Uma defesa do centenário Carf
JOTA.Info 2022-08-08
O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) é o órgão administrativo de julgamento a quem compete apreciar recursos interpostos no âmbito do processo administrativo tributário federal. Esse órgão recebeu a árdua missão de solucionar conflitos de interesses em seara marcada por inegável tensão entre o cidadão e o Estado: o exercício do poder de tributar.
O quase centenário Carf, criado na longínqua década de 1920, possui composição e técnica de julgamento peculiares na comparação com os demais órgãos julgadores administrativos, eis que é órgão paritário. Isso significa dizer, por óbvio, que há número par de julgadores, sendo a paridade alcançada por diferentes métodos de indicação.
A prerrogativa de designar os conselheiros é do ministro da Economia, que, por sua vez, tem sua escolha limitada por listas tríplices a ele submetidas. Nos termos do art. 28, do Anexo II, do regimento interno do Carf, haverá conselheiros representantes das duas partes litigantes do contencioso administrativo tributário: fisco e contribuinte.
A escolha de conselheiro representante da Fazenda Nacional recairá sobre os candidatos indicados em lista tríplice encaminhada pela Receita Federal do Brasil (RFB), e a seleção de conselheiro representante dos contribuintes recairá sobre os candidatos indicados em lista tríplice elaborada pelas confederações representativas de categorias econômicas e pelas centrais sindicais.
Na medida em que há número par de julgadores, a possibilidade de empate nas deliberações do órgão sempre estará presente. Essa circunstância exige a prévia determinação do critério de desempate, que historicamente se deu por meio do então chamado “voto de qualidade”, isto é, a prerrogativa detida exclusivamente por julgador oriundo dos quadros da Receita Federal em fazer com que seu voto prevalecesse diante do empate ocorrido.
O voto de qualidade sempre provocou intensa controvérsia na comunidade jurídica brasileira. A partir da edição da Lei 13.988/2020, a qual determinou que os empates se resolveriam sempre em favor do contribuinte, os debates se inflamaram novamente, agora com polos invertidos.
É nesse contexto que nobres colegas publicaram neste veículo especializado o artigo intitulado “Conflito de interesses na história e no futuro do Carf”.
Em que pese o artigo em questão tomar como ponto de partida a polêmica inaugurada pela Lei 13.988/2020, o texto veicula crítica mais profunda e intensa, que atinge não apenas a técnica de desempate no julgamento, mas a própria paridade do tribunal administrativo, inclusive a forma de indicação dos seus membros.
A eloquente crítica tangenciou pontos nevrálgicos do contencioso administrativo tributário, inclusive — e especialmente — sua natureza jurídica. Além disso, apresentou abordagem histórica e sociológica a respeito da origem do Carf e sua distribuição de poder, em que se adotou argumentação até mesmo numa perspectiva de direito comparado.
A argumentação central desenvolvida em referido artigo é a de que a “revisão administrativa, como deixa claro o sentido literal do termo, é (ou deveria ser) atividade exclusiva da administração fiscal.”
A crítica, por sua vez, se fundamenta em releitura histórica que conclui que o modelo do Carf seria “nada republicano” e resultaria da “inquietude das elites econômicas com a criação do Imposto de Renda em 1922”, razão pela qual, no entender dos autores, “a ideia subjacente já era limitar os efeitos das fiscalizações sobre grandes contribuintes.”.
Evidência disso seria o fato de que os primeiros conselheiros do Carf (criado, como dito acima, durante a República Velha) eram homens da elite da sociedade brasileira, que detiveram posições de destaque no Império e na recém-fundada República, bem como relações próximas com as entidades comerciais do país. Em adição, foi dito que “em nenhum país do mundo metade dos julgadores são indicados por confederações empresariais”, tendo sido defendida a tese de que o Brasil dever seguir “políticas de revisão administrativa do lançamento tributário que existem nos países que respeitam suas instituições e o republicanismo”.
Com o intuito de contrapor a argumentação acima exposta, é preciso, em primeiro lugar, esclarecer que inexiste o conflito de interesses que o artigo em questão faz crer. Com efeito, número absolutamente relevante de processos julgados no Carf são decididos por unanimidade ou maioria.
Mais que isso, quando ainda vigente o voto de qualidade, o conselheiro representante da Fazenda desempatou em favor do contribuinte inúmeros casos, o que demonstra ser caricata a imagem de um tribunal onde ausentes verdadeiros debates sobre o mérito por julgadores imparciais[1]. Havia, é claro, divergências naturais entre os conselheiros quanto aos chamados casos difíceis, o que nada macula a honestidade intelectual com que os votos eram — e continuam a ser — proferidos pelos conselheiros investidos na função de julgadores do Carf.
Dito isso, é essencial iluminar a natureza da atividade exercida pelo Carf. O que fazem os julgadores desse tribunal administrativo não é a mera revisão administrativa, assim entendida como o exercício puro da autotutela, mas verdadeira jurisdição atípica, com teor de definitividade conferido pela legislação federal nas hipóteses em que o lançamento é cancelado em última instância.
Ao exercer as suas atividades, o Carf substitui a vontade das partes nos limites da lide que é chamado a resolver, em decorrência direta da imposição constitucional veiculada pelo art. 5º, inciso LIV da Constituição Federal[2], já que a constituição do crédito tributário autoriza a adoção de medidas com vistas à expropriação de bens do contribuinte, sendo dispensado o processo judicial de conhecimento.
O modelo adotado pelo Carf não diverge tanto daquilo que pode ocorrer (e ocorre) em turmas dos tribunais regionais federais do país. De fato, há casos em que tanto advogados privados, como procuradores da Fazenda Nacional, foram alçados a desembargadores por meio do quinto constitucional, com atuação em turmas especializadas em Direito Tributário.
