Podemos dizer que existe roubo de bebês pelo Estado brasileiro?

JOTA.Info 2021-05-03

O roubo e o tráfico de bebês cometido pelo Estado são os conceitos que mantém o grupo de pesquisa Maternidades Vulneráveis coeso. Esse grupo de pesquisa nasceu na Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPE/SP) em um determinado contexto, cuja história merece ser registrada.

Nos IV e V Ciclos de Conferências da DPE/SP[1], em 2013 e em 2015, duas propostas de atuação institucional foram aprovadas fazendo com que o tema da garantia de direitos de mulheres em situação de vulnerabilidade fosse uma prioridade para a Defensoria ao longo dos próximos anos. Ambas as propostas davam ênfase no direito de permanência da criança com a mãe e no acolhimento conjunto de ambas. O ciclo de conferências resultou na abertura de procedimentos administrativos (PA) internos em Núcleos Especializados da Defensoria[2].

No III Encontro Estadual das Equipes dos Centros de Atendimento Multidisciplinar (CAM) da DPE/SP[3], realizado em 2016, o tema do acolhimento institucional de crianças recém-nascidas foi um dos mais votados para discussão e aprofundamento, fortalecendo a necessidade de reflexão institucional na temática. Após o encontro, um grupo de psicólogas[4] e assistentes sociais se propôs a montar o Grupo de Trabalho (GT) Maternidades, mais tarde renomeado como GT Ceres[5], para refletir sobre o assunto, estudar, colher experiências e desenvolver propostas de atuações voltadas a evitar o acolhimento sistemático e rotineiro de bebês de mulheres vulneráveis. O GT foi o responsável por diversas atuações importantes, entre elas, organizar dois eventos em 2017[6], resultando em impactos relevantes na reorganização de fluxos de atendimento em Campinas (GONÇALVES, 2020).

Em novembro de 2016, a Escola da Defensoria (EDEPE) instaurou os grupos de pesquisa no âmbito da instituição. O grupo de pesquisa Maternidades Vulneráveis nasceu vinculado à atuação das equipes no GT Ceres nessa ampla conjuntura, estabelecendo-se com uma lógica interdisciplinar e horizontalizada de pesquisa. Pouco antes do início do grupo, sabe-se que pesquisas acadêmicas e práticas profissionais voltadas a temas similares emergiam nos CAM de Campinas e de Jundiaí na DPE/SP. O grupo de pesquisa se desvinculou do GT Ceres em 2020, tornando-se um grupo de pesquisa independente. Atualmente, ele é composto por pesquisadoras de diferentes instituições.

Com base nas práticas estabelecidas nesse período, alguns casos foram remetidos para a Comissão de Estudos Interdisciplinares (CEI), que estudou o tema para a criação de fluxos de atendimento para mulheres em situação de vulnerabilidade que estivessem em risco de ter suas crianças recém-nascidas retiradas de si. As discussões da CEI no PA 03/2017 levaram a Defensoria a criar uma indicação de fluxo de atendimento, comunicado por e-mail a todas as trabalhadoras da instituição em 31/07/2018. A mensagem validava um fluxo desenhado após uma série de estudos e reuniões da CEI, em articulação com o GT Ceres, o grupo de pesquisa Maternidades Vulneráveis e o Grupo de Apoio Interdisciplinar (GAI). Nesta época, o GAI também foi mobilizado a produzir um documento de referência técnica para atuação dos CAM sobre o tema[7].

Para entender o que estamos nominando como roubo de bebês pelo Estado é preciso, antes, compreender o processo pelo qual familiares de crianças e adolescentes nos processos de infância e juventude são legados à invisibilidade de suas histórias e trajetórias. É comum que não tenham o devido acesso às políticas públicas e sofram constante responsabilização individualizada sobre a proteção e cuidado de suas crianças sob a perspectiva do pensamento dominante do que se convenciona como sendo uma família “adequada” (DIAS, 2019; GONÇALVES, 2020; RIOS, 2017). Assim, as famílias sobre as quais discutem os processos da infância e juventude sofrem de um sentimento kafkaniano, sendo julgadas por algo que se diz ser errado, mas que não se explica para elas o real motivo. Por mais que tentem compreender os processos judiciais, novos elementos são formulados no decorrer das análises que as afastam ainda mais de uma decisão favorável à retomada de convivência com suas filhas. Em alguns casos, as mulheres retornam à situação de rua após o acolhimento das crianças e, desassistidas pelo Estado, os processos judiciais julgam que estão em “lugar incerto e não sabido”.

O roubo de bebês pelo Estado é o fenômeno de retirada de bebês de suas origens sem o consentimento das mães e/ou familiares, seja por qual motivo for. A prática é colonialista e remonta às estratégias criadas por povos europeus na desaculturação de povos por eles dominados.

