Diário de bordo da interoperabilidade entre registradoras
JOTA.Info 2022-06-14
Art. 26. A constituição de gravames e ônus, inclusive para fins de publicidade e eficácia perante terceiros, sobre ativos financeiros e valores mobiliários objeto de registro ou de depósito centralizado será realizada, exclusivamente, nas entidades registradoras ou nos depositários centrais em que os ativos financeiros e valores mobiliários estejam registrados ou depositados, independentemente da natureza do negócio jurídico a que digam respeito. Lei 12.810, de 15 de maio de 2013
Corria o ano de 2017. Era o início do projeto de registro de recebíveis de cartão no Brasil. Hoje é raro, mas, à época, era comum nos reunirmos quase que semanalmente no regime presencial, na sede do Banco Central em Brasília, para compartilhar ideias com o regulador sobre o que seriam as tais “entidades registradoras” mencionadas na Lei 12.810/2013.
Me recordo que, certa vez, em uma destas reuniões, perguntamos aos representantes do DENOR (Departamento de Regulação do Sistema Financeiro) ali presentes se a infraestrutura de registro de recebíveis de cartão seria provida pelo próprio Banco Central ou se entes privados poderiam prestar esse serviço. A resposta foi que seria provido por entes privados. Questionamos então quantas infraestruturas de mercado desempenhariam essa função.
Os representantes ali presentes nos disseram que seriam tantas quantas tivessem interesse em fazê-lo. Foi naquele momento que entendemos que surgiria um conceito chamado tempos depois de “interoperabilidade”, o que nos parecia um mar ainda não navegado, pelo menos não no Brasil. Em um Brasil que vivia um cenário histórico no qual infraestrutura de mercado era sinônimo de um único prestador de serviço por atividade – a exemplo da compensação de cheques realizada unicamente pelo Compe do Banco do Brasil, da custódia de títulos públicos e depósito de ações unicamente na B3 e a liquidação de recebíveis de cartão exclusivamente no SLC da CIP –, a interoperabilidade foi concebida como um mecanismo inovador e audacioso.
Intrigados com aquela conversa, realizamos então um levantamento de cases internacionais de entidades de registro para identificar se encontrávamos um benchmark para aquela realidade de ecossistema de infraestruturas de mercado concorrentes coexistindo em simbiose[1]. Em nossa pesquisa encontramos registradoras em diversos países, porém todas utilizando-se de um sistema único operado por um governo central. A título de exemplo, temos a Personal Property Securities Register (PPSR) na Austrália, instituída antes de 2009. A PPSR é a única registradora australiana em que direitos reais de garantia podem ser registrados e consultados, independentemente da forma, da localização ou da natureza do outorgante ou a localização ou natureza do colateral[2]. É uma ferramenta para controle de risco de crédito.
A Nova Zelândia possui um sistema extremamente parecido com o australiano, tendo a sua própria PPSR, instituída pelo New Zealand Personal Property Securities Act de 1999. A PPSR neozelandesa entrou em operação em 1° de maio de 2002 para centralizar os registros do país. Identificamos ainda uma PPSR no Maláui. Antes de fevereiro de 2016, quando a PPSR do Maláui entrou em operação, muitos bancos no país africano exigiam terrenos e construções como colateral de empréstimos, limitando o crescimento de pequenos e médios negócios (SMEs) que não conseguiam se capitalizar. A PPSR do Maláui é operada pelo Department of Registrar General (DRG), órgão do governo da República do Maláui. A PPSR do Maláui foi inspirada na PPSR da Nova Zelândia e no guia legislativo das Nações Unidas UNCITRAL e permite o registro de quaisquer propriedades móveis (veículos automotores, maquinário, cultivo, contas a receber e ativos vivos). A Colômbia e o México também apresentam estruturas de registro similares às demais.
