Michel Gherman: ‘É preciso punir Bolsonaro e seus cúmplices’

JOTA.Info 2022-11-18

Passadas as eleições de 2022, o historiador Michel Gherman enxerga no horizonte um passo fundamental para a sobrevivência do Estado democrático de Direito no Brasil: a desbolsonarização das instituições e da sociedade brasileira.

“É preciso produzir uma coisa que o Brasil produz mal: punição e conhecimento dos crimes”, afirma em entrevista ao JOTA o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que completa: “É preciso punir Bolsonaro”.

Gherman, que acaba de lançar o livro “O não judeu judeu: A tentativa de colonização do judaísmo pelo bolsonarismo” (Fósforo), defende que deve-se “localizar os crimes produzidos pelo bolsonarismo e a partir desses crimes educar a população sobre o que efetivamente aconteceu”, a exemplo do que fez a Alemanha durante a desnazificação do país no pós-guerra.

Assista à íntegra da entrevista e leia abaixo os principais trechos da conversa.

 

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Em um tuíte recente você diz que é importante acontecer uma desbolsonarização do Brasil nos moldes da desnazificação da Alemanha dos anos 1950. Como que você enxerga isso acontecendo aqui?

Você percebe que não falei sobre a desnazificação que começa nos anos 1940 e 45 da Alemanha. A minha referência é em relação aos julgamentos que começam a ocorrer a partir de 1952, 53 na Alemanha. Aqui acho importante deixar claro que não estou comparando de maneira a equalizar o nazismo de 1941 com o bolsonarismo de 2018. A minha preocupação é a percepção de que houve um processo de normalização de uma perspectiva genocidária, extremista, racista, uma perspectiva de simbologia nazista que levou ao poder uma pessoa como Bolsonaro. Isso só foi possível por conta de um processo de aceitação dessas perspectivas dentro da sociedade brasileira.

Bolsonaro, antes de ser eleito, tinha elogiado Hitler, abraçado um sósia do Hitler, tinha utilizado referências típicas do nazismo – Brasil acima de tudo e coisas desse tipo. Bolsonaro depois de eleito começa a utilizar referências claramente nazistas. Isso tudo me leva a crer que, em algum sentido, a partir de 2017, 2018, a sociedade brasileira aceita de maneira mais aberta que essas perspectivas pudessem ser legítimas no Brasil, tal qual a sociedade alemã aceitou a partir de 1930, 31, 32 que essas perspectivas nazistas fossem aceitas na Alemanha. Agora, a sociedade alemã não imaginava em 31, 32 que a eleição de uma figura como o cabo Hitler levaria à possibilidade de um genocídio como ocorreu em 1941, 42, uma guerra mundial. Mas sem 1931 e 32 a gente não entende 1941 e 42.

A minha demanda por essa desbolsonarização tem a ver com o debate sobre o que aconteceu em 2017 e 2018, com a possibilidade de entendermos que elegendo um capitão como Bolsonaro, estaríamos dando a possibilidade de que essas perspectivas fossem absolutamente possíveis. Minha demanda por desbolsonarização e a comparação com desnazificação é no sentido de que é preciso educar, repactuar, discutir, é preciso de novos acordos.

É preciso que as pessoas percebam que tem linhas vermelhas na dimensão da liberdade de opinião, você não pode liberar um partido nazista no Brasil, você não pode liberar opiniões racistas e homofóbicas no país. Você tem que colocar essas questões de maneira clara, repactuando, dimensionando a necessidade de uma educação aberta, plural e inclusiva para que não haja outras possibilidades de outras perspectivas neofascistas como foi a do Bolsonaro. Acho que a repactuação da desbolsonarização tem a ver com o novo compromisso educativo de diálogo na sociedade brasileira.

Na Alemanha daquele período, dada a absoluta ruína moral e social que o nazismo deixou, parecia haver um consenso maior nessa direção de desnazificação. No Brasil de 2022, quem aponta aproximações entre o discurso bolsonarista e o nazista até ouve que está se banalizando Holocausto. As condições para essa desbolsonarização acontecer aqui não são mais difíceis visto que, para uma parcela da população, sequer aconteceu uma nazificação?

São porque a vitória contra o fascismo foi mais rápida do que na Alemanha nazista. Na Alemanha nazista, Hitler chegou ao poder em 1932, 1933, e se mantém no poder até 1945, quando ele se suicida e a Alemanha nazista é derrotada. Você tem um mundo em ruínas, não só a Alemanha. A descoberta de crimes inimagináveis naquele momento e uma necessidade concreta de reconstrução sem muito debate sobre isso.

