O Direito ao aborto nos EUA vai acabar?
JOTA.Info 2021-09-06
No dia 22 de janeiro de 1973, a Suprema Corte julgou o caso “Roe v. Wade”, descriminalizando o aborto nos Estados Unidos sob os princípios constitucionais da privacidade e do devido processo legal substancial, mas poucos americanos o perceberam. Não havia, então, manifestantes ruidosos “pro-life” e “pro-choice” defronte ao prédio do tribunal em Washington, inclusive porque esses grupos de militantes sequer existiam, e muito menos aqueles lemas que viriam a designá-los. Roe v. Wade era apenas um caso obscuro do Texas, acompanhado essencialmente por professores de direito constitucional, em que se apreciava o litígio ajuizado por uma parte sob sigilo (“Roe”), que pedida autorização para abortar sem ser processada criminalmente pela promotoria (chefiada por Wade). O caso ficava ainda mais estranho ao público leigo quando se sabia que, em razão do decurso do tempo, a requerente já havia tido o filho (o prosseguimento da ação se dava porque a ação fora considerada como um litígio com repercussão em outros casos).
Na manhã seguinte ao julgamento da Suprema Corte, os jornais influentes o noticiaram discretamente, em poucas linhas, pois no mesmo dia da decisão ocorrera um outro fato de muito maior repercussão: a morte do ex-presidente Lyndon Johnson, que sucedera John Kennedy depois de seu assassinato, e governara o país de 1963 a 1970, antes de Nixon, que então se encontrava na Casa Branca. Devido ao seu grande impacto, a notícia vinha em letras garrafais. As emissoras de TV só falavam disso e nenhuma delas tratou do caso do aborto na Suprema Corte.
A interrupção da gravidez não era uma questão politicamente contenciosa nos EUA antes de Roe v. Wade. O Partido Republicano, autoproclamado guardião do liberalismo político e econômico, oficialmente sustentava uma posição pró-aborto, por entender (de forma coerente, diga-se) que leis que criminalizavam a prática representavam uma intromissão indevida do estado na liberdade individual.
O tema estava fora do debate nacional, pois a grande maioria dos Estados mantinham a mesma política de criminalização do ato, com maior ou menor rigor. Na segunda metade dos anos 1960, apenas Alaska, Hawaii, Nova Iorque e Califórnia haviam adotado legislações mais liberais, que permitiam o aborto “terapêutico”, quando houvesse dano físico ou psicológico à mulher, situação em que esta não precisaria “ustificar sua opção. A exceção era tão elástica que, na prática, isso equivalia a descriminalizar a conduta. Curiosamente, no caso da Califórnia, o governador que sancionou a lei foi o republicano Ronaldo Reagan.
A decisão proferida em Roe v. Wade começou pouco a pouco a ser debatida e divulgada pela mídia nas semanas seguintes, quando os cristão conservadores passaram a se dizer chocados com seu alcance, já que ela permitiria o aborto até o sexto mês de gestão e, inclusive, para além desse limite quando houvesse risco para a saúde da mãe. O Partido Republicano, percebendo o quanto a controvérsia galvanizava o seu eleitorado tradicional, e precisando se recuperar da debacle de Richard Nixon, mudou sua orientação na convenção nacional do partido em 1976. O Partido Democrata, por sua vez, que tinha em suas fileiras ativistas da “segunda onda” do feminismo, acabou encampando os militantes “pro-choice”, apesar da recalcitrância do religioso Jimmy Carter, em cujo governo foi aprovada a primeira lei congressual sobre aborto, a Hyde Act, que proibia o governo federal de usar o orçamento para financiar abortos no sistema de saúde, exceto nos casos de estupro, incesto e ameaça para a vida da mãe.
