Stablecoins: promessa de estabilidade e os deveres da boa-fé contratual

JOTA.Info 2022-06-13

As criptomoedas foram criadas como uma alternativa à regulação estatal das moedas fiduciárias, sendo, num primeiro momento, apenas de interesse de libertários com profundo conhecimento do tema[1]. Com o passar do tempo, esses criptoativos se popularizaram e algumas questões e preocupações passaram a ser debatidas pelos investidores em geral, em especial a alta volatilidade desse ativo.

Como uma forma de contornar essa volatilidade, os emissores de criptomoedas desenvolveram as chamadas stablecoins, que são divididas em quatro espécies: fiat-backed, crypto-backed, commodity-backed, e algorithmic[2]. Esse gênero de criptomoeda é desenhado para ser mais estável, mantendo um valor constante em relação a outros ativos financeiros, como o dólar, o ouro ou o real[3]. Assim, por exemplo, uma stablecoin pode ser desenhada para ter paridade de 1:1 com o dólar americano, acompanhando as valorizações e desvalorizações dessa moeda fiduciária.

Ocorre que a paridade das stablecoins em relação a outros ativos pressupõe a existência de um lastro efetivo (como uma reserva de moedas fiduciárias, por exemplo) ou de mecanismos de controle algorítmico. Ou seja, no caso da paridade com o dólar em criptomoedas fiat-backed, para cada unidade de stablecoin deve haver uma unidade de dólar em reserva. É exatamente isso que promete garantir liquidez e estabilidade a esse gênero de criptomoeda.

Contudo, nada é tão simples nesse mercado. Em razão da inexistente regulação centralizada das criptomoedas, há uma grande dificuldade de “controlar” a efetiva paridade prometida pelos emissores de stablecoins. Portanto, não é tão simples atestar com total segurança que a promessa de paridade apresentada por esse tipo de criptomoeda realmente se confirma na prática.

Sobre essa questão, podemos citar o recente caso envolvendo a criptomoeda Tether (USD₮), em que foi firmado um acordo com a Procuradoria de Justiça de Nova York em razão de supostamente inexistir reserva de moeda fiduciária apta a garantir e paridade dessa moeda com o dólar americano. Nesse acordo, foram estipuladas as obrigações de pagamento de multa e de garantia de maior transparência às operações da Tether[4]. Além desse caso, há também o da TerraUSD (UST), stablecoin lastreada em mecanismos algorítmicos de paridade, que recentemente colapsou possivelmente em razão de uma corrida contra o seu emissor[5].

Como se vê, o cenário das stablecoins não é simples e fica ainda mais complexo quando as operações que as envolvem são analisadas sob a perspectiva do direito civil, em especial da boa-fé contratual, prevista no art. 422 do Código Civil. Isso porque, para parte da doutrina e da jurisprudência, da boa-fé contratual decorre o princípio da transparência (dever de informação e de veracidade) entre as partes contratantes, aplicável mesmo às relações jurídicas que não são tipicamente de consumo.

Esse entendimento pode abrir margem para extensas discussões (inclusive no âmbito judicial) sobre o nível do dever de transparência a que estão submetidos os emissores de stablecoins. Tais discussões podem estar voltadas, por exemplo, à obrigação de comprovar a efetiva existência de lastro para as moedas emitidas e de esclarecer os mecanismos algorítmicos de garantia de paridade.

Dessa forma, as obrigações contratuais derivadas da boa-fé objetiva podem vir a ser utilizadas para fundamentar pedidos de detalhamento das reservas de moedas fiduciárias mantidas por emissores de stablecoins ou de fornecimento de maiores informações sobre os mecanismos algorítmicos utilizados para promover a estabilidade dessas criptomoedas. Contudo, em muitos casos, a divulgação dessas informações pode impactar sobremaneira as operações dos seus respetivos emissores, trazendo desvantagens competitivas. Uma hipertrofia do dever de informar[6] pode ser prejudicial ao mercado como um todo.

Por isso, é importante que os atores do mercado de criptomoedas (inclusive as exchanges) estejam atentos a esses riscos, adotando posturas para mitigá-los. Um bom exemplo disso é a divulgação periódica de relatórios de atestado, devidamente auditados por instituições independentes. O pior cenário é o de uma insegurança generalizada quanto à estabilidade das stablecoins, ocasionando uma judicialização desenfreada do tema, com alto potencial de impactar significativamente todas as operações desse mercado. Tal risco se torna maior à medida que as stablecoins passam a ser uma realidade cada vez mais comum[7][8].


[1] SALOMÃO NETO, Eduardo. As atividades ‘bancárias’ das empresas de criptoativos. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/empresas-criptoativos-atividades-bancarias-25012022. Acesso em 29 abr. 2022.

[2] Cryptopedia. What Are Stablecoins?. Disponível em: https://www.gemini.com/cryptopedia/what-are-stablecoins-how-do-they-work. Acesso em 10 mai. 2022.

[3] Instituto Propague. Stablecoins: solução cripto para pagamentos digitais mais eficientes. Disponível em: https://institutopropague.org/podcasts/stablecoins-solucao-cripto-para-pagamentos-digitais-mais-eficientes/. Acesso em 29 abr. 2022.

[4] NY Attorney General. Attorney General James Ends Virtual Currency Trading Platform Bitfinex’s Illegal Activities in New York. Disponível em: https://ag.ny.gov/press-release/2021/attorney-general-james-ends-virtual-currency-trading-platform-bitfinexs-illegal. Acesso em 27 mai. 2022.

[5] CoinDesk. The Collapse of UST and LUNA Was Devastating, but There Is Still Hope for Crypto. Disponível em: https://www.coindesk.com/markets/2022/05/15/the-collapse-of-terra-was-devastating-but-there-is-still-hope-for-crypto/. Acesso em 27 mai. 2022.

[6] DA GUIA SILVA, R. TEPEDINO, G. Dever de informar e ônus de informar: a boa-fé objetiva como via de mão dupla. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/328590/dever-de-informar-e-onus-de-se-informar–a-boa-fe-objetiva-como-via-de-mao-dupla. Acesso em 28 mai. 2022.

[7] JDSUPRA. UK To Bring Stablecoins Used for Payments Under Regulation. Disponível em: https://www.jdsupra.com/legalnews/uk-to-bring-stablecoins-used-for-5787131/. Acesso em 28 mai. 2022.

[8] AgênciaCMA. BC avalia emissão de stablecoins sobre depósitos bancários. Disponível em: https://www.agenciacma.com.br/bc-avalia-emissao-de-stablecoins-sobre-depositos-bancarios/. Acesso em 28 mais. 2022.