Fachin vota para que RJ elabore plano de redução da letalidade policial em 90 dias

JOTA.Info 2021-05-21

O ministro Luiz Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), votou para determinar ao estado do Rio de Janeiro que elabore, em no máximo 90 dias, um plano para a redução da letalidade policial e ao controle de violações de direitos humanos pelas forças de segurança fluminenses. O planejamento deve ter medidas objetivas, cronogramas específicos e a previsão dos recursos necessários para a implementação. 

Para o ministro, o atual estágio da política de segurança pública é uma ameaça para todos os brasileiros, incluindo aí também os policiais que não raro perdem as vidas em serviço. Assim ele começou respondendo, positivamente, ao pedido para que a Corte esclareça alguns pontos da decisão que suspendeu as operações policiais no Rio de Janeiro enquanto durar a pandemia e os seguintes para que houvesse a determinação para um plano de redução da letalidade policial.

De acordo com ele, é esse entendimento que orienta o voto de mais de 70 páginas na arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 635, apresentada pelo PSB e entidades da sociedade civil. A admissibilidade da ação fundamenta-se, portanto, na existência de um quadro de violações sistemáticas, de uma omissão estrutural que envolve a atuação dos Três Poderes e na necessidade de uma solução complexa.

“As falhas decorrentes dessas omissões custam vidas. Imputa-se ser a Polícia do Estado do Rio de Janeiro uma das mais violentas do mundo, seus policiais serem mal remunerados e, infelizmente, também estarem entre os que mais morrem em serviço. Esse estado de coisas nada tem de constitucional e demonstra à sociedade que não se criaram os incentivos necessários para o alinhamento da política de segurança pública com a Constituição Federal.”

Desta forma é que, para ele, é preciso que o tribunal mantenha-se atento às alterações das circunstâncias fáticas, assim como às dificuldades de cumprimento das ordens que foram inicialmente proferidas, a fim de ajustar o alcance de suas decisões ao objetivo da ação. Leia a íntegra do voto.

Fachin ressalta que, em estudo feito sobre os efeitos da decisão na ADPF 635, observou-se que a liminar do Supremo reduziu as mortes causadas por agentes de segurança pública em 34%, o que significaria ao menos 288 mortes evitadas em 2020. Ainda de acordo com os pesquisadores, foi a medida de preservação da vida contra a violência letal mais importante dos últimos 14 anos no estado do Rio de Janeiro. 

Além disso, a medida não representou aumento nos índices de criminalidade, segundo os levantamentos do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni-UFF). No mesmo ano, houve uma queda de 39% dos crimes contra o patrimônio e 24% dos crimes contra a vida. Mas, a partir do mês de outubro, o número de operações policiais aumentou significativamente, assim como o número de mortos em operações, a letalidade policial e os crimes contra a vida. 

Os dados, portanto, não justificam, segundo Fachin, os relatos de operações e descumprimento da decisão desde novembro de 2020 levados a ele pelos autores da ação. O ministro reproduz, no voto, vários casos para exemplificar a mudança de postura da polícia do Rio, desde a entrada de agentes no Morro dos Macacos, quando dois jovens negros foram mortos durante torneio de futebol da comunidade, até a chacina do Jacarezinho, quando 28 pessoas morreram, sendo um policial e 27 moradores. 

“Não há dúvidas que esses relatos devem ser minuciosamente apurados e confrontados com a ordem proferida pelo Tribunal. Eles ilustram, de modo trágico, o impacto da contínua realização de operações policiais, muito embora tenha o Tribunal assentado sua excepcionalidade.”

Tanto os autores da ação, quanto o próprio governo do Rio de Janeiro contestaram qual seria o conceito de excepcionalidade para o STF. Ao detalhar a expressão, com critérios a serem cumpridos, o ministro acrescenta: “É inconstitucional e atentatório ao Estado de Direito invocar um ‘estado de excepcionalidade geral’ ou mesmo uma ‘guerra contra o tráfico’ para justificar a inaplicabilidade dessas obrigações.”

De acordo com ele, “o uso retórico e, infelizmente, belicoso do discurso sobre segurança pública não interessa à cidadania nem se compatibiliza com a Constituição”. As frases e expressões foram usadas pelas autoridades de segurança pública do Rio de Janeiro em coletiva de imprensa depois da operação no Jacarezinho.

Inicialmente, na liminar referendada pelo plenário em sessão virtual concluída em 5 de agosto, o pedido para que a Corte determine a elaboração do plano de redução da letalidade policial foi entendido como precipitado. O relator havia enfatizado que havia omissão percebida, mas era necessário permitir que o Rio de Janeiro tomasse as medidas para atender à ordem da Corte Interamericana de Direitos Humanos nesse sentido, no caso Favela Nova Brasília. 

