ExCelso: As tensões entre STF e governo que acabaram em censura

JOTA.Info 2021-05-30

Há inúmeros momentos na história em que Supremo e Palácio do Planalto travaram disputas por meio de discursos e declarações de lado a lado. Não é de hoje, apenas, que ministros criticam aberta ou discretamente a condução da política pelo presidente da República. No passado, esses momentos eram mais episódicos, mas em determinadas circunstâncias tiveram efeitos mais graves do que algumas ameaças que são feitas hoje.

Em 1972, o presidente da Argentina, general Alejandro Lanusse, em visita ao Brasil, participou de sessão solene no Supremo. O presidente do tribunal era o ministro Aliomar Baleeiro, que havia apoiado o golpe militar de 64 e deixou o parlamento para ocupar a cadeira do STF quando a ditadura ampliou o número de ministros de 11 para 16. Mas, na presidência do tribunal, Baleeiro verbalizou críticas ao recrudescimento da ditadura.

Após discurso protocolar do ministro Bilac Pinto, em saudação ao presidente argentino, e depois de Lanusse também agradecer a recepção pelo STF, Baleeiro lançou algumas palavras. “No discurso que Vossa Excelência proferiu ontem à noite, no Itamaraty, deu uma prova de como a Argentina tem-se beneficiado desse movimento de ideias, dessa fecunda e contínua elaboração de pensamento”, disse Baleeiro.

Em seguida, leu trecho do discurso que, afirmou ele, “para nós juízes é particularmente significativo”. “O Direito é a única alternativa válida para regular a atividade entre indivíduos, comunidades e Estados”, relatou Baleeiro. E depois leu outro trecho do discurso que Lanusse fez na recepção que o presidente Médici lhe ofereceu. “Esse desenvolvimento, a Argentina interpreta não como um fim em si mesmo, mas como um instrumento em benefício do homem, de sua liberdade, sua dignidade e seu progresso”.

Lanusse, em resposta às palavras de Baleeiro, fez uma “pequena digressão informal”, como ele descreveu. “Se aqui falei como cidadão argentino, como soldado de minha pátria, como presidente da República, fi-lo também como indivíduo que se assentou no banco dos acusados por quatro anos e teve tempo de sobra para meditar e analisar o que é a Justiça, e o respeito que nos merece. Dessa experiência em vida é que tirei muitas conclusões, e uma delas é a da necessidade imprescindível do respeito à Justiça”.

As palavras, que aparentavam apenas afabilidades diplomáticas, não foram bem recebidas pelo governo, como lembrou, décadas depois, o ministro Francisco Rezek em entrevista ao projeto História Oral, da FGV: “Embora fosse ele [Lanusse] um chefe de Estado militar e autoritário, não diferente, sob a ótica dos rótulos, do nosso, ele havia dado, naquele discurso, certa prova de lucidez que impressionou Baleeiro. E este, já na resposta, disse que era reconfortante ver um chefe de Estado reconhecer certas coisas…”, lembrou Rezek.

“No fundo, o que Baleeiro quis dizer, e deve ter ficado claro, é que mesmo um chefe de Estado autoritário pode realizar, em público, esse ato de constrição consistente em reconhecer que ele está lá por forças de circunstâncias que ninguém deseja que se prolonguem nem que se repitam, e que ele tem ideia da importância da Justiça e de sua independência. É como se, em palavras cruas, Baleeiro dissesse: ‘O senhor é um ditador que não se orgulha de sê-lo e que encara isso com constrição; ao passo que o nosso é um ditador ufano’. E foi bem assim que o Palácio do Planalto recebeu o discurso de Baleeiro”.

Baleeiro, que já havia pronunciado outros discursos que não agradaram o governo, passou a ser, como lembrou Rezek, fustigado pelo Palácio do Planalto. Em 1972, seu nome foi alvo de censura imposta pelo governo à imprensa, como o próprio Baleeiro registrou nos seus diários. Em dezembro de 1972, o jornalista Carlos Chagas pediu uma audiência para uma entrevista para o jornal O Estado de S.Paulo, onde trabalhava na época. Na verdade, Chagas levou a notícia para Baleeiro.

“Trouxe-me a essa hora um telex em que a diretoria transmitia a íntegra da notificação da censura, vedando qualquer referência a meu nome ou fato, abrangendo qualquer assunto ‘passado, presente ou futuro’. Diz que, ontem, foram obrigados a retirar da página simples notícia com fato do encerramento dos trabalhos do STF, que será amanhã com estatística dos feitos julgados”.

Baleeiro só deixou a presidência do Supremo no ano seguinte. E se aposentou em 1975, aos 70 anos de idade.

*A coluna ExCelso é um espaço para lembrarmos e discutirmos a história do Supremo Tribunal Federal por meio de imagens, documentos, entrevistas, livros. A coluna é publicada semanalmente e traz em seu nome uma referência ao ex-ministro Celso de Mello, que atuou como a memória do tribunal durante seus anos como decano. Quem assistia às sessões se acostumou às suas referências que, não raro, iam até o Império e às Ordenações Filipinas, do século XVI.