Os 9 anos do marco legal e regulatório de registradoras e depositários centrais

JOTA.Info 2022-06-08

Em maio de 2013, os mercados brasileiros bancário e de capitais vivenciaram a publicação da Lei 12.810/2013. Esse diploma destina-se em seus artigos 22 a 29 a estabelecer uma disciplina própria voltada a reger a atuação de infraestruturas do mercado financeiro de registro e de depósito centralizado de ativos financeiros e valores mobiliários negociados no país.

Desde a sua publicação, a Lei 12.810/2013 tem contribuído de modo expressivo para o aumento da segurança e da eficiência das operações realizadas no âmbito desses mercados, conferindo a transparência necessária para fomentar o uso de bens, direitos e instrumentos objeto de registro e depósito centralizado por seus titulares. Nessa direção, destacam-se dois atributos preponderantes que podem ser considerados como sendo os responsáveis para tanto, a saber:

  1. a constituição de um marco legal, pois essa legislação estabelece um regime jurídico específico aplicável a atividades desempenhadas por entidades registradoras e depositários centrais, que são distintas entre si e não se confundem com as operações de escrituração; e
  2. igualmente, a constituição de um marco regulatório voltado à atuação das infraestruturas operadas pelos referidos agentes, tendo em vista que a lei outorga poderes a autoridades governamentais para autorizar a instituição, regular e fiscalizar os sistemas de registro e de depósito centralizado.

Tendo isso em vista, adiante será realizada uma breve análise dos referidos atributos, bem como serão expostas conclusões a respeito de suas contribuições.

Marco legal

A Lei 12.810/2013 pode ser considerada o marco legal das entidades registradoras e depositários centrais de ativos financeiros e valores mobiliários, pois institui e sistematiza o enquadramento jurídico desses agentes que operam infraestruturas do mercado financeiro (IMF).

Dessa forma, inicialmente, é preciso salientar que a referida lei circunscreve o escopo de atuação dessas infraestruturas, que alcança exclusivamente ativos financeiros e valores mobiliários. Assim, não são passíveis de registro ou depósito centralizado em IMF de que trata a Lei 12.810/2013 os bens, direitos ou instrumentos financeiros que não estejam enquadrados como ativos financeiros nos termos das Resoluções do Conselho Monetário Nacional[1], ou como valores mobiliários conforme previsto na Lei 6.385/1976[2].

Em paralelo, o marco legal conceitua as atividades de dois distintos agentes: as entidades registradoras e os depositários centrais. Cada um deles, além de compor o rol de entidades que gerenciam IMF integrantes do Sistema de Pagamentos Brasileiro, somando-se às que orquestram sistemas de compensação e liquidação[3], possui funções específicas, conforme exposto abaixo.

Às entidades registradoras compete estruturar sistemas que armazenam e publicizam informações referentes a ativos financeiros e valores mobiliários, incluindo as operações a eles relacionadas. Na prática, são sistemas de registro que refletem a titularidade de ativos, tornando-a oponível perante terceiros. Trata-se, aqui, de uma espécie de registro de natureza declaratória, pois os ativos financeiros e valores mobiliários existem, independentemente dele. No entanto, quando são registrados, as operações lastreadas em tais ativos podem ser publicizadas, de modo que sejam opostas a terceiros, tal como ocorre com negócios jurídicos levados a registro em registro público competente.

Ressalta-se que essa modalidade de IMF encontra amparo nos Principles for Financial Market Infrastructures (PFMI) — sendo intituladas trade repositories[4]. Voltam-se à promoção da transparência e ao controle de riscos de ativos, tanto para agentes privados que tenham o interesse de saber se é seguro negociar determinado bem, como para autoridades regulatórias, que também podem acessar tais informações para congregar objetivos próprios[5].

Nesse sentido, atribuídas de função informativa por gerirem sistemas de registro, as entidades registradoras conferem publicidade a respeito das transações relacionadas ao ativo registrado[6], que pode ser objeto de uma cessão definitiva com ou sem coobrigação, ou de uma outorga em garantia, por exemplo. Nessa última hipótese, inclusive, compete privativamente ao sistema de registro constituir ônus e gravame em nome do terceiro financiador que recebeu o direito em garantia.