Inúmeras são as situações em que as políticas públicas poderiam ser mobilizadas em favor dessas mulheres para a permanência com suas bebês, mas simplesmente não são sequer tentadas. Coloca-se em marcha, em seu lugar, um encadeamento de juízos de (des)valores que identificam as mulheres pobres, pretas e periféricas como imediatamente incapazes de cuidar de suas crianças.

O fenômeno do roubo é identificado nos processos na forma como registros técnicos são colocados e em decisões que evidenciam a elitização das análises realizadas. Observa-se nos processos a exigibilidade inatingível que recai sobre as famílias, que devem se tornar famílias ideais para retomar a convivência com suas bebês. O Estado, por sua vez, conta com uma força dominante que opera em várias dimensões da esfera social, abrangendo corpos legislativos e movimentos pró-adoção.

Assim, o Estado brasileiro rouba bebês das famílias e mulheres em situação de vulnerabilidade, delega-as à invisibilidade, de lugar incerto e não sabido, acelera as análises e torna inalcançável o patamar supostamente necessário para desacolhimento institucional dessas crianças. Por que tão impossível exigência só incide sobre mães e famílias pobres e vulneráveis? Não seriam essas as que mais precisariam do contrário, de apoio e suporte do Estado?

A entrada da Defensoria nos processos de acolhimento institucional é necessária para mobilizar uma reflexão social ampla sobre o fenômeno a partir das equipes interdisciplinares. Observa-se a importância de que a atuação ocorra na linha da sensibilização dos serviços que atuam junto às mulheres gestantes para evitar o acolhimento institucional, mas também para dar visibilidade às histórias de maternidades vulneráveis nos processos judiciais. É parte da atuação interdisciplinar da Defensoria repensar sobre o significado do luto de mulheres que são destituídas de poder familiar, cujas filhas ainda são vivas.

Enquanto houver um pensamento dominante que coloca as mulheres vulneráveis socialmente nessas condições de incapacitadas de exercício da maternidade, será preciso ser contundente e denunciar que não se trata de defesa de superior interesse de crianças. Na verdade, as retiradas de crianças são reedições de “Casa grande e Senzala”, em que senhores de engenhos se apropriam das filhas de mulheres negras para serem dispostas como objetos de satisfação a pessoas de classes mais abastadas, como mercadoria. A  origem dessa dinâmica social de adoção, tão tolerada, é muito antiga.

Extirpar suas raízes passa por tornar visíveis o racismo estrutural e as formas violentas pelas quais o Estado expropria filhas e filhos de famílias pobres, sem garantir a elas alternativas dignas e viáveis à continuidade do convívio familiar. O compromisso do grupo de pesquisa Maternidades Vulneráveis é precisamente produzir conhecimento que leve à superação do racismo na garantia dos direitos das crianças.

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DIAS, T. M. Cuidado às Mulheres Gestantes em Situação de Rua no Município de Campinas – SP: Clínica no limite e o limite da clínica. Dissertação de Mestrado—Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas, 2019.

GONÇALVES, M. A. B. Superior Interesse da Criança e Destituição do Poder Familiar: perspectiva de psicólogas e psicólogos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Tese de Doutorado—Campinas: Pontifícia Universidade Católica de Campinas, 11 fev. 2020.

RIOS, A. G. O fio de Ariadne: sobre os labirintos de vida de mulheres grávidas usuárias de álcool e outras drogas. Dissertação de Mestrado—Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Ciências Médicas, 23 fev. 2017.

[1] Veja as pautas aprovadas em 2013 neste link: https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/repositorio/0/documentos/confer%C3%AAncias/Caderno%20de%20Propostas.pdf; e em 2015 neste link: https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/Default.aspx?idPagina=6066&idPaginaAlt=6066.

[2] Veja a apresentação do evento com os dados ora explicitados em: https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/Repositorio/0/Documentos/MATERNIDADE%20E%20(DES)%20ACOLHIMENTO.pdf.

[3] Veja o folder do evento em: https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/Repositorio/0/Documentos/Folder%20IIIEncontroCam_v2.pdf.

[4] Manteremos o feminino como regra textual em todos os casos. A opção se deu em razão de a maioria das participantes do evento e dos grupos serem mulheres. Além disso, os atendimentos eram voltados para mulheres.

[5] Ceres era a deusa romana das plantas que brotam de grãos e do amor materno. Veja mais em: https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ceres_(mitologia).

[6] Os folders dos eventos estão disponíveis em: https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/repositorio/20/cartazes_eventos/008_ago_2017/07_08_CliqueAqui_Dialogando_Direito_Ser_mae_novo_endereco_3.pdf; e https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/repositorio/20/cartazes_eventos/05_maio_2017/30_05_Dialigando_sobre_ser_mae.pdf.

[7] Disponível em: https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/Repositorio/0/Documentos/Possibilidades%20de%20atuação%20CAM%20PA%20Maternidades.pdf.