O contra-ataque ESG
JOTA.Info 2022-11-05
Não é tarefa fácil precisar exatamente quando o hoje intitulado “investimento ESG” virou parte da rotina do mercado financeiro e de capitais. Contudo, parece mais consensual que essa ideia voltou a ser mais valorizada a partir de 2019, quando a Business Roundtable resultou em uma declaração assinada por mais de 181 CEOs, em que se propôs o renorteamento do que se entende por função das empresas, de modo a valorizar os stakeholders em contraposição ao paradigma do shareholder supremacy. Em 2020, a catástrofe humanitária decorrente da pandemia de Covid-19 também intensificou políticas de investimento pautadas por critérios ambientais, sociais e de governança, colocando de vez esse tema na ordem do dia.
De lá para cá, o assunto ganhou muita atenção dos participantes do mercado, que buscaram se adequar ao crescente interesse por investimentos orientados aos padrões ESG, oferecendo produtos diversificados para atender a essa demanda. Por esse motivo, tais questões também viraram objeto de maior atenção e cuidado por parte das autoridades regulatórias, que se viram forçadas a se voltar às complexidades que emergiram do que parecia ser um novo momento do capitalismo mundial.
Por exemplo, na Europa, em 2022, foi divulgada a proposta de diretriz Corporate Sustainability Due Diligence and Amending Directive (EU) 2019/1937, que propõe que se imponha deveres às companhias com o fim de identificar e tomar medidas para remediar e prevenir ou mitigar impactos adversos sobre os direitos humanos e o meio ambiente. Apesar do lapso temporal, também vale a menção à Diretiva nº 2014/95/EU, que, já em 2014, trazia a obrigação de divulgação de algumas informações não financeiras relacionadas a questões ambientais, sociais e trabalhistas.
Nos EUA — sempre difícil falar de mercado de capitais sem citar essa experiência —, a Securities and Exchange Comission (SEC) não tardou a endereçar as mesmas preocupações. Em 2022, a autoridade colocou em audiência pública a Proposed Rule 17 CFR § 229.1503(a)(1)(i), em que passaria a exigir dos emissores de valores mobiliários a divulgação de determinadas informações ambientais – em especial, das emissões de gases estufa —, a fim de orientar investimentos fundamentados em tais padrões. A SEC também passou a realizar um escrutínio maior sobre investment advisers e fundos de investimento que adotam estratégias ou incorporam critérios ESG.
No Brasil, também se vislumbrou algumas iniciativas nesse sentido, ainda que tímidas. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) editou a Resolução CVM nº 59/2021, que passará a exigir em 2023 que as companhias apresentem, no formulário de referência, seus principais indicadores de aspectos ESG e os riscos atrelados. Em 2020 e 2022, a Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima) também divulgou dois guias com objetivo de auxiliar os gestores na compreensão das regras de identificação dos fundos sustentáveis, além de ter modificado o seu Código de Administração de Recursos de Terceiros para abranger a categoria de fundos denominada Investimento Sustentável (IS).
Esse texto, porém, não tem o objetivo de demonstrar como o investimento pautado por padrões ESG vem sendo endereçado pelas autoridades regulatórias. O que se busca pontuar é que, nesse mesmo movimento, também se pôde notar — e, ao que nos parece, cada vez com maior intensidade — determinadas iniciativas de caráter legal, de bastante relevo, voltadas a obstar um crescimento e consolidação da agenda ESG. Mais uma vez, com o perdão da repetição, o exemplo do mercado estadunidense se faz necessário.
O primeiro desses movimentos que se pode observar está na disputa em torno da (in)competência da SEC para exigir que emissores forneçam certas informações ambientais. Os argumentos são diversos — e se multiplicam por atores bastante diversos que se opõe à medida —, mas o que mais nos interessa nesse primeiro momento é visualizar que parte significativa dessas críticas se apoiam em uma eventual extrapolação do mandato do regulador, sob o entendimento de que a proposta converteria a SEC em um “agente regulador de gases de efeito estufa” — e não de valores mobiliários propriamente.
Como pano de fundo dessa posição está um recente precedente da Suprema Corte daquele país, em que se decidiu que agências reguladoras não poderiam atuar em questões de grande “significado econômico e político” sem autorização clara do Congresso (West Virginia v. Environmental Protection Agency). Nesse sentido, para essa corrente, a imposição de disclosure sobre emissões de gases estufa extrapolaria o padrão de materialidade, pedra angular das obrigações informacionais do mercado de valores mobiliários[1].
O segundo deles — um caminho até mesmo natural pelas características da própria agenda ESG — são as críticas voltadas a supostas violações de deveres fiduciários daqueles que investem recursos de terceiros orientados por esses padrões. Esse movimento aparece claramente em recente carta pública enviada por 19 procuradores estaduais ao CEO da BlackRock, advertindo que as políticas de investimento ambiental, social e de governança tendem a envolver violações da sole interest rule — que exige que administradores de recursos de terceiros atuem para maximizar os retornos financeiros dos investidores[2]. Como fundamento dessa reação estão alguns estudos que demonstram resultados financeiros desapontantes para investimentos orientados por padrões ESG[3].
Obviamente, esse artigo não tem o objetivo de dar um panorama completo do debate ou das críticas que se formam em torno da agenda ESG, mas pontuar alguns movimentos legais associados a essa tendência e que podem servir para calibrar a própria agenda, permitindo um eventual recálculo de rota de seus atores, com o fim de habilitar a sua expansão e consolidação enquanto novo paradigma.
Com efeito, não é de se descartar a hipótese de que as tendências que hoje se verificam em outras jurisdições possam ser replicadas no Brasil e representar novos desafios para Cortes e autoridades reguladoras nacionais, ainda que com as suas próprias particularidades — naturais em movimentos dessa natureza. Daí a importância de se entender minimamente a origem e características desse movimento.
[1] “The SEC Can’t Transform Itself Into a Climate-Change Enforcer”, veiculado no The Wall Street Journal em 15/09/2022. Disponível em: https://www.wsj.com/articles/securities-exchange-sec-climate-change-esg-major-questions-doctrine-west-virginia-v-epa-supreme-court-disclosure-rule-11663178488.
[2] “ESG Can’t Square With Fiduciary Duty”, veiculado no The Wall Street Journal em 06/09/2022. Disponível em: https://www.wsj.com/articles/esg-cant-square-with-fiduciary-duty-blackrock-vanguard-state-stree-the-big-three-violations-china-conflict-of-interest-investors-11662496552.
[3] Aneesh Raghunandan e Shiva Rajgopal, “Do ESG funds make stakeholder-friendly investments?”, in Review of Accounting Studies, 2022. Disponível em: https://link.springer.com/article/10.1007/s11142-022-09693-1.