No Brasil, acho que é preciso dizer que nós conseguimos derrotar o fascismo no voto. Isso é muito difícil, não é uma situação normal um empoderamento, a instrumentalização das instituições como ocorreu com o bolsonarismo, a utilização absolutamente descabida de verbas públicas em nome de um processo eleitoral, isso tudo acontecer e mesmo assim o candidato que faz isso tudo ser derrotado. Acho que aqui tem duas partes, a parte boa e a parte ruim. A parte boa é que a gente derrotou o bolsonarismo no voto; a parte ruim é que o bolsonarismo ainda não foi constituído, ainda não foi percebido, ainda não foi aceito como uma ruína moral pelos seus apoiadores.

Bolsonaro teve menos votos em termos relativos do que ele teve em 2018, o projeto do bolsonarismo diminuiu, mas a gente ainda tem uma camada muito grande de pessoas que percebe o Bolsonaro como alternativa legítima. Nesse sentido, voltando à sua primeira pergunta, é preciso entender que, além da questão da educação, além da questão da repactuação, é preciso produzir uma coisa que o Brasil produz mal: punição e conhecimento dos crimes.

É preciso entender que não cabe, em nome das futuras eleições e das futuras gerações, anistia. É preciso entender o que significou, por exemplo, você determinar que populações específicas, como o caso dos indígenas do norte do Amapá, dossem dizimadas na pandemia por um projeto absolutamente deliberado de não chegada de vacina a essas populações específicas. É preciso entender que o discurso do ódio produziu, sim, vítimas objetivamente, diretamente, é preciso entender que a retirada de verbas, por exemplo, a programas de pessoas com deficiência produziu sofrimento nessas pessoas.

É preciso localizar os crimes produzidos pelo bolsonarismo e, a partir desses crimes, educar a população sobre o que efetivamente aconteceu. É por isso que dentro desse processo de desbolsonarização, em nome da garantia que os processos democráticos substituam campanhas e candidaturas do tipo de Bolsonaro, é preciso que a população conheça e reconheça os crimes de Bolsonaro. É preciso que Bolsonaro e seus cúmplices sejam punidos, é preciso romper com o medo da punição no Brasil, é preciso romper com a mania de anistia aos criminosos nesse país, é preciso punir o Bolsonaro e os bolsonaristas.

Nos anos finais da ditadura militar, por exemplo, o Brasil escolheu uma via que foi a da “pacificação”, ao contrário de países vizinhos, que também viveram regimes ditatoriais e com, a redemocratização, iluminaram esses porões e julgaram torturadores. Aqui escolheu-se fechar os porões e seguir em frente. Você acredita que o Bolsonaro pode enfrentar algum tipo de punição mesmo tendo recebido 58 milhões de votos?

Bolsonaro recebeu 58 milhões de votos a partir de três setores que continuaram votando no Bolsonaro no segundo turno. O primeiro setor é o antipetismo, um setor importante da população brasileira, principalmente das classes médias urbanas, mas também das classes médias ligadas ao agro etc. A elite brasileira tem como projeto a ideia de que o PT, e não só o PT, mas um projeto político distributivo, um projeto político que intervém nas possibilidades de distribuição de renda, é negativo. Acho que esse projeto político, por exemplo, pode ser substituído por outro projeto político. O PSDB historicamente se apresentou dessa forma e não me parece que Bolsonaro seja essencial aqui.

O outro público votou no Bolsonaro por conta das benesses e das garantias que esse governo deu de manutenção de pagamentos mensais. Inclusive a gente já está começando a ver isso agora. O programa do Caco Barcellos, na TV Globo, já começou a mostrar a pontinha desse iceberg em que houve a utilização efetiva de verba pública para garantir voto da população. Também não acho que isso aqui seja um elemento que essencializa o Bolsonaro como candidato.

Você tem um terceiro grupo que não tem ideia do que ele representa nesses três elementos, o grupo bolsonarista ideológico, que é parte do livro. Acho que nesse grupo você tem quatro elementos: uma população racista, uma população a favor das armas, uma população ultraliberal e ultracapitalista e setores da extrema direita evangélica. Na melhor das hipóteses a gente está falando de 30% da população brasileira, não mais do que isso.