Importante notar que o registro em tela não se confunde com a escrituração de ativos financeiros e valores mobiliários, cujo registro apresenta natureza constitutiva[7]. A título ilustrativo, uma duplicata escritural inexiste até ser escriturada por um sistema de escrituração[8]; por outro lado, um recebível de cartão, ativo financeiro objeto de registro, surge quando a transação com cartão é realizada em um estabelecimento comercial habilitado para sua aceitação. Em outras palavras, no caso do recebível de cartão, a obrigação de pagamento do devedor (no caso, a instituição credenciadora responsável pela captura, processamento e liquidação da transação) independe do registro no ambiente operado pela entidade registradora, o que não ocorre em relação à duplicata escritural, na qual o ativo somente passará a existir e, portanto, a possuir eficácia jurídico-transacional, mediante a sua escrituração em entidade escrituradora autorizada para tanto[9] — sem prejuízo, inclusive, de posterior registro ou, até mesmo, depósito centralizado visando a sua comercialização.

No que tange aos depositários centrais, cumpre a eles exercer a atividade de depósito centralizado, a qual compreende a guarda centralizada de ativos financeiros e de valores mobiliários, fungíveis e infungíveis, o controle de sua titularidade efetiva e o tratamento de seus eventos[10].

Em consonância com as diretrizes do PFMI, caracterizam-se como central securities depositories[11] que, diferentemente das entidades registradoras, que somente realizam a gestão de fluxos informacionais, passam a ser titulares fiduciárias dos direitos, viabilizando a sua negociação em seu ambiente dado que realizam a devida guarda do ativo.

No Brasil, os depositários centrais foram instituídos sob o argumento de ampliação da segurança do sistema financeiro, ao permitirem que os ativos dos depositantes ficassem segregados do patrimônio da instituição financeira em razão da transferência da titularidade fiduciária[12], de forma que eventuais desafios financeiros enfrentados pelas infraestruturas não repercutissem sistemicamente sobre os agentes envolvidos[13].

Consequentemente, os depositários centrais preservam a integridade dos ativos por meio da fixação de procedimentos que asseguram o devido controle e rastreabilidade[14]. Em essência, efetivam a transferência da titularidade e o manejo de ônus sobre os ativos depositados caso sejam outorgados em garantia, tendo em vista a sua competência exclusiva para oneração do ativo depositado em seu ambiente. Com isso, otimiza-se a negociação de ativos financeiros e valores mobiliários, promovendo a (a) segurança ao depositante, por permitir a segregação dos ativos elegíveis do patrimônio da instituição financeira; (b) credibilidade operacional, em razão da responsabilidade assumida pelo fluxo informacional das operações; e (c) conveniência, pelo fato de serem responsáveis pela administração das transações envolvendo os bens depositados. A título ilustrativo, no contexto de valores mobiliários, o depósito centralizado é condição para a distribuição pública e para a negociação em mercados organizados — ou seja, em bolsas de valores e mercados de balcão[15].

Marco regulatório

A Lei 12.810/2013 também pode ser considerada o marco regulatório dos sistemas de registro e de depósito centralizado de ativos financeiros e valores mobiliários, pois outorgou competências a autoridades governamentais para instituírem a disciplina e realizarem os procedimentos de supervisão das referidas atividades, especificamente ao Conselho Monetário Nacional (CMN), ao Banco Central do Brasil (BC) e à Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

No que diz respeito ao CMN, compete-lhe definir o rol de ativos financeiros sujeitos ao registro e ao depósito centralizado, bem como exigir que instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo BC realizem tais atividades, impedindo que determinadas operações não sejam contempladas no ambiente dessas IMF[16].

Da mesma forma, a Lei 12.810/2013 atribuiu ao BC e à CVM, conforme seus respectivos campos de atuação, o dever de regular e fiscalizar essas infraestruturas. Isso porque determinou a obrigatoriedade de o BC, na esfera dos ativos financeiros, e de a CVM, no âmbito dos valores mobiliários, autorizarem e supervisionarem o exercício dessas atividades, assim como para estipularem as condições necessárias para tanto, o que inclui a constituição de gravames e ônus no ambiente desses sistemas[17]. Nota-se que compete aos reguladores autorizarem a estruturação do sistema, e não o funcionamento da entidade que o opera — lógica distinta daquela aplicável a instituições financeiras e de pagamento, mas similar ao que ocorre com os arranjos de pagamento[18].

Ainda, considerando que, quando um ativo financeiro ou valor mobiliário estiver registrado ou depositado, cabe somente ao operador do respectivo sistema constituir gravames e ônus sobre tal ativo, nota-se o potencial dessas infraestruturas para o fomento de operações de crédito no Brasil. Afinal, há autorização legal expressa para que a oneração ocorra no âmbito da própria entidade registradora ou depositário central, substituindo a necessidade de constituição da garantia sobre o direito em um cartório, por exemplo. Prima-se, assim, pela simplificação do processo de constituição da garantia pelo financiador em um ambiente integralmente eletrônico e em benefício da redução de custos[19]. Nesse sentido, inclusive, o BC está incumbido de monitorar as operações de crédito viabilizadas no âmbito desses sistemas, com a verificação do nível de redução do custo médio dessas operações[20].