Apesar de não termos encontrado casos práticos de inúmeras infraestruturas de mercado prestando o mesmo serviço, a realidade era que as entidades registradoras de cartões começavam a surgir, iniciando os seus processos de autorização para funcionamento junto ao Banco Central, e o seu motivo de existência podia ser visto em muitos dos pilares da agenda do Banco Central em 2018, a chamada “Agenda BC+”:
MAIS CIDADANIA FINANCEIRA – Aumentar a inclusão financeira da população e melhorar a comunicação e transparência entre instituições financeiras e seus clientes
LEGISLAÇÃO MAIS MODERNA – Proporcionar uma maior segurança jurídica às atribuições do Banco Central
SFN MAIS EFICIENTE – Manter a adequação, o alinhamento e a convergência a padrões internacionais e reduzir o custo de observância
CRÉDITO MAIS BARATO – Diminuir o custo de crédito para o tomador final e aumentar a competitividade e a flexibilidade na concessão de crédito[3]
Diante do crescente pedido de autorização de registradoras à época, o embrião da interoperabilidade, na prática, nasceu com a obrigação de asseguração da unicidade constante da Circular BCB nº 3.912, de 5 de setembro de 2018:
Art. 15-A. A constituição, alteração e desconstituição de ônus e gravames sobre ativos financeiros registrados somente pode ser realizada pela entidade registradora na qual os ativos financeiros estejam registrados, que deve adotar procedimentos voltados a:
I – assegurar a unicidade e a continuidade das informações de ônus e gravames constituídos sobre ativos financeiros; [grifo nosso][…]
E em 2019 esse conceito inédito de pioneirismo brasileiro se tornou norma ipsis litteris na forma do Art. 11 da Circular BCB nº 3.952, de 27 de junho de 2019 (“Circ. 3.952”):
Art. 11. Os sistemas de registro, por meio de regras, procedimentos e tecnologias compatíveis entre si, devem adotar mecanismos de interoperabilidade que possibilitem: I – a verificação da unicidade do registro de recebíveis de arranjo de pagamento; II – a troca das informações sobre as agendas de recebíveis necessárias para o cumprimento de suas obrigações perante os participantes; III – a troca das informações sobre os contratos de negociação de recebíveis de arranjo de pagamento necessárias para o cumprimento de suas obrigações perante os participantes; IV – a portabilidade do registro das agendas de recebíveis entre sistemas de registro; e V – a troca das demais informações necessárias para o cumprimento de suas obrigações perante os participantes, a serem estabelecidas na convenção de que trata o Capítulo V desta Circular. [grifo nosso][…]
A extraordinariedade desse conceito veio acompanhada ainda de um tipo de regramento vanguardista: a autorregulação. Na mesma Circular 3.952, em seu art. 13, o regulador imputou às próprias entidades registradoras a incumbência de estabelecer as regras afetas à interoperabilidade:
Art. 13. Para fins de realização do registro de recebíveis de arranjo de pagamento, as entidades autorizadas a realizar a atividade de registro de ativos financeiros ou que se encontrem em processo de autorização na data de publicação desta Circular deverão convencionar entre si os seguintes aspectos relativos ao registro, bem como à utilização desses recebíveis em operações de negociação, entre outros aspectos julgados necessários ao cumprimento do disposto na legislação e na regulamentação: I – os procedimentos operacionais para possibilitar: c) a prestação dos serviços de interoperabilidade entre os sistemas de registro mencionados no art. 11; [grifo nosso][…]
A “Exposição de Motivos” da Circular 3.952 deixa evidente a intenção do regulador ao criar a interoperabilidade, abrindo a possibilidade de, por meio de uma única registradora, poder o participante consultar recebíveis registrados em qualquer outra registradora do ecossistema:
A norma também estabelece diversos comandos de interoperabilidade entre sistemas de registro que, em última instância, deverão permitir aos agentes financiadores e às instituições credenciadoras e subcredenciadores operarem a partir de um único sistema de registro e, ainda assim, terem acesso, quando necessário, a recebíveis registrados em outros sistemas. Essa interoperabilidade deve permitir: – a unicidade do registro da agenda de recebíveis; II – a troca de informações sobre as agendas de recebíveis; Ill – a troca de informações sobre os contratos de negociação com recebíveis; IV – a troca de informações sobre as solicitações de registro pelos usuários; e V – a portabilidade do registro dos recebíveis.