Acho que a partir de uma perspectiva de punição pedagógica, ou seja, de quem cometeu os crimes, os crimes que vão ser reconhecidos, vão ser conhecidos na sociedade, isso vai avançar, as pessoas vão saber disso. Acho que esses 30% da população brasileira vão ter que entender que é preciso avançar em direção a essa punição. Acho que temos que nos preocupar menos ou nos impressionar menos com os 50 e tantos milhões de votos e entender que, dentro desses votos, há votos de pessoas que elegeram Bolsonaro, que apoiaram Bolsonaro e votos de bolsonaristas. Os bolsonaristas são minoritários dentro desse setor, não me parece que devemos nos preocupar em não avançar em direção a essa punição pedagógica por conta dessa população, que também é preciso que reconheça os crimes cometidos por Bolsonaro.

Você cita no seu livro que o bolsonarismo articulou a ideia de que uma conspiração política produziu a “inclusão social” dos últimos anos e que esse processo deveria ser revertido. Você escreve que “a solução não seria apenas uma vitória eleitoral, e sim uma espécie de guerra de libertação política”. A derrota eleitoral de Bolsonaro exclui a guerra de libertação política ou não necessariamente?

Bolsonaro e o bolsonarismo, na verdade, a partir de Olavo de Carvalho, no projeto de construção de uma extrema direita relevante no Brasil, foi baseado, produziu a ideia de um conspiracionismo, ou seja, a ideia de que as mudanças que acontecem na sociedade brasileira não são mudanças produzidas por processos, processos complexos de idas e vindas, de avanços e retrocessos, processos que estimulam a entrada e saída de grupos específicos. O que o olavismo e depois o bolsonarismo produziram foi a ideia de que há uma conspiração, há setores externos, que não fazem parte da sociedade brasileira mas que aqui estão, que podem produzir essa mudança assim que eles quiserem. Acho que a gente tem um problema de longo prazo. Posso citar, por exemplo, a “escola sem partido”, a suposta ideologia de gênero. Essas questões todas se estabeleceram de maneira muito perene na memória coletiva brasileira e há setores da sociedade brasileira que funcionam acreditando efetivamente que há elementos externos que dirigem as mudanças do Brasil. Aqui a gente tem um tremendo problema.

Essa ideia dialoga com um artigo que publicamos recentemente no JOTA, do desembargador Alfredo Attié, do TJSP, doutor em filosofia, no qual ele traça justamente esse diagnóstico de uma elite que se insurge contra o pacto estabelecido pela Constituição de 1988. Se não é possível voltarmos ao estado de antes, e se é possível acreditar que com a eleição de Lula esse avanço social vai continuar, como repactuar a sociedade brasileira?

A sociedade brasileira vai ser repactuada a partir da eleição do Lula. Não é casual que a eleição do Lula foi produzida a partir de uma frente ampla, e uma frente ampla que fazem parte dela não aqueles que apoiaram de maneira concreta os avanços sociais de 2002 para frente, mas também aqueles que estavam comprometidos com a Constituição Cidadã de 1988. Ou seja, o que está na mesa é o debate entre os grupos anticonstitucionalistas e os grupos a favor da Constituição.

O que poderia ter se perdido aqui era efetivamente todos os esforços da Nova República e, com a eleição do Lula, e dessa frente que elegeu o Lula, a gente tem a possibilidade de repactuação de uma nova Nova República a partir dos elementos que possibilitaram a aprovação da Constituição de 1988 — diga-se de passagem, Constituição que o PT não apoiou, mas isso pouco importa. O que importa aqui é que a questão de 1988 possibilitou os avanços sociais a partir de 2001, 2002. Acho que a partir daí que vai vir a repactuação, vai vir a partir do Lula, a partir de uma política que convida para a política grupos que apoiaram eventualmente o Bolsonaro a partir de interesses específicos. Estou me referindo aqui, por exemplo, ao centrão. Que vai convidar para a política grupos que apostaram no antipetismo até as últimas consequências e que agora vão ser convidados de novo a construir uma política. Estou me referindo aqui ao PSDB.

Acho que é fundamental que a gente entenda que a política pós-Bolsonaro seja de reconstrução. A política de Bolsonaro foi de destruição. A repactuação vai vir com a construção, o governo do Lula não pode ser e não vai ser um governo petista, vai ser o governo de uma frente ampla que vai repactuar, retomar o caminho para a Constituição de 1988.

