em tese, a geração centralizada contribui mais intensamente para a redução das tarifas de energia que o uso da GD.

Neste sentido, para explicitar adequadamente os benefícios implícitos da GD, apontei em artigo escrito com Eduardo Bruzzi para este mesmo JOTA, que:

“No dia 17 de setembro de 2020 foi aprovada pela diretoria colegiada da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) a Resolução Autorizativa nº 9.224, de 15 de setembro de 2020 (REA ANEEL nº 9.224/2020)[1]. A REA ANEEL nº 9.224/2020 aprova o pleito da Copel (Companhia Paranaense de Energia) de realizar chamada pública para contratação de projetos de geração distribuída com o objetivo distinto de meramente atender à necessidade de fornecer energia elétrica na sua área de concessão. A chamada pública em questão, ao contrário, assume como benefício fundamental a possibilidade de formar microrredes para a melhoria dos indicadores de confiabilidade do suprimento de energia e redução de perdas em conjuntos elétricos[2] com características geográficas e sociais desafiadoras..”[3]

Assim, a discussão sobre subsídios na GD ainda não considera adequadamente todo o seu rol de vantagens potenciais (mas ainda não tangibilizadas), que podem envolver redução dos custos para a generalidade dos consumidores brasileiros, mesmo aqueles que não possuam sistemas de geração distribuída.

Conclusivamente, é necessário compreender se e quais os reais benefícios (inclusive o fato de ser uma geradora de empregos num cenário de severa crise econômica) advindos da popularização da GD no país, bem como os custos distributivos decorrentes desta expansão exponencial, única forma de se atingir uma regulação ótima que concilie interesses vistos atualmente como antagônicos entre os consumidores que possuem GD e aqueles atendidos no mercado cativo.


O episódio 54 do podcast Sem Precedentes discute o julgamento da 2ª Turma do STF, que decidiu que Moro foi parcial em suas decisões no caso do tríplex do Guarujá contra Lula. Ouça:


[1] Disponível em: https://www2.aneel.gov.br/aplicacoes/editais_geracao/documentos/Resultados-do-Leilao_4-2019_30len_a6.pdfAcesso: 30 mar. 2021

[2] Disponível em: https://www.aneel.gov.br/dados/tarifas  Acesso: 30 mar. 2021

[3] WILSON, Andreu; BRUZZI, Eduardo. Inovação no setor elétrico: novas tecnologias e sandbox regulatório. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/regulacao-e-novas-tecnologias/inovacao-setor-eletrico-sandbox-regulatorio-14112020Acesso: 30 mar. 2021