Pandemia e desigualdade de gênero no âmbito familiar

JOTA.Info 2021-05-15

Embora a desigualdade de gênero seja questão recorrente na história, a atual pandemia e as medidas de isolamento social têm impactado significativamente os problemas sociais correlacionados. Desde os primórdios da humanidade, a sociedade caminhou no sentido de um modelo de família extremamente patriarcal.

Às mulheres, afora o âmbito doméstico, não se concedia participação política, social ou jurídica, sendo consideradas relativamente incapazes para os atos da vida civil, sob a égide original do Código Civil de 1916, situação que apenas começou a se alterar com o denominado Estatuto da Mulher Casada (Lei nº 4.121, de 27 de agosto de 1962).

Em época não muito distante, mulheres que queriam ingressar no mercado de trabalho, por exemplo, precisavam da autorização do marido para exercer qualquer profissão, já que o homem era considerado soberano e inquestionável. Esse cenário começou a mudar a partir da Revolução Francesa, com o engajamento das mulheres na luta por igualdade, fraternidade e liberdade ao lado dos homens.

A violência contra a mulher tem raízes muito profundas em toda a parte da história. Por esse motivo, a luta pelo reconhecimento da mulher como “pessoa com direitos” nunca foi fácil.[1]

No Brasil, o início dos anos 80 foi marcado pela forte reivindicação das mulheres por políticas públicas e intervenção do Estado na temática sobre a violência contra as mulheres.

Apesar das conquistas mínimas, mas de grande valor, desconstruir a ideia de que a mulher é desigual em relação ao homem não é tarefa fácil.

Atualmente, os movimentos feministas ganharam voz, mas a desigualdade ainda persiste no âmbito político, acadêmico e social, pois esses espaços públicos continuam dominados por homens, que são maioria em número de ocupação, especialmente nos cargos de gerência e direção.

Segundo dados do painel estatístico do Governo Federal, até o nível 3 de cargos de DAS (Direção e Assessoramento Superior) no governo federal, as mulheres representam 48% das ocupantes, ou seja, há uma disparidade de -4%. Já no nível 6 de DAS, o mais alto, as mulheres ocupam somente 17% dos cargos.[2]

Ou seja, a tendência é que a voz dos homens seja mais ouvida do que a voz das mulheres, já que essas são minoria nos cargos de liderança e de comando no setor público.

Outra desigualdade tão marcante e presente no âmbito familiar, especialmente durante os tempos de isolamento social, é a desigualdade no lar. Os registros dos casos de violência doméstica contra a mulher aumentaram em várias partes do mundo durante o período de isolamento social devido à pandemia da Covid-19.

Os primeiros registros sobre o aumento de denúncias de violência contra a mulher e de divórcios são da China, primeiro país a adotar o isolamento social, onde os números triplicaram.[3]

As pesquisas informam que, conforme as medidas de isolamento social foram chegando a outros países, os registros desse tipo de violência foram aumentando exponencialmente. Na França, houve um aumento de 32%.[4]

Já na África do Sul, as organizações que atuam na linha de frente contra a violência doméstica relataram uma “explosão de pedidos urgentes de alojamento feminino”, após o governo decretar o confinamento social.[5]

No Brasil, o cenário não foi diferente. O Rio de Janeiro registrou um aumento de 50% dos casos de violência doméstica logo na primeira semana após decretado o isolamento social.[6]

Em outros estados, a quarentena demonstrou uma queda de 65% das denúncias presenciais na Delegacia da Mulher, o que não significa redução dos casos, mas um alerta ao analisarmos os números sob a perspectiva dos registros de denúncias sobre homicídios e feminicídios.[7]

Infelizmente, esse aumento de casos de violência doméstica contra a mulher em época de pandemia não surpreende. Sabe-se que os registros aumentam principalmente no período noturno e nos finais de semana, ou seja, quando há maior permanência das mulheres na convivência com os agressores.

Portanto, o motivo mais óbvio do aumento de números de agressões contra a mulher parece ser o contato frequente do agressor com a mulher. No tocante aos motivos mais profundos, é fato que é necessário uma análise mais complexa, mas é difícil, ou até mesmo impossível, dissociá-lo daquela cultura familiar patriarcal que vigorou no Brasil por séculos cujas bases alicerçam muitas famílias brasileiras.