Por fim, cumpre destacar a aplicabilidade do processo administrativo sancionador nas esferas de atuação do BC e da CVM às atividades praticadas por essas infraestruturas. Significa dizer que o cometimento de infrações à regulação financeira editada com fulcro na Lei 12.810/2013 sujeita as entidades autorizadas a operar os sistemas de registro e de depósito centralizado, seus administradores e membros de conselhos fiscais e consultivos aos mecanismos de sanção de que trata a Lei 13.506/2017.

Posto isso, sintetiza-se abaixo a configuração estabelecida pelo marco legal e regulatório destinado a entidades registradoras e depositários centrais.

 Entidade Registradora (ER)Depositário Central                                   (DC) Legislação aplicável[21]Lei 12.810/2013 + Lei 13.506/2017DefiniçãoEntidade que opera IMF de registro de ativos financeiros ou valores mobiliáriosEntidade que opera IMF de depósito centralizado de ativos financeiros ou valores mobiliáriosEnquadramento jurídico da atividade principal[22]Armazenar e publicizar informações referentes a transações financeiras, ressalvados os sigilos legaisRealizar a guarda centralizada, o controle de titularidade efetiva e o tratamento de seus eventos, responsabilizando-se pela integridade do sistema e dos registros correspondentes sob a sua guarda centralizadaPublicizar informações de ativos financeiros e valores mobiliários[23]SimSimRefletir as informações relativas à transferência de ativos financeiros e valores mobiliários[24]SimSimReceber a transferência, em regime fiduciário, da titularidade de ativos financeiros e valores mobiliários [25]NãoSimCondição para a distribuição pública e para a negociação em mercados organizados[26]NãoSim, para valores mobiliáriosConstituir gravames e ônus sobre ativos financeiros e valores mobiliários[27]Sim, exclusivamente para os ativos financeiros ou valores mobiliários registrados em seu sistemaSim, exclusivamente para os ativos financeiros ou valores mobiliários depositados em seu sistemaCompetência para autorizar e supervisionar o exercício da atividade[28]O BC autoriza e supervisiona IMF de registro/depósito centralizado de ativos financeiros operada por ER/DC

A CVM autoriza e supervisiona IMF de registro/depósito centralizado de valores mobiliários operada por ER/DC

Competência para estabelecer as condições para o exercício da atividade[29]O BC define as condições para o registro/depósito centralizado de ativos financeiros

A CVM define as condições para o registro/depósito centralizado de valores mobiliários

Competência para estabelecer as condições para a constituição de gravames e ônus, inclusive no que concerne ao acesso à informação[30]O BC define as condições para a constituição de gravames e ônus em sistema de registro/depósito centralizado de ativos financeiros

A CVM define as condições para a constituição de gravames e ônus em sistema de registro/depósito centralizado de valores mobiliários

Promoção da segurança e da credibilidade de transações financeirasSimSim

Conclusões

Em síntese, nos termos da Lei 12.810/2013, ao salvaguardarem informações relativas a ativos financeiros e valores mobiliários detidos pelos mais diversos agentes do mercado financeiro — de instituições de grande porte a pequenos varejistas usuários de serviços —, as entidades registradoras e os depositários centrais aumentam a transparência no uso desses ativos por seus legítimos detentores.

Nesse cenário, de modo intrínseco à sua existência, promovem a segurança das transações em razão da qualidade das informações nela detidas, com vistas a impactar diretamente a credibilidade, a negociação por terceiros interessados e o custo de operações financeiras que têm os referidos bens como ativos subjacentes.

Após nove anos da publicação da Lei 12.810/2013, aguardam-se aprimoramentos no arcabouço legal das infraestruturas do mercado financeiro[31], o que indica alcançar também as suas disposições. No entanto, a sensação é cristalina quanto ao papel desempenhado pela referida legislação até hoje, confiante de que as mudanças que estão por vir seguirão abrindo novos horizontes em benefício da segurança e eficiência das transações financeiras.


[1] Artigo 26-A, II, da Lei nº 12.810/2013.

[2] Artigo 2º, da Lei nº 6.385/1976.

[3] As infraestruturas do mercado financeiro de compensação e liquidação são atualmente disciplinadas pela Lei nº 10.214/2001, a Lei do Sistema de Pagamentos Brasileiro.

