A importância da Lei das Estatais
JOTA.Info 2022-04-14
A Emenda Constitucional nº 19, de 1998, alterou o art. 173 da Constituição Federal para prever o §1º: “A Lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços”.
Os incisos, por seu turno, trouxeram os elementos centrais do que disporia a lei. Especificamente, o Estatuto Jurídico das Estatais deveria versar sobre:
- a função social e as formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade;
- a sujeição ao regime jurídico das empresas privadas, inclusive em relação aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributárias;
- as regras de licitação e contratação de obras e serviços, compras e alienações, desde que observados os princípios das administração pública;
- a constituição e o funcionamento dos conselhos de administração e fiscal e a preocupação com a participação dos minoritários;
- e os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilidade dos administradores.
Estávamos nos anos 2010 e o Estatuto Jurídico das Estatais ainda não havia sido aprovado e muito menos implementado, quando surgem uma série de denúncias envolvendo empresas estatais, em especial a Petrobras. O assunto ganha grande notoriedade nacional. Passa a ser a agenda do dia. Com isso, o Estatuto Jurídico das Estatais, que não tinha avançado por longos 18 anos, volta à discussão. Em 30 de junho de 2016, sob a pressão dos fatos, é aprovada a Lei 13.303, o Estatuto Jurídico das Estatais ou Lei (de Responsabilidade) das Estatais, em analogia à Lei de Responsabilidade Fiscal.
A Lei das Estatais pode ser subdividida em quatro partes essenciais:
- o regime societário das empresas estatais, que em grande medida trata da governança a que essas entidades seriam submetidas;
- a função social das empresas estatais, que fala das condições e exceções para a atuação do Estado no domínio econômico de forma direta, ou seja, a atuação empresarial do Estado;
- o regime de licitações e contratações, que busca aproximar a empresa estatal das condições de contratação da empresa privada;[1]
- e a forma de fiscalização pelo Estado e pela sociedade.
A primeira parte, o regime societário das empresas estatais, que se associa ao desenvolvimento de boas práticas de governança nestas empresas, terá um tratamento prioritário e deixaremos para o final. Falaremos rapidamente sobre as outras três partes fundamentais da Lei das Estatais.
A função social das empresas estatais, que pode ser vista no art. 27 da Lei 13.303/2016, reafirma o princípio constitucional da intervenção empresarial do Estado no domínio econômico. Dessa forma, é válido lembrar, conforme o art. 173 da Constituição Federal, caput, que “ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”.
O art. 173 nos remete a uma condição de excepcionalidade. Colocando de outra forma, a criação de estatais só poderia ocorrer nas exceções relativas à segurança nacional e ao interesse da coletividade, que, por sua vez, está associada à realização de uma política pública e uma forma específica de correção de uma falha de mercado. Temos, nesse sentido, estabelecida a função social da empresa estatal.
O regime de licitações e contratações, em grande medida, buscou aproximar o modelo de compras das estatais ao regime das empresas privadas. Destacam-se os arts. 28, 29 e 30 que tratam dos casos em que as empresas estatais não precisam fazer licitação, estando, dessa forma, ainda mais próximas do setor privado. Em particular, é oportuno citar o §3º, incisos I e II, e o §4º do art. 28, bem como o art. 29, XVIII, que permitiram a criação de uma nova forma de transferência de empresas estatais para a iniciativa privada: os desinvestimentos. Dada a exiguidade de espaço, deixaremos esta importante discussão para outro momento.
O último elemento a ser tratado antes da discussão fundamental sobre as boas práticas de governança trazidas pela Lei das Estatais refere-se à forma de fiscalização pelo Estado e pela sociedade. A fiscalização por parte do Estado, em particular dos órgãos de controle, é referendada nos arts. 85 a 90. No entanto, aqui já cabe um adendo.
A lei traz especificamente que a fiscalização por parte dos órgãos de controle não pode resultar em interferência na gestão das empresas estatais e nem ingerência no exercício de suas competências ou na consecução de políticas públicas. De outra forma, não cabe ao órgão de controle, na sua atribuição de fiscalização, adotar medidas que venham a alterar decisões de mérito e escolhas de políticas públicas.
Na outra ponta, a fiscalização por parte da sociedade se dá mediante a constituição de instrumentos garantidores da transparência. Esses instrumentos, muito presentes na Lei das Estatais, garantem o acesso a dados e informações dessas empresas. Também não é demais dizer que um dos pilares para a consecução de uma boa governança corporativa é exatamente a existência de um maior grau de transparência.
Finalmente adentramos a discussão da governança. A ideia era dotar as empresas estatais de práticas de governança corporativa que permitissem o funcionamento de mecanismos de incentivos que garantissem uma boa gestão pautada por valores éticos.