Outra forma de violência que também vem causando preocupação durante o isolamento social, é a violência psicológica. Apesar de alarmante, esse tipo de violência ainda é muito velado, pois os registros de denúncias são baixíssimos. Segundo pesquisas da Universidade Federal de Juiz de Fora, as mulheres estão extremamente sobrecarregadas durante a quarentena devido à desigualdade na distribuição das tarefas domésticas e educação com os filhos.

Esse tem sido um dos principais fatores de estresse das mulheres, que estão apresentando completo colapso mental. Segundo a professora Juliana Goulard: “temos um novo panorama de mulheres violentadas que antes não tínhamos (não que elas não fossem, mas muitas só agora percebem o cenário), mulheres que hoje relatam horas de choro pela demanda física e mental que estão carregando sozinhas”.[8]

É certo que a quarentena deixará sequelas para todos, mas deixará marcas profundas, especialmente, nas mulheres, já que a pandemia tem demonstrado a vulnerabilidade das mulheres em relação ao trabalho doméstico, às desigualdades sociais e à violência doméstica.

Se por um lado o isolamento social ajudou a conter o agravamento da Covid- 19, por outro, trouxe como consequência o grande aumento da violência doméstica contra as mulheres. Esses números fomentam uma reflexão sobre a desigualdade de gênero ainda tão presente no ambiente familiar, encobertada pela naturalização da cultura de domínio e autoridade do homem.

Para que se rompa com essa “cultura”, é necessário que haja debates e implementação de políticas públicas que somem esforços para a proteção das mulheres. O atual contexto de pandemia renova a urgência das pautas de enfretamento à violência doméstica contra a mulher mediante políticas públicas eficientes.

new RDStationForms('teste3-99b6e4ed7825b47581be', 'UA-53687336-1').createForm(); setTimeout(function(){ const btn = document.getElementById("rd-button-knf3ol7n") const check = document.getElementById("rd-checkbox_field-knj7ibbg") btn.disabled = true; btn.style.opacity = 0.7; check.addEventListener("click", function() { if (check.checked){ btn.disabled = false; btn.style.opacity = 1; } else { btn.disabled = true; btn.style.opacity = 0.7; } });}, 3000);


[1] Cf. ALVES, Roque Brito. Ciúme e crime, Crime e loucura. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2001.

[2] Painel Estatístico de pessoal. Ministério da Economia. Governo Federal. Disponível em: <painelpep.qvw (planejamento.gov.br)>. Acesso em: 6 de maio de 2021.

[3] VIOLÊNCIA contra a mulher aumentou durante a quarentena da Covid-19 na China. Disponível em: <https://agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/violencia-domestica/violencia-contra-a-mulher-aumentou-durante-quarentena-da-covid-19-na-china>. Acesso em: 1 de abril de 2021.

[4] FRANÇA colocará vítimas de violência doméstica em hotéis após salto em números de casos. Disponível em <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/03/30/franca-colocara-vitimas-de-violencia-domestica-em-hoteis-apos-salto-em-numeros-de-casos.ghtml>. Acesso em: 1 de abril de 2021.

[5] VIOLÊNCIA machista, a outra epidemia na África do Sul. Disponível em <https://www.uol.com.br/universa/noticias/afp/2020/04/29/violencia-machista-a-outra-epidemia-na-africa-do-sul.htm>. Acesso em: 1 de abril de 2021.

[6] MAZZI, C. Violência doméstica dispara na quarentena: como reconhecer, proteger e denunciar. Disponível em <https://oglobo.globo.com/sociedade/coronavirus-servico/violencia-domestica-dispara-na-quarentena-como-reconhecer-proteger-denunciar-24405355>. Acesso em: 2 de março de 2021.

[7] BATTISTELLA, C. Denúncias de violência doméstica caem 65% em SC e quarentena do coronavírus; polícia redobra atenção. Disponível em: <https://www.nsctotal.com.br/noticias/denuncias-de-violencia-domestica-caem-65-em-sc-em-quarentena-do-coronavirus-policia>. Acesso em: 2 de março de 2021.

[8] Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Desigualdade de gênero em tempos de pandemia e isolamento. Disponível em: <https://www2.ufjf.br/noticias/2020/04/06/desigualdade-de-genero- em-tempos-de-pandemia-e-isolamento/>. Acesso em: 2 de maio de 2021.