Responsibilização das plataformas digitais e a tokenização do consumo
JOTA.Info 2022-12-11
Vivemos uma era de mudanças socio-econômicas catalisadas pelo desenvolvimento tecnológico, e de busca por novos paradigmas jurídicos a esse novo cenário mais adequados. E, neste contexto um dos temas que mais tem despertado a atenção e cuidado dos operadores jurídicos reside o relativo à “criptoeconomia”. Ao utilizarmos tal termo queremos nos referir a atual era de tokenização da economia que, em última análise, significa o erigimento de uma infraestrutura de troca de valores mais adequada a uma sociedade digital.
Somos cada vez mais tecno dependentes[1], e tal digitalização da vida verso o avanço da economia tokenizada desafiam os sistemas jurídicos instituídos, e os atinge em suas bases. Afinal, a lógica em que construímos os sistemas legais têm por premissa sociedades de uma era tangível em que o poder coercitivo estatal assenta-se à ideia de soberania, atrelada por sua vez a de território, população e nação geograficamente delimitados. Já a intangibilização ladeada à tokenização da economia vêm acompanhada de sua globalização: cada vez mais nos relacionamos social e economicamente de forma transfronteiriça e digital. Nesse cenário, o direito também tem se tornado “global”, com a redefinição de estratégias regulatórias mais adaptadas a essa era, trazendo consigo novos atores normativos. Referimo-nos aos organismos internacionais e a seus relatórios e recomendações (softlaws), que a despeito de não terem força cogente, a importância política dos envolvidos em sua elaboração, assim como o mecanismo (dialogal) em que construídos, torna suas diretrizes altamente receptíveis pelos Estados. Daí que em um ambiente crescentemente global, o jurista há de necessariamente “olhar para fora”[2], a fim de identificar as tendências internacionais do assunto em análise.
Não poderia ser diferente quando pensamos em tributação no ecossistema de criptoativos. Poderíamos aqui escolher caminhar pela trilha dos questionamentos afetos a quais hipóteses de incidências estariam as operações com criptoativos sujeitas. Mas, é possível também enveredar para a direção de se buscar olhar o cenário macro a fim de identificar os principais pontos de fragilidades mapeados pela comunidade internacional e quais as eventuais propostas de adaptações normativas em pauta. Nossa opção foi pelo segundo caminho. E, a primeira pergunta a ser feita é se estamos a falar de fato de novos desafios?
Se tomarmos em consideração como paradigma ao nosso raciocínio o comércio de bens digitais atrelados a NFT`s (Non-fungible-tokens), e olharmos com mais atenção aos desafios por ele impostos aos sistemas de tributação sobre o consumo, perceberemos se tratar de “velhos problemas”. De fato, a questão de como se adaptar os sistemas nacionais de IVA à era da intangibilização da economia é discutida há mais de 20 anos[3], sendo de duas ordens as principais preocupações levantadas: (i) qual o critério a se utilizar para fins de atribuição de competência a um país determinado[4]; e (ii) como se garantir que os valores de IVA devidos de fato seriam vertidos ao país competente para recebê-los (enforcement). Nos focaremos nesse segundo, já adiantando que a tendência internacional tem sido colocar as plataformas digitais como sujeitas passivas[5].
Olhando-se para o consumo realizado no ecossistema de criptoativos, hoje são principalmente as plataformas que o viabilizam. O tema, aliás, está na ordem do dia, especialmente após o julgamento da ADI 0040214-33.2020.8.19.0000 pelo Tribunal do Rio de Janeiro, em que discutida a constitucionalidade das disposições da Lei Estadual 8.795/2020, que atribuíam aos marketplaces tanto as posições de contribuinte e/ou substituto ou responsável tributário no caso de operações com mercadorias digitais, quanto a de responsável no caso de mercadorias tangíveis. Em razão do julgamentos das ADIN`s 1945 e 5659 pelo STF, afastou-se a constitucionalidade dos dispositivos da legislação estadual que versavam sobre a responsabilidade das plataformas digitais no caso dos bens digitais.
A despeito dessa conclusão, o ponto que nos chama a atenção nessa parte do julgado fora dito an passan. Afirmou-se a compatibilidade dos dispositivos estaduais que estabeleciam a posição de contribuinte e/ou substituto tributário às plataforma digitais, no caso das mercadorias digitais, com a Lei Complementar 87/96. Trata-se de previsão em todo semelhante à sugestão, formulada pela OCDE, de se atribuir às plataformas o papel de sujeitos passivos principais dos impostos sobre consumo. A lógica em que assente as diretrizes internacionais tem por fundamento o sistema IVA, imposto único a tributar consumo de bens e serviços, e escora-se na presunção de que as plataformas, também contribuintes de IVA, “adquirem” os bens digitais e depois os revendem.
