STF abre caminho para práticas ESG em matéria tributária

JOTA.Info 2021-08-02

O Supremo Tribunal Federal (STF), por maioria de votos, declarou a inconstitucionalidade dos artigos 47 e 48 da Lei 11.196/2005, que vedavam a tomada de crédito de PIS e COFINS na compra de insumos para reciclagem. Isso aconteceu no julgamento do Recurso Extraordinário nº 607.109/PR, de relatoria da ministra Rosa Weber, objeto do Tema 304 da repercussão geral.

A decisão tem sido bastante festejada pelo setor e merece ser divulgada pela mídia e informada amplamente à sociedade. Muito embora esteja em crescimento[1], o setor da reciclagem, no Brasil, ainda é incipiente se comparado aos sistemas de outros países, por contar com tímido incentivo governamental, aprovação ainda recente da Política Nacional de Resíduos Sólidos (há pouco mais que uma década), sendo sua implementação paulatina, além de haver pouco conhecimento da população em geral sobre os benefícios socioambientais de uma economia circular.

Mas, no último dia 8 de junho, a Suprema Corte brasileira deu um passo importante para a implementação de políticas mais responsáveis, promovendo o incentivo econômico para práticas com claro impacto positivo socioambiental e até de governança, que integram o conceito ESG (EnvironmentalSocial and Governance).

Por meio da decisão judicial, o STF materializou o comando constitucional previsto no artigo 170, inciso VI, de que a ordem econômica deve observar a “defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração”.

A discussão travada no RE 607.109/PR

Originalmente, o PIS e a COFINS eram cobrados unicamente sob a sistemática cumulativa, às alíquotas de 0,65% e de 3%, respectivamente. Nesse regime, em cada etapa do ciclo econômico de um bem, verifica-se a incidência de tributo sobre tributo.

Como reação aos efeitos nocivos da incidência das contribuições sociais em cascata, foi criado o regime não cumulativo do PIS e da COFINS, que, apesar de instituir alíquotas mais elevadas, de 1,65% para o PIS e de 7,6% para a COFINS, permitiu a tomada de créditos sobre determinadas despesas.

A sistemática não cumulativa, embora não tenha sido estendida a todos os contribuintes, tem se mostrado um instrumento eficaz na redução da carga tributária para relevantes setores da economia nacional.

E foi justamente esse regime que esteve sob análise do STF. A Suprema Corte voltou sua atenção para dois dispositivos em especial: o artigo 47 e o artigo 48, ambos da Lei 11.196/2005. O artigo 47 vedava que a indústria se apropriasse de créditos de PIS e COFINS nas compras de desperdícios, resíduos ou aparas de plástico, papel ou cartão, vidro, ferro ou aço, cobre, níquel, alumínio, chumbo, zinco e estanho, entre outros metais.

O artigo 48 suspendia a incidência do PIS e da COFINS nas vendas desses mesmos produtos quando efetuadas à pessoa jurídica optante do lucro real, exceto se a venda fosse efetuada por empresa enquadrada no Simples.

Em termos práticos, os artigos 47 e 48 da Lei 11.196/2005 não cobravam o PIS e a COFINS dos vendedores de insumos recicláveis, repassando esse ônus para a fase seguinte da cadeia produtiva, isto é, para o comprador desses insumos. O ônus era repassado por meio de uma proibição à apropriação de créditos sobre despesas na aquisição de insumos.

A legislação partia do racional de que, se as vendas de materiais recicláveis não são tributadas, o comprador não poderia tomar crédito sobre esses insumos adquiridos. Entretanto, o que se nota é que os artigos 47 e 48 da Lei 11.196/2005, da forma como foram postos, geravam desincentivos para a incorporação de matéria-prima ecologicamente sustentável aos processos industriais, pois elevavam a sua carga tributária, causando prejuízos para os elos mais frágeis da cadeia econômica de produção.

Em seu voto-vista, o ministro Gilmar Mendes deu um exemplo bastante ilustrativo da distorção causada pela previsão contida nos citados dispositivos. Mencionou situação em que uma empresa que adquire insumos de cooperativas de catadores de material reciclado, sendo tal cooperativa isenta do pagamento de PIS e COFINS, nos termos do artigo 48, da Lei 11.196/2005. Nessa situação, a adquirente ficaria proibida de apurar e compensar créditos fiscais, em linha com o que dispõe o artigo 47, da mesma Lei.

Assim, no caso de uma venda hipotética de aparas de papel por R$ 100,00, o insumo ingressaria na fabricante livre de tributos, mas a operação subsequente seria onerada pela alíquota nominal de 9,25%.