Foi a decisão da Suprema Corte em Roe v. Wade, portanto, que provocou a polarização política em torno do aborto. Além de suscitar debates no Congresso Nacional, os Estados de eleitorado mais conservador passaram a reagir àquele julgamento, editando leis locais que criavam enormes dificuldades para mulheres interessadas na interrupção da gravidez e também para as clínicas que lhes prestavam serviços. Isso era aparentemente possível porque no caso Roe permitiu-se que os Estados regulassem a prática quando ela ocorresse no segundo trimestre, período em que a intervenção trazia mais riscos à saúde da mulher. Na realidade, alguns Estados criavam exigências tão absurdas que inviabilizavam a possibilidade do aborto após o primeiro trimestre.
Assim, nas décadas que seguiram a Roe, inúmeros outros casos chegaram à Suprema Corte, questionando aquelas leis estaduais que, no entender de muitos, restringiam a incidência do precedente Roe e violavam o direito das mulheres sobre o seu corpo. Em Planned Parenthood v. Casey (1992), a Suprema Corte fixou o critério de “undue burden” (ônus excessivo), para fulminar a maioria das leis estaduais que exigiam autorização do marido em relação a mulheres casadas. Esse standard passaria a ser aplicado caso a caso, em diversas ocasiões, culminando com o julgamento June Medical Services, LLC v. Russo, de 2020, em que se entendeu que exigências exageradas para as clínicas de aborto também constituíam um obstáculo substancial ao direito afirmado em Roe.
Percebendo que as portas da Suprema Corte se fecham cada vez mais para as leis estaduais que criam ônus excessivo às mulheres que querem interromper a gravidez ou às clínicas que as oferecem o serviço, o conservador Estado do Texas inovou, retirando a questão da alçada criminal e fixando uma “responsabilidade civil” de quem “ajuda ou apoia” a interrupção da gravidez depois da sexta semana de gestação (quando muitas mulheres ainda sequer perceberam que estão grávidas). A lei estadual permite que qualquer cidadão “proteja” o embrião ou feto, podendo ajuizar uma ação civil na qual é possível pedir uma ordem mandamental para que o médico ou a clínica se abstenham da prática ou, caso ela tenha ocorrido, sejam condenados em dez mil dólares por violar a lei, sendo a indenização revertida ao autor da ação.
Do ponto de vista jurídico, a lei é bastante aberrante, pois trata o embrião ou feto como objeto de um estranho “interesse difuso”, atribuindo uma “legitimação extraordinária” para a ação de particulares em favor de um suposto interesse público em evitar abortos assegurados pela jurisprudência constitucional e federal, incentivando sua ação pela possibilidade de auferirem vultosa indenização.
Os legisladores do Texas desenharam a lei de forma bastante capciosa, para evitar que autoridades públicas se envolvessem no enforcement da lei.
Isso porque a Suprema Corte, em matéria de direitos fundamentais, só conhece de casos quando está em questão uma exação de autoridade pública (state action doctrine). Ou seja, não se reconhece, no direito constitucional americano, a doutrina da eficácia horizontal dos direitos fundamentais. A lei foi concebida, de forma evidente, com a clara finalidade de contornar a jurisdição constitucional da Suprema Corte.
Mas nem todos pensam que isso seja assim simples, já que parece bem razoável argumentar que os particulares que ajuizarem ações civis com o propósito de garantir a aplicação de uma lei de interesse público estariam agindo sob o manto de um interesse protegido pelo Estado do Texas, atuando numa forma de múnus público (semelhante ao que ocorre, no Brasil, com os autores de ações populares). Há, inclusive, precedente da Suprema Corte nessa linha (West v. Atkins, de 1988).
Foi justamente seguindo essa tese que uma clínica de aborto do Texas ajuizou uma ação cautelar na Justiça Federal pedindo a não aplicação da norma, argumentando que a lei inviabilizaria por completo sua atividade. O processo estava seguindo seu curso, sem nenhuma decisão, quando a Corte Federal de Apelações com jurisdição sobre o Texas sustou todos os atos processuais, decisão contra a qual houve um pedido de “stay” diretamente perante a Suprema Corte (ou seja, uma tutela de urgência para reverter provisoriamente a decisão da Justiça Federal que paralisara a ação em primeira instância).
