Limites da responsabilidade penal por omissão imprópria – parte 2

JOTA.Info 2022-07-14

Introdução[1]

Em texto anterior[2], apresentei os fundamentos pelos quais o acionista controlador de sociedades anônimas (AC) pode ocupar posição de garante, nos termos do art. 13, §2º, do Código Penal. Em síntese, os poderes de orientação da administração e direção dos negócios sociais são aptos a configurar a posição de garante, pois têm a capacidade de materializar as determinações do AC em atos organizacionais da empresa. Assim, nos casos em que efetivamente exerça tais poderes, especificamente determinando aos membros da administração como devem proceder com relação aos atos de representação, gestão e organização da companhia, assumirá o controle sobre a fonte de perigo “empresa”, ocupando posição de garante. Embora esse seja um pressuposto necessário da responsabilidade penal omissiva imprópria, não é suficiente.

Neste artigo, definirei o conteúdo concreto do dever de agir (possibilidade jurídica) do AC, bem como seu âmbito de vigilância, respondendo às seguintes perguntas: (i) qual conduta é esperada do AC em caso de iminência ou continuidade do cometimento de crime no contexto da empresa submetida ao seu controle? (ii) Quais situações acionam seu dever de agir e quais sujeitos deve vigiar?

Conteúdo concreto do dever de agir do acionista controlador

O conteúdo concreto do dever de agir[3] relaciona-se com a definição da conduta a que está juridicamente obrigado o garante, sobre o qual não recai um  dever genérico e incondicional de impedir a ocorrência de resultado típicos. O dever especial de agir consiste na realização de medidas que lhe sejam possíveis (condutas devidas e esperadas, ou seja, uma prestação positiva indicada ex ante) para evitar ocorrência de resultados típicos específicos. Assim, uma vez que realize a conduta a que está juridicamente obrigado, o garantidor terá cumprido a determinação legal e nada terá omitido.

Portanto, a identificação do conteúdo concreto do dever de agir do AC se delimita a partir de suas possibilidade jurídicas de agir, isto é, do feixe de atribuições, poderes e competências estabelecidos na regulamentação e normativa aplicável e respectiva assunção fática[4]. Ou seja, se não detém poderes para demitir empregados, esta não pode ser uma conduta exigida, pois não é uma possibilidade jurídica a ele disponível; por outro lado, se possui poderes para destituir determinados membros da administração, esta conduta é juridicamente possível e poderá lhe ser exigida, conforme seja a situação concreta.

Identificadas suas possibilidades jurídicas, o conteúdo do dever de agir será definido considerando o tipo penal objeto do juízo de adequação típica, pois a responsabilidade por omissão imprópria está condicionada à conduta típica a que se relaciona.

Por ser impossível tratar de todas as potenciais situações típicas que podem se configurar dentro do contexto empresarial, neste artigo buscarei identificar as possibilidade jurídicas do AC[5], partindo das seguintes situações hipotéticas:

  1. o AC de sociedade anônima sob administração unitária recebeu do setor de compliance relatório com diversas evidências de que determinado diretor por ele nomeado estaria prestes a oferecer vantagem indevida para agente público, no intuito de obter contrato em benefício da empresa.
  2. o AC é informado pelo presidente do conselho de administração (sociedade anônima sob administração dual) que o órgão irá deliberar a respeito de orçamento extraordinário requerido pela diretoria de segurança, visando a realização de serviços de reparo na barragem de rejeitos minerais detida pela empresa controlada. Conforme parecer técnico apresentado, tais reparos seriam emergenciais e essenciais à manutenção dos padrões de segurança, sob pena de ruptura da barragem que fica próxima à comunidade ribeirinha. O presidente do conselho reportou, ainda, que receava não ser possível o atingimento do quórum necessária à aprovação do orçamento, pois um dos conselheiros eleitos pelo AC ponderara a perda financeira decorrente da suspensão das atividades da barragem para realização dos serviços de manutenção.

De acordo com a LSA, o acionista controlador possui poderes de (i) nomeação e destituição da maioria dos membros da administração; (ii) orientação dos administradores que elegeu; (iii) direção dos negócios sociais; e (iv) preponderância sobre as deliberações assembleares (LSA artigo 116, “a” e “b”). Os poderes de destituição de administradores e de orientação dos órgãos da companhia representam capacidades de intervenção aptas a, conforme situação concreta, evitar resultados típicos.

