A Semana de Arte de 22, o Abaporu e a reforma trabalhista
JOTA.Info 2022-02-11
A reinterpretação de uma obra de arte é fenômeno comum que atinge gerações e culturas ao longo da história (da humanidade e da arte). E as motivações para isso são múltiplas: sentimental, social, estética, cultural, política, afetiva… Interpretação é círculo que não se fecha, portanto, aberta no tempo e no espaço.
Com a escrita não é diferente, já dizia Ernest Hemingway: “o único tipo de escrita é a reescrita”. Reescrever um texto acadêmico, técnico, cientifico, jornalístico e revisitar uma obra literária é mais comum do que se imagina. E aqui peço licença para fazê-lo em primeira pessoa.
É fevereiro de 2022 e comemoração do centenário da Semana de Arte de 1922, movimento artístico-cultural que também olhou para trás e reinterpretou o Brasil de 1500, engolindo-o, digerindo-o e vomitando-o para transformá-lo na esfera da arte, da política e da cultura.
Trago a Semana de Arte de 22 porque escrevi, outrora, sobre Tarsila do Amaral. Apesar de não ter participado da famigerada Semana de Arte, Tarsila é criatura e criadora de tudo que o Modernismo ofertou de cultura ao país e isso vem representado em sua obra Abaporu.
Em 2019 escrevi um artigo publicado no JOTA e (re)interpretei o Abaporu de Tarsila a partir da perspectiva do trabalho humano do brasileiro, no passado e no presente; que faz trabalho braçal e também intelectual. Observei então a inclinação do direito do trabalho, que se mostrava, naquele momento, como fluido e sujeito a reformas; hoje diria pendular que encerra o jogo do “pode ou não pode”, “exclui ou inclui”, “garante ou viola”, “manda ou obedece”, “paga ou recebe”.
Sim, preciso justificar minha reescrita: o debate político nas eleições de 2022 com o questionamento sobre se a reforma trabalhista pegou ou não e se trouxe benefícios ou não (para quem) ou ainda se continua vestida de (in)constitucionalidade. Tudo isso me fez voltar ao artigo que escrevi em 19 de agosto de 2019.
Assim disse eu:
A cabeça pensante que se apequena diante de um corpo imenso que trabalha. O corpo explorado que sente necessidade de se agigantar diante de uma mente que dita as regras. O trabalho braçal em oposição ao trabalho intelectual que ultrapassa fronteiras geográficas. À medida que um artista oferece sua arte para deleite e contemplação (e até selfies), surge a retribuição em forma múltipla de interpretação. Meu Abaporu, minha compreensão.
Recentemente, o Museu de Arte de São Paulo (Masp) recebeu uma exposição em homenagem à artista brasileira Tarsila do Amaral. Um aglomerado de visitantes bateu recorde em visita àquele museu. Tarsila do Amaral com sua obra de arte mais famosa nos faz refletir sobre diversos aspectos da sociedade brasileira, por exemplo, a questão envolvendo as relações de trabalho.
O ser humano, correspondente ao brasileiro representado pelo quadro, assume formas corporais avantajadas em relação à sua cabeça. Essas formas corporais tratam do trabalhador braçal, a maioria no país. Por outro lado, a cabeça miúda que se distancia daquele corpo é minoria, mas ocupa um papel central, determinante ao destino daquele corpo animalesco. Meu Abaporu, meu Rodin à brasileira.
O conflito permanente que envolve as forças de trabalho, empregado e patrão, não se desfez com a reforma trabalhista de 2017. As leis trabalhistas já não correspondiam (e continuam não correspondendo a realidades contemporâneas). Por outro lado, direitos mínimos não se excluem à medida que a máquina substitui o homem. As dezenas de ações judiciais que tramitam no Supremo Tribunal Federal (STF) evidenciam que a disputa pelos mais diversos direitos, obrigações e autonomias é uma constante na história da humanidade. E isto, diga-se de passagem, fenômeno presente na obra antropofágica de Tarsila do Amaral.
Dissenso em muitos pontos, a necessidade de mudança na seara das leis trabalhistas obrigará o STF a definir a (in)constitucionalidade de pagamento de honorários advocatícios pelo empregado, trabalho intermitente, tabelamento de danos morais, bem como correção de créditos trabalhistas. Enquanto isso, o número de ações trabalhistas reduz significativamente, segundo dados do TST. Mas uma pergunta que persiste: se o questionamento de um texto de lei é tão expressivo no STF, a quem cabe dizer o direito em último caso, inclusive em matéria trabalhista conforme decidiu recentemente o TST, é que algo foi reformado, mas não foi absorvido, incorporado, aceitado.
Declarados inconstitucionais os mais diversos pontos da reforma trabalhista, segundo o STF, podemos dizer que a reforma trabalhista é uma Abaporu em movimento de antropoemia que necessita vomitar regras impostas de cima para baixo, da cabeça para os pés em uma sociedade que não viu o número de empregos subir, decorrente exclusivamente da reforma realizada?
Se vingar a tese da inconstitucionalidade de pontos-chave da reforma trabalhista, podemos dizer que a classe trabalhadora virou o Abaporu de cabeça para baixo, impondo uma vitória de baixo para cima? O Abaporu de releitura do STF servirá inclusive para o rascunho de ações constitucionais que tramitarão na Corte em relação à futura reforma da previdência no país.
É aguardar as decisões do STF e então dirão patrões e empregados. Meu Abaporu, meus direitos.
Fecho aspas. Fecho-as, mas informo que elas sempre poderão ser reabertas, por mim ou por terceiros.
E o que aconteceu de 2019 para cá que me fez revisitar esse artigo? O julgamento das ações no STF? O número recorde de desempregados? O centenário da semana de arte de 1922? Não.
O que me fez revisitar minha escrita foi um fenômeno que não me passou desapercebido: a maleabilidade a que está sujeito o direito a partir da esfera da política.
Agora que tenho a oportunidade de reescrever tudo aquilo que disse em 19 de agosto de 2019, reescreveria apenas a seguinte frase: “(…) STF, a quem cabe dizer o direito em último caso”.
Quanta inocência minha! O direito é fenômeno [à disposição] da política e a essa cabe a última palavra, vide os debates presidenciais iniciados em janeiro de 2022 referentes à reforma trabalhista.
Assim, a partir de um caso concreto, tentei sair do campo eleitoreiro e me abrigar no campo da filosofia do direito, trazendo uma reflexão sobre as mais diversas justificativas de existência das normas.
Conselho final: antes de fechar as aspas no campo do direito, aponha reticências, uma vez que de fechado, duro e acabado ele nada tem, sempre estará sujeito à reescrita, fenômeno humano que é.