Foi neste instante que aquele sonho se provou um enorme desafio. A coexistência de interesses opostos e tecnologias distintas era a realidade entre as três concorrentes[4] que buscavam formar a autorregulação da “Convenção entre entidades registradoras – Recebíveis de Arranjos de Pagamento” (Convenção). E após aproximadamente dois anos de trabalho, no dia 7 de junho de 2021 a interoperabilidade entrou em operação, por força da entrada em vigor da Circular 3.952[5].
Diante da complexidade de múltiplos sistemas de infraestruturas de mercado financeiro convivendo, o início encontrou um sem-número de barreiras. Na semana entre os dias 11 e 15 de outubro de 2021, a interoperabilidade chegou a atingir o marco de 15% fora do Service Level Agreement (SLA) contratado entre registradoras para contratos[6], impedindo, assim, o tráfego destes – o comportamento funcional esperado é cancelamento caso a resposta do sistema de outra registradora não seja tempestiva.
Em maio de 2022, ainda que com quatro[7] entidades registradoras signatárias da Convenção, vê-se muito mais maturidade de governança e sistemas. Desde janeiro até abril de 2022 a interoperabilidade apresentou índices iguais ou menores a 1% [8] fora do referido SLA contratado entre registradoras para fins de contratos[9]. Logo, vê-se um cenário muito diferente do percebido em outubro de 2021, apontando claramente para um quadro de estabilização.
Neste mar nunca antes navegado, sabemos que cada marinheiro assumiu sua posição no barco novo e veremos no futuro para quais águas o barco nos conduzirá. Mas uma coisa é certa: as registradoras, às quais foi incumbido o espírito do pioneirismo brasileiro, seguirão trabalhando para que o leme esteja apontado para um futuro próspero para o Brasil e para os brasileiros, em que as raízes da Agenda BC+, que hoje vemos na Agenda BC#, se realizem e, assim, o acesso ao crédito se reverta em investimentos que efetivamente impulsionem o crescimento da economia verde-amarela.
[1] “Associação mutuamente benéfica entre seres vivos.” https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/simbiose/
[2] Podem ser: (a) propriedades tangíveis – veículo automotor; embarcações; aeronaves; agricultura; outros ativos…; (b) propriedades gerais – qualquer propriedade que o outorgante tenha uma garantia no momento do registro, assim como uma propriedade adquirida pelo outorgante após o registro; (c) propriedades intangíveis – propriedade intelectual; conta em banco…; e (d) propriedades financeiras – câmbio; investimento; documento que evidencie obrigação monetária; contrato de depósito….
[3] Citação à Agenda BC+ editada pelo Banco Central do Brasil em versão adaptada pela DLP Capital em 2018.
[4] À época TAG Tecnologia para o Sistema Financeiro S.A., CERC Central de Recebíveis S.A e Câmara Interbancária de Pagamentos (CIP).
[5] Art. 17, II, conforme alterado pela Resolução BCB nº 72, de 12/2/2021.
[6] Dados históricos apresentados por TAG TECNOLOGIA PARA O SISTEMA FINANCEIRO S.A., CERC CENTRAL DE RECEBIVEIS S.A, CIP S.A. e B3 S.A. – BRASIL, BOLSA, BALCÃO para associações de mercado em reunião realizada em 09 de maio de 2022.
[7] TAG TECNOLOGIA PARA O SISTEMA FINANCEIRO S.A., CERC CENTRAL DE RECEBIVEIS S.A, CIP S.A. e B3 S.A. – BRASIL, BOLSA, BALCÃO.
[8] Exceto na semana entre os dias 25 e 29 de abril de 2022 que apresentou um comportamento atípico de 5% (cinco por cento).
[9] Dados históricos apresentados por TAG TECNOLOGIA PARA O SISTEMA FINANCEIRO S.A., CERC CENTRAL DE RECEBIVEIS S.A, CIP S.A. e B3 S.A. – BRASIL, BOLSA, BALCÃO para associações de mercado em reunião realizada em 09 de maio de 2022.