A possibilidade de destituir administradores permite ao AC que, tomando conhecimento da iminência ou continuidade do cometimento de crime por diretor ou conselheiro que tenha elegido — como exemplificado na situação hipotética 1 —, instale reunião assemblear e delibere pela destituição do referido administrador. É certo que nos casos de empresas sob administração dual, tal poder recairá sobres os conselheiros que tenham sido eleitos pelo AC, sendo que em empresas sob administração unitária, diretamente sobre os diretores que elegeu[6].

Vale esclarecer: nos casos de empresas que sigam fielmente as disposições da LSA, o AC possuirá preponderância sobre a assembleia de acionistas em todas as matérias (artigo 116, “a”, da LSA). Desse modo, poderá instalar extraordinariamente reunião do órgão (artigo 125 da LSA) e definir os rumos da deliberação pela destituição do administrador que elegeu. Não há maiores dificuldades, portanto, para afirmar que a capacidade de destituir membros da administração seja considerada um poder de intervenção potencialmente capaz de evitar situações típicas.

Além de destituir administradores, é possível imaginar situações em que o dever de agir do AC esteja relacionado ao exercício do poder de orientação dos administradores. Por essa capacidade, o AC pode efetivamente determinar aos administradores como proceder ou deliberar a respeito de suas atribuições. Considerando que o conselho é órgão que, como regra, delibera por maioria de votos (artigo 140, IV, da LSA) e que a maioria dos seus membros são eleitos pelo AC (artigo 116, “a”, da LSA), bastará ao AC que oriente os conselheiros que elegeu para que votem pela aprovação do orçamento, que o resultado da deliberação será conforme sua determinação.

Portanto, em situações essa, quando o AC detém poderes suficientes para determinar o resultado de deliberação do conselho de administração (por meio da orientação dos conselheiros integrantes do órgão), essa capacidade expressa uma possibilidade jurídica apta a evitar resultados típicos.

Também nos casos de empresas sob administração unitária (quando a administração é exercida apenas pela diretoria) é possível visualizar situações em que o poder de orientar diretores se configure em uma possibilidade jurídica apta à evitação de situações típicas. Por exemplo, ao determinar diretor que elegeu para que não celebre contrato em específico, sabidamente  fraudulento.

Dessa forma, compreendem o conteúdo concreto do dever de agir do AC os poderes de destituição e a orientação dos membros de administração da empresa, por potencialmente capazes de evitar resultados típicos.

Âmbito de vigilância: ilícitos que ensejam o dever de agir e sujeitos que o AC deve vigiar

O âmbito de vigilância diz respeito à definição das situações (condutas ilícitas) que ensejam o dever de agir do garantidor e dos sujeitos que estão sob sua vigilância.

Quanto às situações que ensejam seu dever de agir, uma vez que a posição de garante do AC decorre do controle que exerce sobre a fonte de perigo “empresa”, serão os crimes decorrentes da expressão da atividade empresarial (do exercício da atividade e de seus processos) que estarão dentro do seu espectro de vigilância[8]; estando excluídos de sua vigilância eventuais delitos que se refiram exclusivamente à vida privada dos membros da empresa.

Será hipótese que pode ensejar o dever de agir do AC quando este toma conhecimento que determinado administrador está na iminência de oferecer vantagem indevida para agente público no intuito de obter contrato em benefício da empresa controlada. Por outro lado, não está em seu âmbito de vigilância situação em saiba que o administrador, em férias, pretende oferecer vantagem indevida a agente público para que permita a passagem de seu veículo particular em determinada rodovia, não obstante esteja com o licenciamento pendente de pagamento. Portanto, conquanto se trate de situações relacionadas ao crime de corrupção por administrador da empresa, o primeiro caso se refere ao exercício da atividade empresarial — e, portanto, está potencialmente inserido no âmbito de vigilância do AC —, enquanto o segundo se refere exclusivamente à esfera da vida privada do administrador, razão pela qual está fora da vigilância do AC.

Resta-nos, agora, definir os sujeitos que o AC deve vigiar. Para tanto, imprescindível identificarmos o alcance de seus poderes.

No artigo anterior[9], vimos que os poderes de controle do AC aptos a fundamentar sua posição de garantidor estão relacionados à capacidade de determinar aos membros da administração como proceder com relação às suas atribuições, de modo tal que suas orientações se materializem em atos organizacionais. Nos casos de empresas sob administração dual, tais poderes recaem sobre os conselheiros que tenha elegido, não atingindo diretamente à diretoria e demais empregados da empresa; por outro lado, em empresas sob administração unitária, os poderes atingem os diretores que elegeu, não alcançando diretamente os empregados e outros diretores da companhia.

