Nair de Teffé: patrona da diplomacia cultural e precursora da Semana de 22
JOTA.Info 2022-02-11
“Nunca pensamos que aquela reunião que abriu os salões da sociedade para a música popular brasileira, fosse, na época, tão criticada de maneira depreciativa. Hoje graças à Chiquinha Gonzaga e ao ‘Corta-Jaca’, os sambas, as serestas e o maxixe, é a glória, é a glória!”
Nair de Teffé, em 1974
Este ano do bicentenário da nossa Independência é singularmente repleto de efemérides. Na próxima semana comemoramos o centenário da Semana de Arte Moderna, ocorrida entre 13 e 17 de fevereiro de 1922. A Semana de 22 foi um momento de afirmação e tomada de consciência das manifestações de uma cultura tipicamente brasileira. O evento foi um divisor de águas, a partir do qual as artes brasileiras se articularam, primeiro para si mesmas, e a partir daí para o mundo, em um movimento que hoje se consolida na maior força do Brasil no cenário internacional.
A Semana de 1922 foi um momento de explosão de energia criativa original, que abriu o caminho para que, ao longo do último século, a diplomacia cultural brasileira se afirmasse como uma das mais belas e sofisticadas do mundo. Nas artes visuais, na literatura, na música, no esporte, em todas as áreas, enfim, o Brasil exerce uma influência benéfica e pacificadora ao redor do mundo. Em termos técnicos, somos os mestres do soft power, do poder brando, da capacidade de influenciar os acontecimentos globais pela ação do nosso exemplo e dos nossos valores.
O embaixador Edgar Telles Ribeiro, em obra pioneira sobre o assunto, define a diplomacia cultural como “a utilização específica da relação cultural para a consecução de objetivos nacionais de natureza não somente cultural, mas também política, comercial ou econômica” [1]. Repare, cara leitora, que o embaixador Telles Ribeiro ressalta em sua obra as relações entre a diplomacia cultural e a manutenção da paz, lembrando que o intercâmbio cultural é o melhor instrumento para a construção de uma atmosfera favorável ao entendimento, à compreensão mútua, “que reforça sentimentos pacíficos pela própria ideia de universalidade do patrimônio cultural e artístico” [2].
A Semana de 22, contudo, foi o ápice explosivo de um longo e tortuoso processo de afirmação da cultura brasileira, que contava com enormes e poderosas resistências. A realização da exposição somente foi possível graças a um evento histórico precursor ocorrido cerca de oito anos antes: a “Noite do Gaúcho”, ou do “Corta-Jaca”, em 16 de outubro de 1914, quando, pela primeira vez, a música brasileira fora apresentada para o mundo, em ato de extrema coragem de Nair de Teffé (1866-1981).
O episódio histórico da “Noite do Gaúcho” se insere no contexto da longa luta do grupo “pinheirista” do Partido Republicano Conservador (PRC) e, dentro deste, especialmente do Partido Republicano do Rio Grande do Sul (PRR), pela afirmação da cultura brasileira e pela proteção física dos artistas da época, que eram rejeitados e perseguidos pelas autoridades. O termo “pinheirista”, cara leitora, refere-se aos correligionários do tio-trisavô do autor destas mal-traçadas, o senador gaúcho José Gomes Pinheiro Machado (1851-1915), chamado por Raymundo Faoro de “o Condestável da República” [3], dada a sua enorme influência como árbitro último da política nacional durante um quarto de século.
O senador Pinheiro Machado representava um tipo de estadista que, apesar de “quatrocentão” – descendia ele diretamente de Martim Afonso de Souza —, estava inteiramente comprometido com o desenvolvimento e a valorização do povo brasileiro real, que ele conhecia como ninguém. Herói da Guerra do Paraguai (1864-1870), para a qual ele fugira do Colégio Militar para se alistar, incógnito, no Batalhão dos Voluntários da Pátria, Pinheiro Machado foi também o maior tropeiro do Brasil, transportando regularmente, ele mesmo, tropas de gado de São Luiz Gonzaga, no Rio Grande do Sul, para Sorocaba, em São Paulo, o que lhe colocava em contato direto com a nossa gente mais humilde. Era um tipo de “red tory”, na linha de um Churchill, de um Clemenceau.
O seu comprometimento com a cultura brasileira era tamanho que ele é mesmo considerado o Patrono do Samba. Em sua residência no Rio de Janeiro, o famoso Morro da Graça, na atual rua Pinheiro Machado, o senador, em ato de extrema rebeldia e coragem, oferecia saraus de música brasileira aos seus convidados, e por isso sofria pesadas críticas de seus adversários na imprensa e até na tribuna do Senado, já que, na época, a música brasileira não era aceita pela elite, que a considerava coisa de gente de vida desregrada.
