A arte de ter razão (só que não)

JOTA.Info 2022-03-22

Em “A arte de ter razão”, Schopenhauer elenca 38 estratagemas para um debatedor ganhar uma discussão mesmo sem ter razão. Destaco dois desses artifícios, por sua pertinência ao debate jurídico brasileiro. O primeiro é comumente designado como ad hominem: ao invés de se discutir os argumentos, atacam-se os indivíduos, como se características pessoais pudessem desqualificar as razões em debate. O segundo tem sido chamado de falácia do espantalho: o argumento contrário não é tomado a sério, sem considerar detalhes relevantes, tornando-se uma caricatura grosseira.

A comunidade jurídica debateu a constitucionalidade do art. 27 da Lei 8.987/95, por ocasião do julgamento da ADI 2.946 pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O dispositivo permite tanto a alteração do controle acionário da concessionária, como a transferência do contrato de concessão a outra empresa, desde que mantidas as condições da proposta vencedora da licitação e a operação seja aprovada pelo poder concedente. Formaram-se duas correntes, ambas respeitáveis: uma, que admitia apenas a mudança do controle acionário sem licitação; a outra, que considerava as duas situações materialmente equivalentes e igualmente válidas.

Defendi, ao lado dos juristas que se revezam nesta coluna, a tese da constitucionalidade integral da norma. No curso do debate um artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo sustentou que a alteração do controle acionário da concessionária, “caso não seja realizada como manobra para fraude à licitação, faz parte do dia a dia da empresa e nada tem de inconstitucional”. Todavia, dizem, a transferência da própria concessão seria ilícita, e arrematam enfaticamente: “Nestes tempos de quase completa submissão ao poder econômico, nada surpreende que muitos não apenas tenham silenciado em relação à inconstitucionalidade, mas a defendido apaixonadamente (…). Submeter-se-á o STF aos interesses do poder econômico ou cumprirá o seu papel de guardião da Constituição? Ninguém pode saber”.

Ou seja, os autores se puseram na posição de defensores da moralidade, acusando quem defendia argumento contrário de estar a serviço do poder econômico. Pior: tentaram colocar o STF numa saia justa, como se tivessem essa condição. Além do desconhecimento sobre a complexidade das operações societárias, o artigo também omitiu o que sempre sustentamos: que o poder concedente e os órgãos de controle têm, em ambas as situações, o dever de coibir fraudes e verificar a vantajosidade da operação para a sociedade.

Os ministros Dias Toffoli (relator) e Alexandre de Moraes, numa primeira leitura, afiliaram-se à corrente mais restritiva. Após intenso debate travado nos autos pela AGU, BNDES, estados e entidades de classe, ambos os ministros reconsideraram seus votos, formando a maioria de 7 a 4 que declararia a constitucionalidade integral do art. 27. Aos estratagemas, o STF respondeu apenas com o bom e respeitoso embate de ideias. Elas venceram.