Dito isso, é possível concluir que, nos casos de empresas sob administração dual, estarão inseridos no âmbito de vigilância do AC os conselheiros que tenha elegido (não englobando outros membros da companhia, tais como diretores e empregados, pois fora do alcance de seus poderes de controle). Em empresas sob administração unitária, deverá vigiar os diretores por ele eleitos, não possuindo deveres de garante com relação a empregados e diretores eleitos por terceiros ou acionistas minoritários.

Vale esclarecer ainda que ao orientar os administradores por ele nomeados, o AC não avoca as competências de tal administrador, que permanece realizando, pessoal e diretamente, as atribuições que lhe cabem — ainda que nos termos daquilo que orientou o AC. Por isso, da posição de garantidor do AC não decorre qualquer exoneração ou redução dos deveres de vigilância a que estão obrigados os administradores da companhia, de modo que os diretores devem vigiar seus subordinados, enquanto os membros do conselho de administração devem vigiar a diretoria da empresa.

Em síntese, estão sob o âmbito de vigilância do AC as condutas ilícitas relacionadas ao exercício da atividade empresarial e seus processos conforme sejam realizadas (eminência ou continuidade) por administradores que elegeu.

Síntese

O poder de interferir na administração da sociedade é capacidade apta a fundamentar o controle sobre a fonte de perigo “empresa” e a posição de garantidor do acionista controlador de sociedade anônima, uma vez que a orientação aos administradores da companhia se materialize em atos organizacionais.

Estarão inseridos no âmbito de vigilância do AC os ilícitos penais que resultem da atividade empresarial (do exercício da atividade e de seus processos), desde que realizados (eminência ou continuidade) por administradores por ele eleito, tendo em vista que alcançados diretamente pelas suas capacidades de controle.

Portanto, terá deveres de vigilância com relação (i) aos conselheiros que eleger, em casos de empresas sob administração dual (excluídos os diretores e os empregados da empresas); (ii)  aos diretores por ele eleitos, em empresas sob administração unitária (excluídos outros diretores e os empregados da empresa).

O conteúdo do seu dever de agir dependerá necessariamente dos contornos da situação concreta, sendo que entre as possibilidade jurídicas estão a destituição do administrador que tenha elegido ou orientação do administrador para que realize ou abstenha de realizar determinada conduta.


[1]  Este artigo é produto da dissertação apresentada para obtenção do título de mestre em Direito Penal Econômico pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas – Direito SP, publicada pela Marcial Pons (SIQUEIRA, Joana. Limites da responsabilidade penal por omissão imprópria de acionistas controladores. São Paulo: Marcial Pons, 2022).

[2]Cf. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/penal-em-foco/limites-da-responsabilidade-penal-por-omissao-impropria-03032022

[3]  O conteúdo concreto do dever de agir não se confunde com a possibilidade físico-real de realizar tal conduta diante da situação concreta. Portanto, será preciso averiguar se o garante detinha possibilidade física de praticar a conduta que era devida. Exemplificativamente, caso diante da situação concreta, o garante deixe de realizar a conduta devida porque estava em coma, não será o caso de responsabilização por omissão imprópria.

[4]  Há uma “acessoriedade do direito penal”, mesmo que parcial, com relação às normas extrapenais, na medida em que a possibilidade jurídica de agir, dos garantidores, será aferida concretamente, “a partir da estruturação e regulação da empresa”, conforme haja assunção fática das atribuições e competências fixadas em tal regulação. Cf. ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresas por omissão: estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. p. 251.

[5]  Para fins deste trabalho, consideraremos uma empresa que siga fielmente a norma. É imprescindível que, diante da situação concreta, se verifique efetivamente os poderes que de fato possuí e exerce o acionista controlador.

[6]  Diz-se administração dual quando a administração da empresa é exercida pela diretoria e pelo conselho de administração. A administração é unitária quando exercida apenas pela diretoria.

[7] Para mais detalhes, cf. SIQUEIRA, Joana. Limites da responsabilidade penal por omissão imprópria de acionistas controladores. São Paulo: Marcial Pons, 2022, p. 55 – 62.

[8]  Este é o entendimento dominante para delimitar o âmbito de vigilância dos administradores de empresa, cf. GRECO, Luís; ASSIS, Augusto. O que significa a teoria do domínio do fato para criminalidade de empresa. In: GRECO, Luís et al. Autoria como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. São Paulo: Marcial Pons, 2014. p. 109.

[9]  Este é o entendimento dominante para delimitar o âmbito de vigilância dos administradores de empresa, cf. GRECO, Luís; ASSIS, Augusto. O que significa a teoria do domínio do fato para criminalidade de empresa. In: GRECO, Luís et al. Autoria como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. São Paulo: Marcial Pons, 2014. p. 109.