ADC 49 e a não cumulatividade

JOTA.Info 2021-08-05

Como sabido, em maio deste ano, foi publicada decisão na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 49, em cujos termos restou assentado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) que O deslocamento de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular não configura fato gerador da incidência de ICMS, ainda que se trate de circulação interestadual.

Contudo, encontram-se pendentes de julgamento os embargos de declaração opostos pelo Governo do Estado do Rio Grande Norte (autor originário da mencionada ADC) com vistas à obtenção de esclarecimentos sobre o alcance do decisum então recorrido.

Em realidade, soa até mesmo curioso o fato de essa questão ainda estar sob fortes holofotes, haja vista o próprio Superior Tribunal de Justiça, a quem compete uniformizar a interpretação das leis federais brasileiras, já ter se pronunciado formalmente em 1996, por meio da edição do Enunciado da Súmula nº 166: “Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte”.

Porém, as questões que envolvem situações tributárias parecem gerar, de tempos em tempos, enigmas extremamente prejudiciais ao contribuinte e, então, o que parecia cristalino de repente passa a mostrar-se turvo..

Pois bem. Do pronunciamento do STF sobre o tema em debate (de relatoria do ministro Edson Fachin), adveio uma verdadeira confusão contábil-fiscal. Apesar da ratificação da tese de que não incide o ICMS no deslocamento de mercadorias entre seus próprios estabelecimentos, permanece a insegurança pois a legislação interna dos estados impõe o pagamento desse imposto.

Além disso, ao adquirir mercadorias de seus fornecedores, o contribuinte acaba acumulando créditos em sua apuração contábil, de forma que, ao enviá-las fisicamente para suas filiais, precisa igualmente efetivar a transferência dos créditos de ICMS aos estabelecimentos “recebedores” dessas mercadorias, caso contrário ele restará impedido de se utilizar da não-cumulatividade inerente a esse tributo estadual e constitucionalmente garantida por meio do art. 155, § 2º, inc. I, da CF/88.

O STF não solucionou integralmente referido “enigma jurídico” e, assim, precisa manifestar-se a respeito de alguns aspectos necessários à operacionalização de seu entendimento (dado que isso, com certeza, integra o mérito da relação jurídica submetida ao seu exame).

Em linhas gerais, o que por ora se deseja apontar é o fato de que deve ser plenamente assegurada ao contribuinte a manutenção da escrituração fiscal dos créditos de ICMS decorrentes das mercadorias que ingressam em seus estabelecimentos advindas de alguma outra unidade de mesma titularidade, justamente em atenção ao princípio constitucional da não-cumulatividade.

Aliás, é a supremacia da Constituição que permite a efetividade da máxima “o que vale é a interpretação da lei conforme a Constituição e não o contrário”, consoante expressamente afirmado pelo ministro relator do tema, Edson Fachin.

Nos pormenores da tese, restou assentado que o deslocamento de mercadorias deve ser considerado apenas uma “movimentação interna” da empresa, o que justifica, por conseguinte, a inexistência de operação comercial de saída apta a ensejar a cobrança do ICMS ou até mesmo a necessidade de eventual estorno.

Ora, a Constituição Federal dispõe que cabe à lei complementar o ditame de normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente no que toca a fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes, dos impostos nela discriminados. Já a Lei Kandir, como restou nacionalmente conhecida a Lei Complementar nº 87/96, estabelece que o ICMS incide sobre operações relativas à circulação de mercadorias (i.e. operações com intuito comercial).

Logo, se o deslocamento de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular configura-se tão somente como mudança física de local (conforme adequadamente manifestou-se o STF, quando do assentamento da tese, no julgamento da ADC 49), referida atividade jamais pode ser enquadrada como uma “operação” de intuito comercial, bastando, para tanto, apenas verificarmos jurídica e etimologicamente o vocábulo “operação”: ato de propósito mercantil de comercialização de mercadorias. Sendo assim, não há concretização do aspecto material do fato gerador do tributo, o que impede, de plano, qualquer tentativa de cobrança por parte do fisco.

Um grande desconforto, porém, não foi sanado pelo julgamento da ADC mencionada e causará enorme impacto financeiro aos contribuintes: o direito aos créditos, para fins de efetivação da sistemática não-cumulativa do tributo.

Alega o Fisco que eventual não incidência do ICMS na saída acarreta automaticamente a necessidade de estorno dos créditos decorrentes da entrada da mercadoria. O argumento utilizado é a previsão constitucional disposta no artigo 155, § 2º, II, “b”, da Constituição Federal, a qual dispõe que, no caso de isenção ou não incidência, haverá a anulação dos créditos anteriores à operação.

