Duas histórias, duas vitórias e duas derrotas
JOTA.Info 2022-02-24
Pelo dobro de votos (301 a 150) a Câmara dos Deputados aprovou no último dia 8 de fevereiro o Projeto de Lei (PL) 6.299/02, o PL do Veneno para quem é contra o projeto e PL do Alimento mais Seguro para quem é a favor. O PL — que trata do registro, utilização e fiscalização dos agrotóxicos ou pesticidas (dependendo novamente se a pessoa é contra ou a favor do PL) — foi trending topic no Twitter, onde ampla maioria se posicionou contra o projeto de lei. A hashtag #NãoAoPacotedoVeneno bombou. Uma petição na change.org chegou perto das duas milhões de assinaturas. Celebridades de peso, como as chefs de cozinha Paola Carosella e Bela Gil, além do ator Bruno Gagliasso se posicionaram contra o PL nas redes sociais. Como explicar esta desconexão entre sociedade e Congresso?
A nossa tendência é interpretar um grande número de tuítes, milhões de assinaturas, além de vídeos e posts compartilhados por celebridades como indicativo de um amplo apoio da sociedade a um tema. É por isso que uma estratégia de lobby que inclui ferramentas digitais para mobilizar a sociedade (“advocacy”) pode ser altamente eficaz. No entanto, num mundo cada vez mais polarizado, uma outra leitura também é possível: a de que as assinaturas, compartilhamentos e likes se restringem a um grupo. E aí o barulho nas redes sociais pode ter sido interpretado pelos deputados como limitado a um segmento da sociedade que não reflete o pensamento de suas bases.
O vídeo mais compartilhado nas redes sociais conta um pouco dessa história. Nele, a chef de cozinha Paola Carosella fala diretamente ao espectador. Ela abre perguntando: “Se você fosse a um restaurante… e o garçom te perguntasse se você gostaria de seu prato com ou sem veneno… eu espero que você fale sem veneno”. A Paola responde a sua própria pergunta, eliminando o processo de descoberta do espectador e abrindo espaço para o “nós e eles”. E se por um lado o veneno no prato é uma tentativa de concretizar a ideia de agrotóxico como veneno, qualquer um poderia ter o seguinte diálogo: isso quer dizer que tenho comido veneno este tempo todo? E se tenho, e eu estou bem, que veneno é este que não mata? Concretizar uma ideia é importante, mas faltou a prova do dia a dia. Uma tentativa mais bem humorada e fácil de entender foi o vídeo com mais de 75 mil likes da Cami em seu perfil no Instagram @camilibrio em que joga inseticida numa maça e a oferece.
O “storytelling” das ONGs e dos ativistas contrários ao PL foi extremamente efetivo. O PL do Veneno virou sinônimo do PL 6.299/02. Além de enquadrarem o tema (veneno), os opositores ao PL pautaram o debate público (levando seus “talking points” às redes sociais). Eles argumentam que com o PL o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) perdem poder e autonomia no processo de aprovação dos agrotóxicos (veja figura abaixo), que a mudança na metodologia da avaliação de risco abre espaço para a aprovação de produtos cancerígenos e que o governo Bolsonaro aprovou número recorde de agrotóxicos nos últimos três anos.

Perguntei a representantes do setor o que pensavam sobre estes três pontos. A história deles começa com a lentidão da aprovação de registros na Anvisa, que demora em média de seis a oito anos, ao contrário do prazo médio em outros países, que é de dois anos. Para eles, a demora impede que novos produtos — melhores e menos tóxicos — sejam utilizados no Brasil. Argumentam também que a burocracia é excessiva com três processos distintos para a aprovação do mesmo registro (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente, Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, ou Mapa, e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e que a nova lei passaria a unificar o processo, com prazo máximo de 2 anos. Quanto à redução do poder da Anvisa e do Ibama, argumentam que o Mapa não iria aprovar um registro caso, por exemplo, a Anvisa indeferisse um pedido.
Quanto à metodologia de avaliação de risco, argumentam que a nova lei segue o modelo americano, mais adequado à realidade brasileira. A Agência de Proteção Ambiental (EPA) norte-americana segue o princípio do risco irrazoável à saúde, em que avalia a toxicidade do princípio ativo e a probabilidade de exposição. Por outro lado, a Autoridade Europeia de Segurança Alimentar (EFSA) somente aprova pesticidas que comprovadamente não tenham efeitos nocivos imediatos ou retardados na saúde humana e animal, direta ou indiretamente, e que não ofereçam efeitos inaceitáveis ao meio ambiente. Isto é, enquanto o modelo europeu avalia o perigo inerente da substância, ou a capacidade de causar dano, o modelo americano avalia o risco, que depende da toxicidade e da exposição à substância.
Por último, mencionaram que o número de aprovações de novas moléculas pelo atual governo é muito menor. Entre os 243 produtos comerciais aprovados em 2021, somente 10 eram moléculas novas. Os outros, afirmam, eram genéricos, isto é, moléculas que já haviam sido aprovadas.
No final do dia, o que conta são os votos dos parlamentares. O agronegócio representa aproximadamente ⅓ do PIB brasileiro, emprega quase 1 a cada 3 brasileiros e foi responsável por 43% das exportações brasileiras em 2021. Tem muita gente que vive do agro e para quem pesticidas significam alimento mais seguro, e o Congresso representa esta realidade. No mundo online, as ONGs e os ativistas ganharam de longe, inclusive pautando o debate no mundo off, mas na Câmara, o lobby no Congresso deu melhores resultados.