Divergências políticas barram avanços no saneamento

JOTA.Info 2022-05-06

O desenvolvimento da regionalização do saneamento no Brasil vem sendo debatido desde os tempos da formulação do Plano Nacional de Saneamento (Planasa), no início dos anos 1970. Mas os avanços registrados desde então foram mínimos, principalmente em virtude da dificuldade institucional, jurídica e política para a agregação entre os municípios, que deveriam contar com autorização legislativa específica.

O quadro de estagnação começou a mudar apenas recentemente com dois marcos legais importantes: o Estatuto da Metrópole (Lei 13.089/2015) e a consolidação do entendimento jurídico pelo Supremo Tribunal Federal (STF), explicitado nas ADIs 1841 e 1842, de que a integração metropolitana é compatível com a autonomia municipal. Esses instrumentos permitiram que o processo de regionalização se tornasse viável ao reconhecerem a constitucionalidade das leis complementares instituidoras das Zonas Metropolitanas, em perfeito entendimento da Constituição Federal.

No entanto, as divergências políticas a cada transição de governo municipal podem colocar a perder todos os esforços feitos para colocar de pé modelos econômicos e jurídicos consistentes para garantir água tratada e esgotamento sanitário para todos os brasileiros, como prevê o novo Marco Regulatório do Saneamento (Lei 14.026/2020).

Paira hoje no Supremo a dúvida sobre a real consistência legal desses projetos. Ações encaminhadas ao STF foram motivadas por conflitos de poder que não deveriam ameaçar a universalização desses serviços. Mas, na prática, essas pendências judiciais levam aos seguintes questionamentos entre os investidores: vale a pena assumir o risco de investir nesses projetos com contratos de até 35 anos de concessão? Se sim, a que custo?

É necessário, então, contextualizar melhor como chegamos ao ponto em que aproximadamente 90 atuais processos de licitação para serviços de saneamento em todo o Brasil podem, neste momento, estar sendo avaliados pelos investidores como politicamente arriscados demais. Voltemos aos princípios que regem a modelação dos contratos de concessão, para então identificarmos como as querelas políticas podem levar ao desmonte de um projeto estrutural tão relevante para o país.

O saneamento básico é um conjunto de serviços fundamentais que contribuem para o desenvolvimento socioeconômico de uma região e é um direito garantido pela Constituição. Devido às suas características intrínsecas, frequentemente a prestação de serviços de saneamento básico extrapola o âmbito local, abrangendo um conjunto de municípios. Essa perspectiva é muito clara nas regiões metropolitanas constituídas por agrupamento de municípios limítrofes com o objetivo de integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas que produzem benefícios amplos a toda uma comunidade.

O novo Marco do Saneamento é assertivo em seu alinhamento constitucional, posto que abrange macro e microdemandas locais, estimulando soluções dentro das zonas metropolitanas, mas também de regiões que se articulam em torno do interesse comum de suas populações. Esses arranjos regionais possibilitam a atratividade de investimentos privados e viabilizam projetos de engenharia devido ao ganho de economias de escala. Além disso, essas soluções favorecem uma demanda cada vez mais urgente no planeta: o uso racional dos recursos hídricos.

Assim, a vigência do novo marco permitiu uma nova e notável dinamização nas searas estaduais, municipais e entre empresas públicas e privadas responsáveis pela prestação dos serviços de abastecimento de água e esgoto. Legislações produzidas na sequência do Marco reforçaram esse processo e são fundamentais para vencer o atraso no saneamento básico brasileiro. Na esteira desse avanço, o pioneirismo ficou por conta dos estados de Alagoas, Rio de Janeiro e Amapá. Com o apoio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), eles realizaram nos últimos dois anos os processos licitatórios necessários para a concessão da prestação de serviços de tratamento de água e esgoto.

