Do Tribunal da Vida ao Palco da Impunidade

JOTA.Info 2021-05-03

O projeto de lei que tramita na Câmara dos Deputados e que pretende normatizar o “Novo Código de Processo Penal” (CPP) precisa ser acompanhado com grande preocupação pela opinião pública e jurídica, notadamente pelos retrocessos possíveis para a persecução criminal e, em especial, ao julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

Fincado e construído sob as linhas do penalismo minimalista, o projeto é a contradição entre o “novo”, de data de nascimento, e o “velho”, na concepção de suas ideias. Atraso que se verifica já nas primeiras disposições, ao dispor que as leis processuais serão interpretadas sob orientação da “proibição de excesso”, da “dignidade da pessoa humana” e da “máxima proteção dos direitos fundamentais” (artigo 5º). Esses aforismos perfazem apenas uma faceta da proteção de direitos fundamentais, que neles não se exaure. E por uma situação simples: tais expressões compõem apenas o garantismo negativo, decorrente da relação vertical entre Estado e indivíduo, a vigorar sobre o núcleo individual de direitos individuais, a priori não suscetíveis de intervenções do Estado.

Se em determinado momento da história a proteção do status negativo foi fundamental para consolidação das liberdades individuais, não há como negar que os conflitos da pós-modernidade impõem uma reestruturação na relação de defesa de direitos fundamentais. Atualmente, a esfera de proteção de direitos fundamentais não se resume ao binômio Estado-indivíduo, mas também às relações entre indivíduos nos conflitos diuturnamente ocorridos. A horizontalização de conflitos dos direitos fundamentais tornou o Estado agente dúplice em tais relações, em um tridimensionalismo estrutural: de um lado, não se deve permitir intervenções indevidas no núcleo das liberdades individuais e, de outro, a necessidade de proteção eficiente desses direitos em colisão. Outra faceta denominada garantismo positivo.

Ambos, garantismo negativo e garantismo positivo encontram esteio no texto constitucional. O primeiro tem, como fundamento estrutural, o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III da CF), do que decorre o princípio da proibição de excesso, ou seja, de não se admitir intervenções nas liberdades dos indivíduos desnecessárias ou inadequadas. O segundo está fincado no fundamento da cidadania, artigo 1º, inciso II da CF, no exercício pleno dos direitos fundamentais do ser humano perante a sociedade, cumprindo ao Estado tal garantia pela proibição de se proteger de forma ineficiente. Assim, a proteção de tais direitos apenas se dará em sua integralidade na medida em que for possível alcançar o ajuste ideal, decorrente da ponderação de valores a serem sopesados em uma relação jurídica existente. O garantismo integral, portanto, nada mais é do que se alcançar a equação ideal entre a proteção eficiente de direitos fundamentais, sem que haja excessos desnecessários ou inadequados.

Essa é a balança do princípio da proporcionalidade nos conflitos penais, que deve existir, não apenas no conflito real, mas na própria elaboração das Leis, a fim de que seja construído o sistema jurídico que alcançará a devida força normativa, a não se revelar apenas um pedaço de papel sem qualquer resolutividade prática.

Todavia, o “Novo” Código de Processo Penal ignora tais assertivas, elevando-se apenas o garantismo negativo como vetor interpretativo de suas normas, a criar um diploma legal caolho, manco e certamente indutor de injustiças.

Aliás, se o projeto de lei é um rosário de normas que enfraquecem o combate ao crime, no Tribunal do Júri, as alterações propostas praticamente inviabilizam-no para efetiva punição dos assassinos. Destaca-se, dentre elas, três alterações gravíssimas: Fim do Sumário da Culpa; Impossibilidade de Referência às Provas Policiais e a Quesitação.

O Sumário da Culpa é fase fundamental para a maturação do processo. Nesta fase, os fatos ganham seus contornos mais definitivos, com a prova produzida perante o contraditório e a ampla defesa; pois, até então, os elementos de convicção estão restritos ao que fora produzido pela polícia judiciária, havendo tão somente a necessidade de indícios suficientes de autoria para recebimento da inicial. Esta fase também propicia maiores diligências a serem realizadas para efetivar a oitiva de testemunhas, podendo ser alongado enquanto houver condições fáticas para serem ouvidas. E, ao final da instrução, se terá visão mais exata sobre a necessidade de se levar determinado caso a julgamento ou propiciar outra resolução ao processo.