Não se pode presumir que essa circunstância dá azo à “corrupção legalizada”, como argumentaram os autores, nem que esses julgadores serão leais aos seus antigos ofícios de forma a corromper sua nova função. Ao contrário, levarão pluralidade de experiências, valores e formações ao judiciário.
Também a história de criação do Carf deve ser lida com absoluta cautela, pois é sempre necessário observar o contexto para que não se cometa o pecado do anacronismo.
O conselho foi fundado, como bem lembrado no citado artigo, no ano de 1924, e tem relação direta com a instituição do Imposto de Renda no Brasil. É preciso ter em mente que o Brasil estava sob estado de sítio naquele momento, e que, por esse motivo, as garantias constitucionais estavam suspensas. Tratou-se de mandato muitíssimo beligerante, em que se chegou ao ponto de bombardear São Paulo por ocasião do conflito tenentista.
Classificar a pretensão arrecadatória de um governo nessas condições como moral e adequada, bem como chamar de “privilégios” as tentativas da sociedade civil de interpor, frente a essa pretensão, garantias como as de um tribunal administrativo, é ignorar a maneira como se estruturava o Estado naquele período.
Com efeito, a título de comparação, mesmo a democracia norte-americana, bem mais pacificada que a brasileira naquele período, viu nascer, no mesmo ano de 1924, órgão irmão ao Carf, como resposta precisamente à criação do imposto de renda naquele país.
Em 1924, o Congresso americano atendeu pleito que vinha sendo feito ao menos desde 1920 pela United States Chamber of Commerce. À época dos debates legislativos, o secretário da Receita americana desejava ter o poder de, sozinho, nomear os membros do vindouro Board of Tax Appeals. Esse poder, contudo, lhe foi rejeitado, e o Congresso estipulou que o presidente da República indicaria — e o Senado confirmaria — essas indicações (ou não) mediante votação, modelo de seleção para funções públicas muito popular naquele país.
O presidente sancionou a lei lamentando o fato de que seu projeto original, pensado como mera revisão administrativa, acabou criando uma verdadeira corte de julgamento, ante as emendas legislativas que garantiram o devido processo legal e alguma independência do órgão em relação à Secretaria do Tesouro.
À época, também lá se debateu se ex-integrantes do fisco americano poderiam compor esse órgão. Alguns parlamentares temiam que isso traria viés contrário ao sujeito passivo. De modo a obter consenso, o presidente Coolidge se comprometeu a escolher, dos 12 primeiros membros do órgão, cinco ex-integrantes do IRS, e sete sem relação com o fisco.[3]
A análise do currículo dos atuais judges da referida Tax Court[4] permite observar a grande pluralidade da vida profissional dos seus integrantes. Muitos trabalhavam — quando recrutados para a função — no órgão de representação judicial do fisco federal, e outros eram essencialmente advogados de contribuintes, militantes nas comissões tributárias das ordens estaduais dos advogados americanos.
Ainda sob uma perspectiva de direito comparado, também é interessante analisar o caso português. Muito embora aquele país tenha modelo de jurisdição diverso do brasileiro, instituiu-se por lá a arbitragem tributária.
Nesse formato, o contribuinte tem a prerrogativa de escolher um dos três árbitros que irá compor o órgão de julgamento. O fisco escolherá o segundo, e em seguida os dois árbitros escolhidos devem escolher, em conjunto, um terceiro árbitro numa lista pré-aprovada pelo centro de arbitragem (que pode ser oriundo da advocacia ou da magistratura).
Percebe-se que o modelo brasileiro não é verdadeiramente isolado em uma comparação com outras jurisdições, sendo adequado à realidade brasileira. Ainda que a afirmativa formulada pelos citados autores fosse tomada por verdadeira, ela nada revela acerca da qualidade e lisura do processo decisório adotado no Carf.
Por fim, cabe lembrar que o interesse público não se confunde com o mero interesse arrecadatório estatal. Em realidade, sendo a vontade do Estado manifestada na lei, o interesse público será aquele veiculado pelas normas integrantes do sistema jurídico respectivo. Tendo o legislador optado por um mecanismo específico de desempate, ele deve ser respeitado, especialmente quando inexiste qualquer evidência de que o bem comum seria mais adequadamente tutelado pelo mecanismo anterior.
É preciso, assim, respeitar os desígnios do legislador e valorizar a nobre missão exercida com brilhantismo por nosso quase centenário tribunal administrativo especializado, que tem o mérito de permitir o desenvolvimento saudável e sofisticado de complexos temas de uma matéria jurídica, contábil e econômica tão profunda e sensível como a lide tributária.
O Carf exerce papel ímpar, que não poderia ser desempenhado por um Judiciário generalista. Com efeito, o próprio Judiciário tem seu trabalho aperfeiçoado pelas contribuições do Carf, pois quando chamado a realizar o judicial review de um caso que tramitou no conselho, tem o privilégio de ter em mãos o histórico de processo administrativo prévio com votos técnicos, elaborados por julgadores extremamente especializados, que dissecam a matéria com clareza e elegância.
[1] Ver a “Análise de Recorrência dos Votos de Qualidade no CARF”, elaborada pelo INSPER, e disponível em: https://www.insper.edu.br/wp-content/uploads/2020/05/Analise_recorrencia_votos_qualidade_Carf_11052020.pdf
[2] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal
[3] A história do Board of Tax Appeals, que evoluiu para Tax Court, está disponível no site da própria Tax Court: https://www.ustaxcourt.gov/history.html
[4] Disponível em: https://www.ustaxcourt.gov/judges.html