Cada um destes estados aplicou modelos de regionalização distintos. Alagoas optou por um sistema misto com a adoção de dois modelos: o primeiro, relativo à Região Metropolitana de Maceió, com o resguardo na jurisprudência fixada pelos entendimentos estabelecidos nas ADIs 1841 e 1842; e o segundo, já utilizando o arcabouço legal do Marco de Saneamento, levou à definição de duas unidades regionais que englobam os municípios das áreas de sertão/agreste e litoral/zona da mata. As distinções entre os dois modelos se justificam, pois o processo de concessão dos serviços de saneamento da Região Metropolitana de Maceió se iniciou antes mesmo do novo marco. Já os estados do Rio de Janeiro e do Amapá adotaram o modelo de Região Metropolitana estendida.

Os bons resultados dos leilões de concessão destes estados impulsionaram a regionalização no país, o que permitiu que o Brasil alcançasse o número atual de mais de 90 projetos de licitação em saneamento, cujos resultados deverão impactar sobremaneira os indicadores sociais, econômicos e ambientais em diferentes localidades. São mais de R$ 400 bilhões em investimentos previstos nos próximos 35 anos no setor.

Se, de um lado, o sucesso das concessões já realizadas no setor de saneamento abriu caminho para a expansão de novos investimentos estruturais no país, por outro lado impulsionou vários imbróglios jurídicos. E é exatamente aqui que o processo de modernização do setor está sendo travado, a julgar pela confusão provocada exclusivamente por divergências políticas. As disputas refletem o interesse com o destino dos valores obtidos a título de outorga. Mas a instabilidade processual provocada por essas demandas leva a um clima de insegurança jurídica prejudicial para todo o país.

O principal exemplo de entrave vem da concessão dos serviços a serem prestados na Região Metropolitana de Maceió, cuja transição política dos gestores municipais suscitou rediscussões administrativas e judiciais sobre temas que já haviam sido superados. Questões como o modelo de negócios e a destinação dos recursos provenientes da outorga estavam devidamente pacificadas e mesmo depois do início dos contratos, novas polêmicas foram levantadas, conturbando o cenário. As divergências subiram até a jurisdição do STF. Partidos como MDB, PSB e PP, além do Governo de Alagoas e da Prefeitura de Maceió, mantêm a discussão por meio de três diferentes processos: a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 863, a Ação Direta de Inconstitucionalidade 6573 e a Ação Direta de Inconstitucionalidade n ° 6911, que estão sendo apreciadas pelo Supremo.

As celeumas em torno de questões tratadas agora no âmbito dessas ações põem em risco a própria viabilidade dos mais diversos processos de regionalização em curso no Brasil. Afinal, o que hoje se discute na ADPF no Supremo é se as decisões administrativas do conselho metropolitano ou da unidade regional são válidas. É exatamente este o caso de Maceió. A entidade metropolitana da capital alagoana discutiu amplamente e deliberou sobre as questões relacionadas à concessão privada de serviços de saneamento básico. E mesmo depois de finalizado o processo de leilão e de ter o contrato assinado, o caso continua sob litígio.

Essas provocações acarretam consequências para setores que necessitam de um arcabouço regulatório bem fundamentado e estável, como é o caso do saneamento. Caso contrário, impera o desgaste nas relações diretas com os investidores, a ponto de inviabilizar os esforços empregados nos projetos. Imagine-se agora que nos próximos 35 anos (período comum aos contratos de concessão do setor) haverá nove eleições municipais. E se, a cada eventual troca de governo, houver um novo entendimento acerca dos contratos firmados, com ações e recursos em diferentes instâncias jurídicas, em função de meras divergências ou ideologias políticas? Não tenhamos dúvidas de que este risco já está sendo precificado pelos investidores, levando o país a perder duas vezes: na oferta de valores de outorga nos leilões de licitação e também no atraso ou mesmo não realização dos investimentos necessários.

É evidente que há debates necessários para alcançarmos melhorias no quadro regulatório do setor, incluindo normas relacionadas à eventual transferência de contratos. Essas adaptações podem ser feitas, em nome da segurança dos processos de concessão. Mas resgatar questões periféricas ao gosto político em momentos de transição de poder é perverso. Quem perde é a sociedade, já que as querelas políticas impactarão negativamente a meta de universalização da oferta de água tratada e do tratamento de esgoto, na contramão dos parâmetros fixados pelo novo Marco Regulatório do setor.