Justiça e movimentos anticorrupção

JOTA.Info 2021-09-17

Os custos para o regime democrático do ativismo político e judicial em torno do “combate a corrupção” têm sido bastante debatidos nos últimos anos. Longe de se esgotar em uma dinâmica conjuntural datada, os diferentes estudos sobre o tema mostram a profunda inserção dos movimentos anticorrupção com a dinâmica do jogo político.

No caso brasileiro revelam, também, as novas facetas das instituições judiciais e dos órgãos de controle público. Do impeachment de presidentes da República aos escândalos do Mensalão e da Operação Lava Jato; o discurso “anticorrupção” se constitui como um potencializador da politização da justiça no Brasil em diferentes sentidos.

Se observarmos somente as últimas três décadas, a disseminação dessa retórica transpôs conjunturas e contribuiu para a emergência de políticos que surfaram a onda da denúncia das práticas políticas.

No campo da justiça, as operações de “combate a corrupção” reforçaram o protagonismo de juristas que reivindicam a “força do direito” para a “moralização da política”. Essa dinâmica posicionou as instituições judiciais no centro de crises cíclicas, onde a persecução penal marcou – na forma da lei – a “corrupção endêmica” do sistema representativo.

A sucessão de “escândalos políticos” derrubou ministros, circundou o processo de impeachment de 2016 e mobilizou grupos sociais em torno de novas versões do conservadorismo recorrente na história política brasileira. Essa dinâmica apresentou, também, novas relações entre justiça e poder político.

Visando contribuir para uma compreensão mais estruturada dessas reconfigurações e suas diversas dimensões organizamos a coletânea Justiça e Poder Político: elites jurídicas, internacionalização e movimentos anticorrupção[1],  disponível para ser baixada livremente.

A obra traz textos resultantes de dissertações de Mestrado, teses de Doutorado e pesquisas recentes desenvolvidas no âmbito do Núcleo de Estudos em Justiça e Poder Político (NEJUP) vinculado ao Programa de Pós-Graduação de Ciência Política e ao Centro Internacional de Estudos sobre Governo (CEGOV) da UFRGS tendo por centro os movimentos anticorrupção.

O livro conta, também, com a participação de pesquisadores ligados a outras instituições que vem desenvolvendo trabalhos conexos à temática das relações entre as instituições do sistema de justiça e o espaço político tendo por eixo movimentos anticorrupção.

Os resultados apresentados foram desenvolvidos em pesquisas que se debruçaram sobre as relações estabelecidas no campo jurídico com os movimentos anticorrupção e como esses movimentos contribuíram para amplificar ganhos corporativos e políticos das elites jurídicas.

Dividido em duas seções e catorze capítulos, o livro, na primeira parte, aborda mais especificamente o “combate à corrupção” no Brasil e, em outros países, com dados e levantamento da bibliografia sobre o tema.

Na segunda parte são apresentados resultados de pesquisas mais amplas que relacionam a formação e as transformações nas carreiras jurídicas, bem como, as recomposições das relações entre o espaço jurídico e político incluindo duas pesquisas inéditas sobre Moçambique e Cabo Verde.

Se a “corrupção”, como fenômeno estrutural, é objeto de estudo próprio em diversas áreas, os dois primeiros capítulos do livro tentam extraí-la de sua concepção mais normativa.

O objetivo é compreendê-la sob o aspecto dos sentidos que as operações e os programas anticorrupção mobilizam e os ganhos que propiciam a mediadores do “combate a corrupção” no espaço do poder nacional[2]. Nesse ponto são discutidos os desafios do desenvolvimento de uma agenda de pesquisa em torno dos “usos políticos” e corporativos da anticorrupção.

Um dos casos mais famosos, a “Operação Mãos Limpas” é abordado no trabalho seminal do cientista político francês Jean-Louis Briquet, As condições de sucesso para uma cruzada moral: luta anticorrupção e conflitos políticos na Itália dos anos 1990 mostrando sua complexa imbricação com os rearranjos e conflitos entre grupos políticos na Itália  na década de 90.