Muitas estruturas foram reforçadas ou inseridas nas estatais. Voltando à questão da transparência, que apoia fundamentalmente a fiscalização pela sociedade dos ativos estatais, temos uma série de documentos e relatórios que têm que ser publicados e disponibilizados pelas empresas com este objetivo.
Entre eles destaca-se a Carta de Políticas Públicas e Governança Corporativa. Documento de periodicidade anual na qual são descritas as políticas públicas executadas pela empresa, que devem estar em linha com sua função social (segurança nacional ou interesse da coletividade). Junto à comprovação da execução de sua função social, na mesma Carta, devem estar presentes uma série de informações relativas às atividades desenvolvidas, estrutura de controle, fatores de risco, dados econômico-financeiros etc.
Outro aspecto relevante da Lei das Estatais é o fortalecimento das estruturas de governança corporativa. São bem definidos os papéis do Conselho de Administração, Conselho Fiscal, Diretoria e, como uma novidade, a figura do Comitê de Auditoria, órgão de assessoria do Conselho de Administração, em todas as estatais. A lei e as boas práticas de governança corporativa estabelecem que esses órgãos têm que trabalhar em harmonia, mas segmentados em suas alçadas de tomada de decisão.
Vários outros aspectos poderiam ser tratados. Porém, nos restringiremos a um último que traz grande diferencial a esta lei. Trata-se especificamente dos requisitos e vedações para a assunção do cargo de administrador (diretor estatutário ou conselheiro de administração). O art. 17 traz uma série de requisitos – experiência profissional e formação acadêmica compatível, bem como não se enquadrar em situações de inelegibilidade. Também traz uma série de vedações tais como de representante de órgão regulador; ministro ou secretário de estado ou municipal; pessoas que trabalharam em estrutura decisória de partidos políticos ou participaram de campanha eleitoral, pessoas que participaram de organização sindical etc. Fez-se uma série de normatizações com vistas a diminuir a influência política nas empresas estatais.
Trazendo a validade da lei para o caso concreto, é importante ressaltar uma recente indicação para presidente da Petrobras. No entanto, o indicado não se adequava às vedações da Lei das Estatais. E, de fato, acabou por desistir de ocupar a posição. Muitos atores passaram a avaliar que a Lei das Estatais estava cometendo exageros, dado que estava se vetando um técnico, um consultor, de altíssimo conhecimento no setor. Passou-se, inclusive, a dizer que a lei não permitia a assunção desses cargos por consultores e outros agentes vindos da iniciativa privada. Na outra ponta, dizia-se que a Lei das Estatais criava uma reserva de mercado para servidores e empregados públicos.
Peço licença para discordar. Vamos aos argumentos. Entre as vedações de participação em diretoria ou conselho de administração das empresas estatais, descritos no citado art. 17, está a vedação de participação “de pessoa que tenha ou possa ter qualquer forma de conflito de interesse com a pessoa político-administrativa controlada da empresa pública ou da sociedade de economia mista ou com a própria empresa ou sociedade”. Ora, caso eu seja um consultor ou empregado de uma empresa privada que atua no mesmo ramo da estatal em questão, há, claramente, o surgimento de uma situação de conflito de interesse, que também poderia estar presente entre empresas privadas.
Nesse caso, a vedação não é à assunção do cargo de diretor ou de conselheiro, mas a vedação à assunção do cargo de conselheiro enquanto o conflito de interesse permanecer, o que poderia impedir que esse agente agisse no melhor interesse da empresa estatal.
No caso concreto, o gestor deve se afastar de suas antigas atividades funcionais para assumir o cargo na empresa estatal e, dessa forma, eliminar o possível conflito de interesse. De outra forma, o que a Lei das Estatais fez foi impedir que um conselheiro ou diretor “mantivesse os pés em duas canoas ao mesmo tempo” e toda a situação conflitiva envolvida, inclusive em relação aos seus deveres fiduciários com a companhia. Assim, no caso em análise, não foi uma dificuldade trazida pela Lei das Estatais, mas a boa governança das Lei das Estatais que permitiu que o indicado fizesse a sua melhor escolha.
[1] De fato, no que tange às regras de licitação e contratação, a Lei das Estatais (Lei 13.303/2016) foi um avanço em relação à Lei de Licitações, a conhecida Lei 8.666/1993. No entanto, em 2021, foi publicada a Lei 14.133, que aperfeiçoa a Lei 8.666. Nesse momento, então, é importante desenvolver uma análise comparativa entre a 13.303 e a 14.133 com vistas a uma possível atualização da Lei das Estatais no que tange às suas regras de licitação e contratos.