Ensino jurídico, crise e conjuntura em debate

JOTA.Info 2021-04-22

As faculdades de direito no Brasil de longa data têm formado quadros para as profissões jurídicas. Diversas carreiras se tornaram privativas de bacharéis. Há ainda diferentes ocupações e atividades, como o jornalismo e a assessoria em entidades da sociedade civil, que se beneficiam de egressos com as competências aprendidas nos cursos jurídicos. A vocação profissionalizante do ensino jurídico é, pois, um dado iniludível.

Fora das faculdades de direito, há ainda cursos internos em órgãos, como a Magistratura e Ministério Público, e em escritórios de advocacia que participam do ensino do direito em sentido mais amplo. Há um aprendizado de rotinas e a produção de conhecimento próprio, voltado para o funcionamento dessas instituições.

Reconhecer a existência de diferentes espaços para o cultivo do conhecimento jurídico serve para demarcar a relevância específica das faculdades de direito. Muitos cursos jurídicos integram universidades, onde produzem um conhecimento especializado para a prática profissional mas também para o debate público mais amplo. O ambiente da universidade oferece oportunidades para articular o ensino com as práticas de pesquisa e extensão. Disciplinas mais vocacionadas para a prática podem entrar em intercâmbio virtuoso com disciplinas mais interdisciplinares que traduzem conhecimentos e métodos de outros campos.

Na universidade, há mais liberdade para inovação e experimentação, sem a urgência para tomar decisões ou aconselhar os clientes do sistema jurídico.

Outra oportunidade é a vocação das faculdades de direito para apresentar o direito em vigor, compreender sua gênese e efeitos, e para imaginar outro direito mais justo. Há uma luta incessante nas profissões, nas várias arenas públicas e privadas, para interpretar o direito. As faculdades de direito também fazem parte desta disputa. O ensino acadêmico do direito está empenhado em apresentar uma imagem coerente, sistemática, normativamente justificada do direito. Estes atributos dificilmente podem ser conseguidos pelos participantes imersos na prática profissional propriamente dita. Se é verdade que a faculdade de direito forma para a profissão, ela não está na profissão, nem deve se confundir com ela.

Realizar estas oportunidades, não resta dúvida, impõe um sem número de desafios e revela a complexidade de refletir sobre o ensino jurídico adequado à conjuntura atual. Com o intuito de subsidiar essa reflexão, a Faculdade de Direito da USP (FDUSP) promoveu, entre 13 e 15 de abril, a 4ª edição da Semana Pedagógica, com participação de docentes de várias Instituições e discentes da graduação e pós-graduação.[3] O evento faz parte do esforço coletivo em andamento para fazer um balanço do novo Projeto Político-Pedagógico, implantado em 2017.

Este projeto teve como foco principal a mudança da grade curricular com uma redefinição da proporção entre disciplinas obrigatórias e optativas, respondendo cada qual respectivamente por cerca de 70% e 30% da carga horária. Embora o projeto tenha sido uma construção coletiva com participação aberta à toda comunidade de FDUSP, ainda existe um saudável dissenso na matéria. Por um lado, alguns docentes têm advertido sobre a insuficiência da carga horária das disciplinas obrigatórias para apresentar o conteúdo jurídico e questionam o estudo de tópicos especializados, ofertados em disciplinas optativas, em detrimento do conteúdo  básico. Por outro lado, há a avaliação de que existe espaço razoável para a apresentação do conteúdo fundamental e que as optativas permitem focalizar tópicos emergentes, promover melhor aproveitamento das pesquisas em andamento e maior integração com outros cursos da Universidade. As optativas, ainda, representam oportunidades para inovações e experimentalismos metodológicos, algo desejável em um curso jurídico que busca responder a novos problemas e complexidades sociais.

Neste ano de 2021, teremos a primeira turma de bacharéis formada sob vigência do novo projeto pedagógico, o que torna a ocasião propícia para iniciar um balanço. Saber se o espaço reservado às disciplinas obrigatórias é suficiente vai requerer uma discussão aprofundada e coletiva sobre o tema complexo de quais conteúdos devem formar o núcleo fundamental, quais conteúdos podem ser bem desenvolvidos em disciplinas obrigatórias gerais e quais conteúdos caberiam às disciplinas obrigatórias específicas e às optativas. Vai envolver, também, o debate sobre quais habilidades são desejáveis para o bacharel formado pela FDUSP. Afora a mudança da grade e a discussão dos conteúdos, o terceiro eixo que vai merecer uma reflexão coletiva é o das práticas e métodos de ensino. Há uma acúmulo de iniciativas individuais bem sucedidas, como as centradas no discente, que merecem ser sistematizadas, discutidas e divulgadas.

Em uma instituição, como a do porte da FDUSP, só é factível um projeto pedagógico construído coletivamente, sensível às especificidades das diferentes áreas, apto a valorizar e generalizar as experiências individuais bem-sucedidas.

Os debates da Semana Pedagógica não se restringiram, contudo, à avaliação da nova grade curricular. As diversas intervenções situaram o tópico do ensino jurídico em um arco maior de reflexão sobre as transformações da política e economia, os inauditos desafios do presente, a nova configuração das profissões jurídicas, a integração com a pesquisa de pós-graduação e a mudança de perfil dos discentes que passaram a ingressar nos cursos de direito.

Foi enfatizado o papel das faculdades de direito como o ambiente adequado para a inovação e para o experimentalismo, com ênfase, por alguns expositores, ao papel da pesquisa empírica como meio de consolidar uma nova epistemologia do direito, especialmente no que tange à análise da eficácia das leis. A transversalidade de um ensino não limitado pelas tradicionais áreas do direito foi posta como desafio. O papel do aluno como figura ativa no processo de aprendizado também despontou como reflexão importante durante as falas. Como era de se esperar, foram várias as perspectivas trazidas, o que denota a complexidade do problema posto, bem como as múltiplas possibilidades de escolhas político-pedagógicas.

Merece destaque outro tema abordado, a saber, o impacto do ensino remoto (com o uso de instrumentos da educação a distância). O corpo discente teve a iniciativa de realizar uma pesquisa preliminar com achados contundentes sobre questões de gênero, privacidade e renda implicados no formato de ensino virtual praticado em 2020 por imposição da pandemia.

Como encaminhamento para a discussão, a FDUSP promoverá uma série de debates sobre temas considerados desafios atuais para o estudo do direito, neles incluídos o processo legislativo, tributação distributiva, Estado, gênero e raça.

O trabalho de reconstrução institucional para fortalecer e assegurar o Estado Democrático de Direito está na ordem do dia. Pautas por eqüidade de gênero, raça e classe ganharam relevância incontornável na esfera pública. Também é indispensável e urgente a reconstrução das bases para o desenvolvimento do país. O ruinoso processo político em curso e os efeitos deflagrados pela pandemia agudizam ainda mais os problemas. Sob pena de irrelevância, as Faculdades de Direito não podem se furtar a contribuir com reflexão, pesquisa e profissionais.[4] Já foi dito que a Universidade está sempre em reforma[5], o mesmo vale para o curso de direito. Isso não pode ser diferente para um ensino jurídico que esteja à altura da sua época.

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[3] Os debates estão disponíveis em https://bityli.com/dx1Qr.

[4] O primeiro artigo desta série do JOTA aprofunda este diagnóstico https://bityli.com/M3LDN.

[5] Luiz Antônio Cunha, A Universidade Reformanda. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.