Conflito de interesses formal ou substancial?

JOTA.Info 2021-04-22

O conflito de interesses, no âmbito societário, é a situação a partir da qual o acionista ou administrador encontra-se em posição dupla frente à sociedade empresária (i) na tomada de decisões nas assembleias gerais e (ii) na atuação cotidiana dos órgãos administrativos dessa mesma companhia[1]. O assunto, tutelado pela Lei n° 6.404/76 – Lei das Sociedades por Ações (LSA) -, apresenta controvérsia persistente, principalmente no que tange à natureza, extensão e eventual oponibilidade ao exercício do direito de voto pelo administrador ou acionista.

A LSA, ao impor a vedação de intervenção em qualquer operação em que exista interesse conflitante com o da companhia, aborda dois mecanismos de restrição ao exercício do direito de voto: o do acionista, no parágrafo primeiro do artigo 115; e do administrador, no artigo 156. Do parágrafo primeiro do artigo 115, que determina que o acionista não pode votar quando houver interesse conflitante com o da companhia, surgem duas posições doutrinárias. A primeira aponta que a mera contraposição de interesses, (conflito formal) é suficiente para a proibição do voto. A segunda, por outro lado, aponta que a contraposição é insuficiente para caracterizar impedimento de voto (conflito substancial), cuja validade dependerá do exame circunstanciado do caso concreto.

A Medida Provisória (MP) nº 1.040 de 29 de março de 2021, modificando a redação do artigo 122 da LSA[2], passa a prever como competência privativa da assembleia geral a deliberação sobre transações com partes relacionadas (TPR) em companhias abertas.

A CVM estabelece que a “transação com parte relacionada é a transferência de recursos, serviços ou obrigações entre uma entidade que reporta a informação e uma parte relacionada, independentemente de ser cobrado um preço em contrapartida”[3]. Para estes efeitos, consideram pessoas e entidades relacionadas, em rol exemplificativo, aquelas que detêm controle pleno ou compartilhado e influência significativa sobre o conteúdo da informação, estejam sob controle comum e forneçam serviços relacionados à entidade relacionada.

Como consequência circunstancial dessas transações, há maiores desafios quanto à competitividade, conformidade, transparência, equidade e proporcionalidade das decisões; à proteção dos investimentos minoritários frente ao tunneling, transformando as deliberações em formas de extração de riqueza em detrimento dos acionistas minoritários; ao monitoramento do propping, que pode reduzir o bem-estar social geral, distorcendo a concorrência na economia e alocando mal os recursos públicos em transações com estatais, além de reduzir o espaço de empresas privadas na quebra de condições de igualdade, entre outros.[4]

Neste ponto, indaga-se: a MP nº 1.040 põe fim à controvérsia ou, ao menos, exerce algum impacto para aplicação de um dos entendimentos sobre a natureza do conflito prevista no § 1º do artigo 115?

A relevância do questionamento considera que os reflexos da competência privativa da assembleia para deliberação de transações com partes relacionadas são diferentes dependendo do entendimento adotado.

Nas TPR, analisando a MP sob o viés formal, haverá o impedimento de voto e esse controle de validade ex ante tende a gerar maior resultado para a companhia, conforme entendimento firmado no Reg. Col. 0728/2017 da CVM, à medida que gera maior celeridade às negociações e tende a diminuir custo para acionistas minoritários que queiram, eventualmente, questioná-las nas esferas administrativa e judicial. Por outro lado, o controle a posteriori exige prova do conflito de interesses; do dano – potencial ou atual – e; de que o voto do acionista com interesse conflitante tenha se mostrado determinante para a formação da maioria[5].

Em suma, ao realizar a análise do conteúdo do voto, reveste a aprovação do negócio pela assembleia em regra de disclosure, fator positivo, cuja consequência será permitir, em companhias com capital diluído pelo mercado, que a assimetria de informações dê lugar a um tratamento mais cuidadoso por parte dos acionistas, já que as decisões precisarão ser justificadas e contratadas com base nas condições de mercado. Cria-se limites mais claros e objetivos determinantes à correção das decisões atacadas, coibindo atos abusivos e contrários aos interesses da sociedade, além de diminuir a possibilidade de tunneling e propping.