Ocorre que no Brasil os impostos sobre o consumo são repartido entre os vários entes tributários. E mais, ao olharmos para a Lei Complementar do ICMS, seja em seu art. 4º, que traz o conceito de contribuinte, seja em seu art. 6º que estabelece as condicionantes à escolha de substitutos tributários, não nos parece ser possível inferir tal compatibilidade. As plataformas, por serem prestadores de serviços de intermediação, não se encaixam no conceito de contribuintes do art. 4º, e ao não serem contribuintes do ICMS, ou mesmo “depositárias”, não seriam escolhas legitimas sequer como substitutas tributárias (art. 6º).
Já quanto às operações com bens tangíveis, entendeu a Corte carioca ser constitucional a responsabilização dos marketplaces pelo ICMS eventualmente devido pelos fornecedores. Entendeu-se que nesse ponto foram observadas as diretrizes da Lei Complementar 87/96 e do CTN (art. 128), ao atribuir a responsabilidade tributária apenas quando verificado o descumprimento, pelas plataformas, dos deveres de colaboração com a Administração Fiscal estabelecidos na própria Lei Estadual.
Ocorre que exame mais detido da legislação estadual nos revela que o diploma do Rio de Janeiro[6] delegou a normas infralegais a possibilidade de estabelecer tais deveres de colaboração que uma vez descumpridos abrem ensejo à responsabilização de terceiros não realizadores das hipóteses de incidência. Uma tal possibilidade nos parece ser contrária não só ao quanto previsto no art. 128 do CTN, mas também ao quanto estatuído no próprio art. 146, III, a da Constituição Federal: afinal, acaba por permitir, ainda que indiretamente, que diploma infralegal estabelece hipóteses de responsabilidade tributária.
Debater esse tema é em todo relevante, mormente se tivermos em consideração que a tendência de responsabilização das plataformas digitais tendem a ser replicadas no e-commerce de “segunda geração”. Eis a pretensão do presente artigo: um convite à comunidade jurídica para que possamos avançar no diálogo acerca do assunto.
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[1] Há estimativas de que os brasileiros passam quase 10 horas por dia na internet. Disponível em: <https://www.amper.ag/post/we-are-social-e-hootsuite-digital-2022-resumo-e-relatorio-completo>, Acesso em 27 nov. 2022.
[2] Sobre vide: UHDRE, Dayana de Carvalho. Breves notas sobre a proposta brasileira de regulamentação dos criptoativos à luz das experiências internacionais de Japão, Suíca, Mata e Liechtenstein. In: GOMES, Daniel et. al. (coord,). Criptoativos, Tokenização, Blockchain, Metaverso: aspectos filosóficos, tecnológicos, jurídicos, econômicos. São Paulo: Thompsons Reuters Brasil, 2022 p. 501-530; UHDRE, Dayana de Carvalho. Realidade Digital, Tributação Indireta e Tendências Internacionais: o que a blockchain tem (ou pode ter) com isso? In: CRAVO, Daniela Copetti et al. (coord.) Direito Público e Tecnologia. Indaiatuba: Editora Foco, 2022, p. 177-200.
[3] Desde a Conferência de Ottawa, de 1998, e tendo por pano de fundo o avanço do e-commerce, os países se debruçam sobre como se adaptar e harmonizar os sistemas jurídicos de IVA a fim de se garantir a tributação do comércio transfronteiriço de intangíveis em uma única jurisdição, bem como que se observe os princípio da neutralidade e livre-concorrência no mercado mundial, da eficiência, da efetividade e equidade, da certeza e simplicidade, e da flexibilidade. OECD(1998).ELECTRONIC COMMERCE: TAXATION FRAMEWORK CONDITIONS. A Report by the Committee on Fiscal Affairs; OECD (2001), Taxation and Electronic Commerce: Implementing the Ottawa Taxation Framework Conditions, OECD Publishing, Paris.
[4] A comunidade internacional optou pelo princípio do destino, atribuindo-se o imposto ao país em que estabelecido, residente ou domiciliado o adquirente dos bens.
[5] OECD (2019), The Role of Digital Platforms in the Collection of VAT/GST on Online Sales, OECD Publishing, Paris.
[6] Art. 17 §8º, III da Lei Estadual nº 8.795/2020.