Certa vez, Pinheiro Machado notara que o grande João da Baiana, um dos pais do samba, havia faltado a um sarau no Morro da Graça, porque a polícia havia apreendido o seu pandeiro. O senador, então, mandou confeccionar um novo pandeiro para João da Baiana, no qual marcou uma dedicatória: “A minha admiração, João da Baiana – senador Pinheiro Machado” [4]. João da Baiana nunca mais foi importunado pela polícia, e o samba pode se desenvolver livre de repressões.
Em sua homenagem, também, foi composta a marchinha de sucesso do Carnaval de 1909: “No bico da chaleira”, que fazia sátira com o cordão de puxas-sacos do senador, dando origem ao verbo “chaleirar”. Darcy Ribeiro explica que “a expressão vem de Pinheiro Machado, que tinha sempre uma chaleira fervendo para o chimarrão e, quando pretendia colocar água na cuia, os presentes corriam pressurosos para pegar e servir” [5]. Muitos se queimavam pegando no bico da chaleira. O senador não gostava de sacripantas.
Pinheiro Machado foi também um pioneiro na defesa das artes e da emancipação feminina. Entre os seus amigos mais íntimos estava o barão de Teffé, militar, hidrógrafo e diplomata, herói da Batalha Naval do Riachuelo na Guerra do Paraguai e nosso ministro plenipotenciário na Bélgica, na Itália e na Áustria. O barão era pai da bela Nair de Teffé, a primeira mulher caricaturista do mundo. Pioneira da emancipação feminina no Brasil, Nair, além da profissão ligada às artes, foi a primeira mulher a usar calças compridas e a montar a cavalo no estilo masculino no Brasil. Era fogo a menina.
O senador Pinheiro Machado, que não teve filhos, tratava a pequena Rian – seu nome invertido, usado como pseudônimo de artista – como se sua própria filha fosse, incentivando sempre o seu talento para as artes, juntamente com o de outras personalidades do gênio feminino da época, como Chiquinha Gonzaga (1847-1935).
Nair casou-se com um outro amigo íntimo do senador, o também gaúcho Marechal Hermes da Fonseca (1855-1923), sobrinho do Marechal Deodoro da Fonseca (1827-1892), e ele também presidente da República entre 1910 e 1914. Foi o primeiro e único casamento de um presidente da República em exercício, em 1913, do qual Pinheiro Machado e sua esposa, Dona Nhanhã, foram os padrinhos.
Nair de Teffé, personalidade fortíssima, seguiu recebendo, agora no Catete, músicos e artistas brasileiros em seus saraus privados. O que gerava intensa crítica dos meios retrógrados da época. Em certa ocasião, em 1914, ofereceu, a pedido do Marechal Hermes, uma seresta ao violão – um instrumento quase proibido – de Catulo da Paixão Cearense, de quem o então presidente da República era admirador.
Foi um verdadeiro escândalo. Conta Nair que “no dia seguinte a esse íntimo acontecimento, a turma ‘do contra’, caiu em cima do Marechal e de mim. Diziam que foi uma vergonha nacional, levar para dentro do Palácio do Governo (que era transitoriamente a nossa casa) um violão, instrumento inseparável de boêmios e baderneiros” [6]. Na ocasião, Catulo da Paixão Cearense chamou a atenção da então primeira-dama para o fato de que nas celebrações oficiais não se tocava música brasileira. Era o desafio que Nair queria. Isso precisava acabar.
Nair, então, organizou uma recepção de despedida do governo Hermes da Fonseca ao corpo diplomático na noite de 26 de outubro de 1914. Era a ocasião perfeita para Nair apresentar ao mundo a música popular brasileira, inaugurando a nossa diplomacia cultural. A faixa presidencial seria transmitida ao grupo mineiro de Venceslau Brás (1868-1966) em 15 de novembro de 1914. Era preciso, assim, encerrar o quatriênio dos gaúchos com chave de ouro. Repare, cara leitora, que o grupo do PRR somente voltaria a dominar a cena política nacional com Getúlio Vargas, na Revolução de 1930.
Nair, então, pediu a Chiquinha Gonzaga que compusesse uma peça exclusiva para a ocasião [7]. Chiquinha Gonzaga, com enorme presença de espírito, apresenta-lhe um ritmo sulino, um tango, para ser tocado, provocativamente, ao violão, intitulado “O Gaúcho”, em clara referência à dupla Fonseca-Pinheiro, que partia do governo, sob violenta campanha de difamação. Como a compositora encontrava-se enferma, Nair apresentou a peça ela mesma, ao violão acompanhada do piano, para os representantes de todas as nações estrangeiras, em recepção oficial no Palácio do Catete, que ficou conhecida como “Noite do Corta-Jaca”, em alusão à letra provocativa e sensual da canção. Era a primeira vez que se apresentava uma canção brasileira ao mundo, em evento que marcou a “alforria da música brasileira” [8] e inaugurou a diplomacia cultural do Brasil.