Diga-se de passagem, Constituição de 1988 que substituiu as estruturas legais da ditadura militar, estruturas com as quais Bolsonaro se identifica muito. Bolsonaro sequer é dos grupos de Geisel e Figueiredo, Bolsonaro é um representante típico do general Sylvio Frota. Bolsonaro é um contador de corpos, sequer é um general que produz política no sentido amplo, inclusive na ditadura militar. Bolsonaro é aquele homem que conta os corpos. A gente tem que romper com os contadores de corpos, com Brilhante Ustra e seus fãs. Temos que avançar em direção a uma repactuação, da recuperação da Nova República. Se a gente não avança nesse sentido, corremos o risco de uma retomada do autoritarismo no Brasil.

Esse ponto das ações afirmativas também ajuda a explicar por que uma parcela da comunidade judaica brasileira abraçou Bolsonaro. Ele acabou vocalizando o sentimento de um grupo que, visto como branco na sociedade brasileira, se sentiu ameaçado pelas políticas de reparação direcionadas a negros e indígenas. O subtítulo do seu livro é “A tentativa de colonização do judaísmo pelo bolsonarismo”. Essa tentativa deu certo?

Deu. Você tem setores da comunidade judaica, como você tem setores daquilo que o antropólogo Ronaldo de Almeida chama de setores da religião de Bolsonaro, que foram colonizados pelo bolsonarismo. Evangélicos, espíritas, católicos. E quando falo sobre colonização me refiro a um processo de apropriação e desapropriação. Dialogo aqui com autores como [Frantz] Fanon, [Giorgio] Agamben, Achille Mbembe, que discutem esse processo de colonização.

O processo de colonização só funciona quando você desapropria grupos específicos da sua, por assim dizer, identidade original, quando você diz basicamente que esses grupos não são verdadeiros, são intrusos. O que o bolsonarismo fez com o judaísmo – o judaísmo é importante somente por um motivo que já vou explicar –,  é dizer “olha você tem judeus falsos e judeus verdadeiros”. Os “judeus verdadeiros” estão dentro, os falsos estão fora. Estou me referindo aqui, por exemplo, a dentro da Hebraica e fora da Hebraica. “É preciso que vocês, judeus verdadeiros, denunciem os judeus falsos”. E como me refiro a um processo de construção de identidade fascista, isso acaba produzindo uma energia vital típica do fascismo, que acaba possibilitando a esperança dos que estão dentro de finalmente fazerem parte de uma maioria. E essa maioria, para ser efetivamente respeitada e aceita pela outra maioria, é preciso que ela denuncie os grupos minoritários.

Esse processo aconteceu dentro do judaísmo brasileiro. Você teve um processo de desapropriação de judeus, de exclusão, de desconversão de judeus do judaísmo e de conversão dos judeus ao bolsonarismo. Isso só aconteceu no Brasil. Inclusive, foi um fenômeno tipicamente brasileiro. Não aconteceu nos Estados Unidos, na França, na Hungria, na Alemanha, e acho que diz muito mais sobre o Brasil do que sobre os judeus.

No caso do Bolsonaro, isso existiu por três elementos fundamentais. O primeiro: porque Bolsonaro é um político muito próximo do nazismo, então se aproximar das maiores vítimas do nazismo é importante para não ser acusado de nazista. Bolsonaro utilizou os judeus da Hebraica para higienizar a sua imagem.

O segundo: Bolsonaro quis trazer os símbolos judaicos para si, e por motivos de construção do judaísmo imaginário era importante para ele trazer esses símbolos para o bolsonarismo. E o terceiro: para trazer a ideia de branquitude, a noção de Brasil branco, para dentro de uma comunidade historicamente discriminada, que são os judeus.

Bolsonaro foi bem-sucedido no caso dos judeus nesses três elementos. Ele produziu símbolos judaicos que foram utilizados pelo bolsonarismo, excluiu os judeus de fora e acabou se higienizando, acabou inviabilizando a ideia. Você falou anteriormente que setores da comunidade judaica chamam acusação de que Bolsonaro é nazista de banalização. Ele só conseguiu fazer isso porque trouxe judeus para o seu lado, e aí fica difícil acusá-lo de nazista. Acho que a colonização foi bem-sucedida, sim, um dos processos importantes do pós-Bolsonaro é a descolonização do judaísmo pelo bolsonarismo.