Nessa linha, os capítulos seguintes captam outra dimensão central da “luta anticorrupção”: sua difusão no cenário internacional dos organismos multilaterais, think tanks e ONGs e os mecanismos de conexão mobilizados para assimilação no campo jurídico brasileiro.

Na perspectiva de consolidar categorias de análise resultantes de outras pesquisas produzidas[3] é explorada a análise do processo de internacionalização da Advocacia-Geral da União em torno da temática da corrupção. A análise inclui desde os mecanismos de cooperação e as estratégias corporativas encampadas pelos advogados públicos federais no espaço nacional. O capítulo subsequente problematiza a relação entre o Ministério Público Federal e os usos das colaborações premiadas no âmbito da Lava Jato tendo por base operações desenvolvidas no Rio de Janeiro.

Na sequência, dois textos retomam o debate mais amplo dos sentidos morais presentes no “combate à corrupção”. De um lado, discute-se a questão da corrupção no interior do Poder Judiciário brasileiro e suas implicações no marco histórico-político em que se insere o papel disciplinar desempenhado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

De outro, apresenta-se uma recuperação histórica das análises críticas da política no Brasil e sua correlação com o controle da corrupção realizado pelos próprios juízes mostrando as bases culturais que contribuem para a emergência do espaço judicial como “moralizador” das práticas políticas através do formalismo jurídico.

Na segunda seção, o livro retoma temáticas centrais para compreender as recomposições dos campos jurídicos e político em escala mais ampla. São explorados os destinos internacionais de docentes formados no exterior, os novos padrões de formação fomentados no modelo das escolas corporativas (com foco no caso do Ministério Público) e o desenvolvimento do pro bono em escritórios empresariais de advocacia de São Paulo.

Com autorias de um pesquisador moçambicano e de uma pesquisadora cabo-verdiana, dois capítulos exploram, também, as conexões entre as elites jurídicas e a política nesses dois países. A perspectiva comparativa permite evidenciar variações assumidas na centralidade das elites jurídicas na construção dos modelos de Estado.

Os dois capítulos finais abordam temas relacionados a questões políticas mais conjunturais tendo por foco os conflitos políticos e jurídicos em torno da reforma trabalhista de 2017 e a dimensão internacional das apostas políticas neoliberais em movimentos que emergiram nos últimos cinco anos.

Apesar dos avanços analíticos em torno dos usos políticos dos movimentos anticorrupção em diferentes países, o tema ainda tem muitos aspectos a serem desvelados e deixa sempre o desafio de transpor as oposições conjunturais e seguir os jogos ocultos que circundam essa dinâmica.


[1] A coletânea traz capítulos de autoria de  Fabiano Engelmann, Lucas Batista Pilau, Jean Louis-Brtiquet, Eduardo de Moura Menuzzi,  Moisés Lazzaretti Vieira, Vera Ribeiro Almeida Faria, Juliane Sant’Ana Bento, Vinicius Wonrath, Luciana Rodrigues Penna, Fabio de Sá Silva, Maria Filomena Semedo, Bernardo Sicoche, Bruna Stephanie Miranda do Santos e Caroline Scherer.

[2] Para uma aproximação com a perspectiva que posiciona os atores no centro da análise, .Engelmann, F., & Fontainha, F. (2019). Apresentação: Limites e possibilidades de uma sociologia política do campo jurídico. Plural, 26(2), 1-8

[3] Nesse ponto, ver. Engelmann, F.; Menuzzi, E. The Internationalization of the Brazilian Public Prosecutor’s Office: Anti-Corruption and Corporate Investments in the 2000s. Brazilian Political Science Review, v. 14, p. 1-35, 2020a; Menuzzi, E. M.; Engelmann, F. Elites jurídicas e relações internacionais: Wilson Center e agenda anticorrupção do Judiciário brasileiro. Conjuntura Austral, Porto Alegre, v. 11, n. 54, 105–122, 2020b.