No julgamento da liminar, o ministro Gilmar Mendes abriu divergência sobre este ponto. De acordo com ele, o descumprimento da determinação da CIDH já era motivo suficiente para a necessidade de deferimento do pedido. 

Agora, Fachin reviu a posição anterior. “Isso porque a elaboração de um plano para a redução da letalidade policial é o próprio marco estatal de legalidade do desenvolvimento de ações que envolvam o emprego da força letal. A ausência de um plano impõe até mesmo dificuldades práticas para o provimento de medidas urgentes externadas por esta Corte. A urgência, portanto, recomenda não apenas a determinação de uma ordem específica e imediata, como também a determinação de medidas cautelares incidentais, a fim de garantir e preservar os direitos das pessoas”, disse. 

Voto

Além da exigência do plano, Fachin determinou que, até que o mais abrangente seja elaborado, o emprego e a fiscalização da legalidade do uso da força sejam feitos à luz dos Princípios Básicos sobre a Utilização da Força e de Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei, adotados pelo 8° Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinquentes (1999), com todos os desdobramentos daí derivados, em especial, em relação à excepcionalidade da realização de operações policiais. O voto tem 11 determinações. 

Ele também inclui proposta ao colegiado para que seja criado, no STF, um Observatório Judicial sobre Polícia Cidadã, formado por representantes do STF, pesquisadores e pesquisadoras, representantes das polícias e de entidades da sociedade civil, a serem designados pelo presidente da Corte, após aprovação dos integrantes pelo plenário.

Fachin pretende, ainda, reconhecer que só se justifica o uso da força letal por agentes de Estado em casos extremos, ou seja, quando exauridos todos os demais meios, inclusive os de armas não-letais, e for necessário para proteger a vida ou prevenir um dano sério, decorrente de uma ameaça concreta e iminente. “Em qualquer hipótese, colocar em risco ou mesmo atingir a vida de alguém somente será admissível se, após minudente investigação imparcial, feita pelo Ministério Público, concluir-se ter sido a ação necessária para proteger exclusivamente a vida — e nenhum outro bem — de uma ameaça iminente e concreta”, apontou.

As operações policiais para o cumprimento de ordens judiciais devem ser comunicadas e justificadas com antecedência, assim que concluído o planejamento da operação, sendo o tempo da comunicação também estimado na fase de planejamento. Nos casos de flagrante, a operação deve ser justificada assim que deflagrada.

Há, ainda, que se reconhecer, para o ministro, a necessidade de prioridade absoluta nas investigações de incidentes que tenham como vítimas crianças ou adolescentes.

Ele deferiu, também, o pedido para determinar que o cumprimento de mandado judicial de buscas domiciliares seja feito somente durante o dia, vedando-se, assim, o ingresso forçado a domicílios à noite; e estabeleceu critérios. Concordou com o pleito para que haja ambulâncias em operações policiais previamente planejadas em que haja a possibilidade de confrontos armados.

Outra determinação é para que o estado do Rio de Janeiro instale, em 180  dias, equipamentos de GPS e sistemas de gravação de áudio e vídeo nas viaturas policiais e nas fardas dos agentes de segurança, com o armazenamento digital dos arquivos. 

Além disso, determinou que o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), em 60 dias, avalie a eficiência e a eficácia da alteração promovida no GAESP do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, mantendo o STF informado acerca dos resultados da apuração. Por fim, que a investigação das alegações de descumprimento da decisão no sentido de se limitar a realização de operações policiais e de se preservar os vestígios em casos de confronto armado, inclusive no recente episódio na comunidade de Jacarezinho, seja feita pelo Ministério Público Federal.

Atuação judicial

Luiz Edson Fachin também tratou, no voto, de explicar as determinações propostas sob o aspecto de uma possível intervenção indevida da Corte em outros Poderes e esferas. 

De acordo com o relator, a intervenção do Poder Judiciário no caso é justificada pela ausência de protocolos claros de engajamento e de uso da força, medidas de caráter legislativo e executivo, que, de um lado, como aponta a Federação de Oficiais (FENEME) alimenta uma cadeia de ocultação de prova e de alteração de local de crime; e, de outro, amplia a permissividade dos policiais, delegando a eles uma autoridade que não possuem e que é passível de ser corrompida, isto é, a de decidir sobre o direito à vida das pessoas; pela ausência de protocolos para a preservação de áreas do crime, como destacaram as equipes de peritos que participaram da audiência; pelas dificuldades de implementação do controle externo, a cargo do Ministério Público, que esbarram não apenas na ausência de normas, como reconheceu o próprio Conselho Superior do Ministério Público, como também nas limitações dos órgãos de policiamento técnico-científico e, sobretudo, de atuação de primeira resposta.