Ao se retirar o Sumário da Culpa, qualquer processo será submetido a julgamento pelo Conselho de Sentença, sem qualquer apreciação de viabilidade prévia de sustentação de determinada acusação em plenário e com todos os prejuízos decorrentes, sejam eles de onerosidade, dado o gasto de se realizar uma sessão plenária ou mesmo de convocações desnecessárias de jurados e com a exposição desnecessária do próprio acusado (inclusive em casos que poderiam se encerrar ainda na primeira do Júri).

Todavia, o maior prejuízo da ausência do Sumário de Culpa é a produção probatória. Pelo substitutivo, toda prova deverá ser realizada em plenário. No entanto, somente haverá uma redesignação de julgamento: caso a testemunha, arrolada em caráter de imprescindibilidade e intimada, não comparecer na respectiva sessão; redesignado o Juri, se não for mais encontrada, o Júri seguirá sem sua oitiva. Ora, não precisa de muito esforço imaginativo para se constatar que as testemunhas estarão em situação extremamente fragilizada; se não houve a produção de prova na fase anterior e se o Júri poderá prosseguir na sua ausência, criminosos – notadamente pertencentes às fações criminosas – exercerão suas “forças argumentativas” a impedir que elas compareçam nas sessões de julgamento.

A segunda alteração gravíssima é a impossibilidade de referência aos depoimentos policiais. A norma é evidentemente inconstitucional, pois a Constituição Federal destina a competência ao Júri para julgamento dos crimes dolosos contra a vida (artigo 5º, XXXVIII, d); logo, a ele cabe o conhecimento pleno das provas coligidas. No entanto, tal vedação aliada à ausência do Sumário da Culpa propiciará situações rotineiras de “acusações sem provas”. Não porque as provas não existam, mas porque não se tornaram possíveis suas reproduções em juízo ou suas exibições. Óbvio que não se está a defender condenações com provas exclusivamente policiais, mas a possibilidade de ao menos confrontá-las para apontar contradições, incoerências e, assim, alcançar a verdade real dos fatos.

Por fim, a quesitação é a terceira alteração gravíssima. Inicialmente, cria-se uma complexidade burocrática desnecessária com três fases de votação – preliminar (quesitos de competência), ordinária (quesitos de mérito) e extraordinária (quesitos de minoração ou majoração da pena). No entanto, a maior preocupação decorre da fase ordinária, que compreende dois quesitos: “o jurado absolve o acusado” e “a acusação sustentada em plenário deve ser mantida”.

De acordo com o substitutivo, depois da vacatio legis de cinco anos, esse quesito – “o jurado absolve o acusado” – deverá ser decidido por unanimidade, seja para absolver ou para condenar. A inconstitucionalidade do referido dispositivo também é flagrante, pois a Constituição Federal estabelece – no mesmo artigo 5º, XXXVIII, b – o “sigilo das votações”. Essa garantia fundamental não está direcionada ao acusado, mas ao cidadão-jurado, a quem incumbe o munus público de julgar o crime doloso contra a vida. Sigilo que se apresenta dentro de duas frentes – interna (sigilo entre os próprios jurados, que votarão sob o critério da intima convicção) e externa (sigilo que se impõe perante todas as demais pessoas). Na atual quadra, com o aumento dos crimes de homicídios praticados por organizações criminosas, sabedores os jurados de que os acusados sabem que eventuais condenações serão por unanimidade, qual a tranquilidade pairará sobre eles para realizarem tais julgamentos? Ora, a Lei 11.689/08 já havia corrigido essa fragilidade normativa, impedindo que fossem abertos todos os votos para evitar a quebra do sigilo, logo não seria lógico mais esse retrocesso.

O momento é de serenidade, de se compreender a pertinência de inovação na legislação processual penal. Porém, tais inovações não podem se revelar como verdadeiros retrocessos, a fragilizar sobremaneira a persecução criminal, notadamente o Tribunal do Juri, transformando-o tribunal da vida em palco da impunidade, pois certamente não é o que a sociedade espera e deseja de seu parlamento.

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