[4] Segundo o Bank for International Settlements (BIS), uma entidade registradora pode ser concebida como:  “A trade repository is an entity that maintains a centralised electronic record (database) of transaction data.” Cf. COMMITTEE ON PAYMENT AND SETTLEMENT SYSTEMS. Principles for financial market infrastructures. Basel, 2012, p. 9.

[5] COMMITTEE ON PAYMENT AND SETTLEMENT SYSTEMS. Principles for financial market infrastructures. Basel, 2012, p. 09-10; 124-125.

[6] SANCHEZ, Daniela Mussolini Lorca. As infraestruturas do mercado financeiro e o novo mercado de crédito. In EROLES, Pedro. Fintechs, Bancos Digitais e Meios de Pagamento. V. 1. São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 213-217.

[7] Corrobora esse entendimento a reforma relativa ao parágrafo único, do artigo 28 da Lei nº 12.810/2013, promovida pela Lei nº 13.476/2017 ao excluir a palavra “escrituração” da definição da atividade de registro ativos financeiros e de valores mobiliários.

[8] Artigo 3º, da Lei nº 13.775/2018.

[9] Artigo 3º, §1º, da Lei nº 13.775/2018.

[10] Artigo 23, da Lei nº 12.810/2013.

[11] Segundo o BIS, em geral, um depositário central pode ser definido como: “A central securities depository provides securities accounts, central safekeeping services, and asset services, which may include the administration of corporate actions and redemptions, and plays an important role in helping to ensure the integrity of securities issues (that is, ensure that securities are not accidentally or fraudulently created or destroyed or their details changed).” Cf. COMMITTEE ON PAYMENT AND SETTLEMENT SYSTEMS. Principles for financial market infrastructures. Basel, 2012, p. 8.

[12] Artigo 24, da Lei nº 12.810/2013.

[13] BRASIL. Senado Federal. Parecer nº 08, de 2013. Da comissão mista, sobre a Medida Provisória nº 589, de 13 de novembro de 2012, posteriormente convertida na Lei nº 12.810/2013. Brasília, 2013, p. 13. Disponível em: < https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1073394&filename=Tramitacao-MPV+589/2012>. Acesso em: mai. 2022.

[14] Artigo 25, da Lei nº 12.810/2013.

[15] Artigo 4º, da Resolução CVM nº 31/2021 e artigo 3º, da Instrução CVM nº 461/2007.

[16] Esta competência foi materializada por meio da publicação da Resolução CMN nº 4.593/2017.

[17] A título exemplificativo, no âmbito dos ativos financeiros, atualmente são autorizados pelo BC onze sistemas de registro e dois sistemas de depósito centralizado. Cf. BRASIL. Banco Central do Brasil. Sistemas Autorizados pelo BC. Brasília, [s. d]. Disponível em: <https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/sistemasautorizados_spb>. Acesso em: mai. 2022.

[18] Artigo 9º, §4º, da Lei nº 12.865/2013.

[19] Podem ser mencionados como exemplos de recentes iniciativas nessa direção o registro de recebíveis de arranjos de pagamento (direitos creditórios decorrentes de transações realizadas com cartões de crédito e débito) e de recebíveis mercantis (duplicatas escriturais) – tradicionais recebíveis detidos pelo varejo.

[20] Artigo 26, §5º, da Lei nº 12.810/2013.

[21] Artigo 29, da Lei nº 12.810/2013.

[22] Artigos 23 e 28, parágrafo único, da Lei nº 12.810/2013.

[23] Artigos 23 e 28, parágrafo único, da Lei nº 12.810/2013.

[24] Artigos 25 e 28, parágrafo único, da Lei nº 12.810/2013.

[25] Artigos 24 e 25, da Lei nº 12.810/2013.

[26] Artigo 4º, da Resolução CVM nº 31/2021.

[27] Artigo 26, da Lei nº 12.810/2013.

[28] Artigos 22, I, e 28, I, da Lei nº 12.810/2013.

[29] Artigos 22, II, e 28, II, da Lei nº 12.810/2013.

[30] Artigos 26, º4º, da Lei nº 12.810/2013.

[31] A Lei das Infraestruturas do Mercado Financeiro (LIMF) integra a dimensão Competitividade da Agenda BC#. Cf. BRASIL. Banco Central do Brasil. #Competividade. Brasília, [s. d.]. Disponível em: <https://www.bcb.gov.br/acessoinformacao/bcmais_competitividade?modalAberto=competitividade_eficienciaMercado>. Acesso em: mai. 2022.