Por outro lado, as TPR geram consequências que não são mitigadas mediante regras de transparência, já que em face do prejuízo da coletividade dos acionistas emergem suspeitas sobre as motivações da companhia em realizar a operação com parte relacionada.

O reflexo do impedimento ao exercício do voto é afastar, ao menos em tese e maior grau, a ocorrência das situações citadas. Essa “blindagem”, por sua vez, deve ser sopesada com o risco de submeter as transações com partes relacionadas à decisão da maioria da minoria que pode (i) não estar adequadamente informada sobre o real valor da operação para a companhia e vetá-la e (ii) fazer com que os custos marginais da aprovação anulem a vantagem ou viabilidade da operação, em virtude de desconfiança. A análise posterior ou substancial, por outro lado, aumenta a possibilidade de presença de conflitos, cujas soluções por regras de julgamento nem sempre fornecem resposta adequada.

Infere-se dessa breve análise que a interpretação do conflito de interesses previsto no artigo 115 sob o ponto de vista substancial não parece vantajosa. Entretanto, o respeito à mera literalidade da lei – conflito formal – mostra-se, muitas vezes, insuficiente para construir um ambiente empresarial confiável e transparente, porque incapaz de oferecer elementos definitivos para o deslinde da controvérsia. Exemplo disso é o fato de a CVM ter editado diversos atos normativos, como as Instruções nºs 358/02, 480/09, 481/09, 488/10, 509/11, 520/12, 525/12 e 547/14 e o Parecer de Orientação nº 35/08 objetivando, resumidamente, descrever regras e políticas do emissor para a realização da TPR.

Em contrapartida, há necessidade de criação de mecanismos paraestatais que assegurem efetividade e independência ao processo decisório-negocial, além de comutatividade ao resultado alcançado. O que se questiona é se a configuração da natureza formal seria a mais adequada para manejar a situação criada pela MP nº 1.040, justamente por não criar mecanismos definitivos para a solução das controvérsias. Tema central do direito societário, a coesão dos sócios ou dos contratantes em torno do objetivo social pré-estabelecido e a segurança jurídica das decisões tomadas, seja no plano assemblear, seja no judicial, depende da aplicação das regras criadas para o conflito de interesses.

Nesse sentido, em se tratando de riscos, a proibição formal possibilita que transações eficientes sejam rejeitadas, ao passo que a substancial, que transações ineficientes sejam celebradas. Por isso, uma posição legislativa mais clara sobre o tema evitaria desvios de interpretação quanto à natureza do conflito e demonstraria a intenção do legislador ao editar a MP, sobretudo se considerarmos que a grande maioria dos acionistas, em companhias abertas, atua como investidor, cuja expectativa é de retorno do seu capital em forma de dividendo ou aumento do valor de suas ações, demonstrando o potencial conflito de interesses na estrutura societária.

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[2] Art. 122. Compete privativamente à assembleia geral: X – deliberar, quando se tratar de companhias abertas, sobre:b) a celebração de transações com partes relacionadas que atendam aos critérios de relevância a serem definidos pela Comissão de Valores Mobiliários. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Mpv/mpv1040.htm>. Acesso em 30 mar. 2021.

[3]Pronunciamento Técnico CPC nº 05, 2010. Disponível em:<http://conteudo.cvm.gov.br/export/sites/cvm/menu/regulados/normascontabeis/cpc/CPC_05_R1_rev06_Consolidado.pdf>. Acesso em 30 mar. 2021.

[4] MILHAUPT, Curtis J; PARGENDLER,Mariana. RPTs in SOEs: Tunneling, Propping, and Policy Channeling (March 1, 2018). Disponível em: <https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3119164> Acesso em 31 mar. 2021.

[5] EIZIRIK, Nelson. A Lei das SA comentada. São Paulo, Quartier Latin 1v, pp.663-664, 2011.