No entanto, a mudança física de local da mercadoria não justifica a anulação do crédito decorrente de sua aquisição. Em termos mais didáticos, vejamos a cronologia abaixo:

(I) a pessoa jurídica adquire a mercadoria e, com isso, passa a ter pleno direito ao crédito de ICMS decorrente dessa entrada;

(II) após, ela simplesmente remete essa mercadoria para outra unidade de sua mesma titularidade (literal mudança física de localidade, ou seja, sem circulação jurídica), acompanhada de uma nota fiscal de transferência;

(III) não há como incidir o ICMS nesses deslocamentos, especialmente porque o próprio Supremo Tribunal Federal ratificou tal entendimento, inclusive sob o fundamento de que, nesses casos, não há operação com intuito comercial;

(IV) se não há operação anterior, não há se falar em aplicabilidade do disposto no artigo 155, § 2º, II, “b”, da Constituição Federal, até mesmo por uma questão de lógica.

Aliás, sequer poder-se-ia falar em isenção ou não incidência, uma vez que a situação é de INEXISTÊNCIA da operação de deslocamento de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular para fins de ICMS. Esse contexto fático-jurídico não autoriza anular o crédito válido da operação imediatamente anterior, nos termos do art. 155, § 2º, inc. XII, alínea “f”, da CF/88 e dos arts. 19 e 20 da Lei Complementar 87/96.

Enquanto não houver definição em relação ao crédito, os contribuintes terão que se socorrer de novas medidas judiciais, tanto para afastar a cobrança do ICMS nas operações interestaduais de deslocamentos de mercadorias entre estabelecimentos da mesma titularidade; quanto para manter os créditos decorrentes da não cumulatividade.

Em relação ao primeiro ponto, a necessidade de ação judicial decorre de conflito entre as leis estaduais que exigem o pagamento de ICMS – seja do diferencial de alíquotas ou do próprio imposto no regime de antecipação ou substituição tributária – quando do ingresso de mercadorias de outros estados.

Tais práticas estão em contrariedade ao que foi decidido na ADC 49: “o mero deslocamento entre estabelecimentos do mesmo titular, na mesma unidade federada ou em unidades diferentes, não é fato gerador de ICMS”. A decisão do Plenário é clara, abrange todos os tipos de mercadorias (ativo imobilizado, uso e consumo e etc.) e todas as sistemáticas de arrecadação do imposto.

O segundo ponto diz respeito à manutenção dos créditos de ICMS. A conclusão da ADC 49 não afasta o direito ao crédito da operação anterior, como já decidiu o STF no RE 1141756, em repercussão geral, verbis:

“ICMS – CREDITAMENTO – EMPRESA PRESTADORA DE SERVIÇOS DE TELEFONIA MÓVEL – APARELHO CELULAR – CESSÃO EM COMODATO – POSSIBILIDADE. Observadas as balizas da Lei Complementar nº 87/1996, é constitucional o creditamento de Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias – ICMS cobrado na entrada, por prestadora de serviço de telefonia móvel, considerado aparelho celular posteriormente cedido, mediante comodato.” (STF, RE 1.141.756, Tribunal Pleno, relator Marco Aurelio, j. 28.09.2020, DJ 10.11.2020)

O mesmo raciocínio se aplica ao caso concreto: a não incidência de ICMS na transferência entre estabelecimentos do mesmo titular permite a manutenção do crédito do imposto.

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo decidiu nesse sentido ao julgar a apelação cível 1030337-92.2020.8.26.0053, cujo trecho segue transcrito:

“É certo, contudo, que, no caso concreto, a transferência das mercadorias entre os estabelecimentos da própria empresa autora é etapa intermediária e não caracteriza operação de circulação jurídica de mercadorias, mas sim sua mera circulação física, de modo que se caracteriza como operação que não gera incidência de ICMS.

Se o imposto incidiu na operação anterior, deve ser autorizado o creditamento na etapa subsequente.

Assim, impõe-se o reconhecimento do direito da empresa autora de manter em sua escrita fiscal os créditos relativos às entradas, nos seus estabelecimentos paulistas, dos bens que são objeto de transferências internas e interestaduais subsequentes, em respeito ao artigo 155, § 2º, incisos I e II, da Constituição Federal/1988.” (TJSP, apelação 1030337-92.2020.8.26.0053, relatora Fora Maria Nesi Tossi Silva, j. 29.03.2021)

Por fim, espera-se que a discussão sobre a manutenção dos créditos decorrentes da não-cumulatividade seja concluída no julgamento dos embargos de declaração opostos no bojo da ADC 49, em coerência com o entendimento já fixado pelo STF no RE 1.141.756.


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