Por cinco votos a quatro, em um único parágrafo, pouco fundamentado, a maioria do colegiado negou o pedido dos requerentes que representavam a clínica, argumentando que, em razão de questões processuais, não seria possível ainda o exame do caso naquela instância, ressaltando de forma expressa que essa decisão provisória não importava em manifestação quanto ao mérito da constitucionalidade da lei estadual do Texas. Os cinco juízes que assim decidiram são tidos como integrantes do bloco conservador da Suprema Corte, sendo três deles indicados por Donald Trump. O presidente John Roberts, tido como integrante deste mesmo bloco, ficou com a minoria, perfilando-se aos liberais.
Chamou a atenção do público americano a veemência dos votos vencidos, os quais, ao contrário do voto da maioria, estão mais bem fundamentados e denunciam de forma muito incisiva que o Estado do Texas está pura e simplesmente afrontando de maneira desabrida e indisfarçada o precedente Roe. Veja-se esse trecho da manifestação da Juíza Sonia Sotomayor: “A decisão da corte é chocante. Solicitada a manifestar-se sobre uma lei flagrantemente inconstitucional concebida para proibir as mulheres de exercerem os seus direitos constitucionais e para evadir-se de controle judicial, a maioria dos Juízes optou por enterrar suas cabeças na areia. Na última noite a Corte aquiesceu silenciosamente com uma lei estadual que escarnece de precedentes da jurisprudência federal estabelecidos nos últimos cinquenta anos. Hoje, a Corte explica que declinou em garantir uma ordem razão de complexidades processuais que foram inventadas pelo próprio Estado (do Texas). Pelo fato de que o fracasso da Corte em agir recompensa táticas engendradas com a finalidade de evitar o controle de constitucionalidade e inflige prejuízo significativo aos requerentes e às mulheres que buscam o aborto no Texas, eu divirjo.”
A Juíza Elena Kagan, também do bloco liberal, também pintou sua divergência em cores quentes, criticando, inclusive, a forma de deliberação da maioria, que ocorreu naquilo que tem sido chamado de “shadow docket”, isto é, processos com tutelas de urgência, com decisões sem fundamentação adequada e sem debate consistente entre os juízes, muitas vezes em questões politicamente sensíveis: “Essa julgamento ilustra o quão afastadas as decisões podem estar dos princípios processuais que habitualmente governam os recursos. Essa decisão, como todos devem concordar, possui grande consequência. (…) Ela pouco se importa em explicar sua conclusão – que um desafio a uma norma obviamente inconstitucional a respeito do aborto por um esquema de aplicação da lei completamente sem precedentes tem pouca probabilidade de prosperar. Sob todos esses aspectos, a decisão da maioria é emblemática dos excessos do processo decisório do “shadow docket”, o qual a cada dia se torna mais desarrazoado, incompatível e impossível de defender. Eu respeitosamente divirjo.”
As manifestações nestes votos, com uma estridência poucas vezes vista na Suprema Corte, mostram como há uma percepção interna crescente da minoria liberal de que o equilíbrio em torno do caso Roe v. Wade, delicadamente construído nas últimas cinco décadas de jurisprudência, pode estar perto do ponto de rompimento, especialmente em razão da drástica alteração na composição da corte durante o mandato de Trump. Além do caso da lei estadual do Texas, que certamente voltará à Suprema Corte quando o processo avançar nas instâncias inferiores, haverá ainda mais emoção em torno do tema neste ano judiciário, em caso relativo a uma lei estadual do Mississipi, que também reduziu drasticamente o prazo para a prática de um aborto legal.
new RDStationForms('sdr-inbound-form-artigos-impacto-nas-instituicoes-8c5227dd4ede3347a6c6', 'UA-53687336-1').createForm();