Foi simplesmente o maior escândalo político da época. Ruy Barbosa (1849-1923), candidato derrotado por Hermes da Fonseca nas eleições presidenciais de 1910, chegou mesmo a subir na tribuna do Senado Federal para desferir um golpe baixo contra o “Corta-Jaca”. O líder “liberal” saiu-se com essa pérola, registrada para sempre nos anais do Senado:
“Uma das folhas de ontem estampou em fac-símile o programa da recepção presidencial em que, diante do corpo diplomático, da mais fina sociedade do Rio de Janeiro, aqueles que deviam dar ao país o exemplo das maneiras mais distintas e dos costumes mais reservados elevaram o corta-jaca à altura de uma instituição social. Mas o corta-jaca de que eu ouvira falar há muito tempo, que vem a ser ele, Sr. presidente? A mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, a irmã gêmea do batuque do cateretê e do samba. Mas nas recepções presidenciais o corta-jaca é executado com todas as honras de música de Wagner, e não se quer que a consciência deste país se revolte, que as nossas faces se enrubesçam e que a mocidade se ria!” [9].
Repare, cara leitora, que o preconceito regurgitado por Ruy Barbosa contra as manifestações culturais tipicamente brasileiras é um exemplo avant la lettre do fenômeno das “ideias fora do lugar”, magistralmente analisado por Roberto Schwarz [10]. Nos trópicos, uma elite alienada importa ideias liberais da Europa e dos EUA, que, aplicadas em um meio social marcado pela escravidão e o clientelismo, tornam-se o seu oposto, isto é, servem apenas de adorno e justificação das práticas mais retrógradas e delirantes. O “liberalismo” de Ruy Barbosa, na prática, transformava-se no puritanismo reacionário mais vil e inquisitório.
Nair de Teffé e o grupo pinheirista seguiam firme sob a saraivada de ataques do grupo de Ruy Barbosa. “A nossa música”, dizia ela, “tem a sua origem e suas raízes nas danças e cânticos dos escravos. Sua adoção na sociedade era quase impossível. Havia uma onda de preconceitos contra as serestas, chotes e maxixe”.
Quanto aos ataques de Ruy Barbosa, Nair nem os sentia. “As pedras que ele me atirou nem me atingiram”, garante ela. “Elas dormem esquecidas no fundo do mar ou da terra e só servem para assinalar a luta que enfrentei contra os preconceitos de então” [11].
Na semana que vem, cara leitora, em que comemoramos o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, lembre-se com carinho e gratidão de Nair de Teffé, de Catulo da Paixão Cearense e de Chiquinha Gonzaga. Eles tudo sofreram e muito lutaram para que as manifestações culturais brasileiras fossem aceitas pela elite, permitindo a realização da Semana de 22. Sem a luta deles, não teríamos nem a Semana de 22, nem as vanguardas modernistas, nem a MPB nem nada, enfim, daquilo que faz o brilho do Brasil no mundo. Nair de Teffé foi a patrona incontestável da diplomacia cultural brasileira. A semana que vem é toda inteira dela.
[1] Ribeiro. Edgar Telles. Diplomacia Cultural: seu papel na política externa brasileira. Brasília: FUNAG, 2011. p. 33. Disponível em: http://funag.gov.br/loja/download/824-Diplomacia_Cultural_-_Seu_papel_na_PolItica_Externa_Brasileira_2011.pdf
[2] Idem, p. 34.
[3] https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2306200204.htm
[4] http://www.drzem.com.br/2011/01/joao-da-baiana-pinheiro-machado-e-o.html
[5] Ribeiro, Darcy. Aos trancos e barrancos – Como o Brasil deu no que deu. Rio de Janeiro: Guanabara, 1985.
[6] Hermes da Fonseca, Nair de Teffé. A Verdade sobre a Revolução de 22. Rio de Janeiro: Gráfica Portinho Cavalcanti Ltda, 1974. p. 44.
[7] Idem.
[8] https://chiquinhagonzaga.com/wp/escandalo-politico-o-corta-jaca-no-catete/
[9] Idem.
[10] Schwarz, Roberto. As Ideias Fora do Lugar. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
[11] Hermes da Fonseca, Nair de Teffé. Ob. Cit. p. 45.