Nesse exemplo, assumindo que o papel reciclado seria vendido ao consumidor final por R$ 200,00, a carga tributária total incidente sobre a cadeia de produção seria de R$ 18,50.

Agora, se a empresa compradora de matéria-prima optasse pela utilização de insumos extraídos da natureza, para fazer o seu primeiro beneficiamento, a lei não prevê isenção para cooperativas de manejo florestal, razão pela qual acabam contribuindo pela alíquota reduzida de 3,65%, no regime cumulativo. Nessa situação, o valor das contribuições sociais devidas pela fornecedora dos insumos seria de R$ 3,65. Posteriormente, na venda de papel reciclado ao consumidor final, a empresa pagaria PIS e COFINS à alíquota de 9,25% (R$ 200,00 x 9,25% = R$ 18,50).

Ou seja, o adquirente de matéria-prima, ao optar por comprar insumos extraídos do meio ambiente (não reciclados), teria direito ao abatimento de crédito fiscal, calculado pela aplicação da alíquota incidente em suas operações (9,25%) sobre o preço de aquisição dos insumos (9,25% x R$ 100,00 = R$ 9,25). Dessa forma, nesta situação hipotética, a carga tributária total seria de R$ 12,90 (R$ 3,65 + [R$18,50 – R$ 9,25]).

Do ponto de vista tributário, como bem notou o STF, era economicamente mais vantajoso comprar insumos da indústria extrativista do que adquirir matéria-prima de cooperativas de catadores de materiais recicláveis.

Os efeitos dessa política tributária são perversos, em razão da pressão ambiental e sob o ponto de vista social, considerando que as cooperativas de catadores – em situação mais vulnerável – são elo essencial dessa cadeia. Explicando melhor, diante da desvantagem fiscal apresentada, de duas situações possíveis, uma se verificaria: (i) as cooperativas seriam obrigadas a reduzir sua margem de lucro para compensar a elevação da carga tributária gerada pelo impedimento à compensação de créditos fiscais ou (ii) veriam seus materiais serem preteridos por outros insumos de primeiro uso.

Como bem demonstrou o ministro Gilmar Mendes em seu exemplo, quando submetidas a condições de mercado similares, “as empresas que adquirem matéria-prima reciclável não competem em pé de igualdade com as produtoras que utilizam insumos extraídos da natureza”. Por essa razão, a maioria dos ministros, acompanhando o voto do ministro Gilmar Mendes, reconheceu a violação ao princípio da isonomia (art. 150, II, CF) e a afronta causada ao meio ambiente, resguardados constitucionalmente pelos artigos 170, VI e 225.

Os direcionamentos apontados pelo STF

A economia global avança a passos largos em direção à adoção de práticas mais responsáveis tendentes à adoção de valores ESG, e é importante que o Governo brasileiro adote posturas que apoiem sistemicamente iniciativas sustentáveis. A situação analisada pelo STF no Recurso Extraordinário nº 607.109/PR é apenas mais um exemplo de como é necessária uma legislação tributária alinhada ao atual panorama econômico que impõe a incorporação de valores socioambientais nas cadeias de produção.

A legislação e as políticas governamentais precisam ser repensadas com urgência para que criem um ambiente regulatório favorável a práticas cada vez mais eficientes para solução de desafios com perspectiva social e ambiental.

Do julgamento firmado pela Suprema Corte fica nítida a necessidade de adoção das práticas ESG, por meio de duas mensagens bastante claras transmitidas ao Estado brasileiro: (i) ele está terminantemente proibido de prejudicar as empresas que, cientes de suas responsabilidades sociais, optem por contribuir com o Poder Público e com a coletividade na promoção de políticas de gerenciamento responsável de resíduos sólidos e, mais do que isso, (ii) não será tolerada uma postura governamental puramente contemplativa, sendo necessário o estímulo (inclusive tributário) do desenvolvimento do mercado, da produção e do consumo de produtos derivados de materiais reciclados e recicláveis,  com orientação à sustentabilidade.

O recado foi dado, já é hora de mudar, e para melhor.

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[1] Relatório preparado pela Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (ABRELPE) indica que a quantidade de resíduos sólidos urbanos gerados nacionalmente entre os anos de 2010 e 2019 aumentou, saindo de 67 milhões para 79 milhões de toneladas por ano. Paralelamente, a coleta desses materiais também aumentou de 59 milhões para 72,7 milhões de toneladas, no mesmo período. O estudo ainda indica que a destinação adequada desses resíduos vem aumentando, saindo de 56,8% em 2010, par 59,5% em 2019 (https://abrelpe.org.br/panorama-2020/, acessado em 15.7.2021).