Procuradoria ‘Suprema’ da República?
JOTA.Info 2023-03-31
O reposicionamento institucional do Supremo Tribunal Federal (STF) a partir do protagonismo das espetaculares ações criminais contra a elite política nacional — do mensalão à Lava Jato — não pode ser compreendido sem a consideração da atuação do procurador-geral da República (PGR) de plantão. Se a corte precisa ser provocada para o exercício do controle jurídico-criminal dos atos do presidente da República e integrantes do governo, é atribuição exclusiva do PGR fazê-lo.
À disposição acusatória de Rodrigo Janot, o PGR da Lava Jato, contrapôs-se a absoluta falta de iniciativa de Augusto Aras em relação a Jair Bolsonaro e seus asseclas, mesmo em face de sua agenda de enfrentamento à democracia e à Constituição. A disparidade das condutas costuma ser tributada à mudança no formato de indicação do chefe do Ministério Público Federal. De fato, em seu primeiro mandato, Lula inaugurou a tradição de acatar a recomendação da Associação Nacional de Procuradores da República (ANPR) para o cargo. Bolsonaro, ao contrário, retomou a fórmula constitucional que assegura grande discricionaridade ao presidente da República, já que o Senado desempenha burocraticamente sua atribuição de confirmar ou negar a indicação.
Sem ignorar o fato de que o processo de indicação se constitui importante dispositivo institucional de governabilidade que pode ser subvertido em desfavor do interesse público, a Lava Jato nos ensinou que se trata também de um mecanismo sensível quando o que está em jogo é a estabilidade democrática. À frente da Procuradoria-Geral da República, um franco atirador é tão pernicioso à democracia quanto um assoldadado.
A questão, portanto, acerca da necessidade ou não de mitigação do poder do presidente no processo de indicação do PGR – de que a lista tríplice da ANPR é apenas uma dentre várias possibilidades – deve ser considerada no bojo de uma agenda mais ampla de reformas de aprimoramento institucional que enfrente os problemas de desenho das competências da Procuradoria-Geral da República. Quer dizer: o reconhecimento de que incentivos contam na conformação do comportamento dos agentes estatais não pode estar limitado à análise acerca dos ajustes necessários ao processo de indicação, sob o pressuposto de que são dinâmicos, alterando-se no cenário pós-nomeação. O resguardo do interesse público no desempenho do cargo demanda ajustes mais profundos que aqueles que podem estar vinculados à escolha do PGR.
Nessas duas dimensões – acesso ao cargo e exercício das funções – há possibilidades que merecem espaço no debate público com vistas à ampliação do controle público sobre o desempenho do PGR. O imbróglio sobre a lista tríplice da ANPR é, portanto, só a ponta do iceberg, mas vale a pena começar por ele, pela capacidade de atração do interesse de críticos e opositores do governo e de mobilização estratégica dos próprios integrantes do Ministério Público.
Acatar à indicação da ANPR ao cargo de PGR não torna o processo necessariamente mais democrático, tampouco garante o controle público sobre a atuação do chefe do Ministério Público Federal. A ANPR é pessoa jurídica de direito privado, que representa os interesses de uma categoria. A eleição que organiza desde o início dos anos 2000 pode facilmente favorecer as estratégias de lobby dos membros de uma carreira profissional que integra a elite do funcionalismo público. É no mínimo discutível, do ponto de vista republicano, que uma associação privada amealhe tanta influência na dinâmica organizacional do Ministério Público que, como se sabe, tem impacto sobre sua agenda política.
A sinalização do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no sentido de que irá retomar – em toda sua extensão – o dever constitucional de indicar o PGR não o livra do escrutínio público, evidentemente. Aliás, sequer obstaculiza o diálogo com a carreira. À evidência de que uma nova dinâmica já se estabelece, surgem estratégias diversas por parte dos membros do Ministério Público Federal: há quem defenda a inclusão na lista de nomes que poderiam agradar o presidente, ampliando as chances de que, mesmo que não a obrigue, a eleição da ANPR não seja completamente desmoralizada. Por outro lado, há campanhas individuais que já se estruturam à margem da dinâmica eleitoral interna, estabelecendo diálogo diretamente com as lideranças políticas supostamente mais bem posicionadas para influenciar a decisão presidencial.
Reduzir o rechaço à lista tríplice à uma espécie de revanche de Lula em razão da Lava Jato é, no mínimo, improdutivo para o debate público. Ainda assim, é legítima a preocupação acerca dos efeitos negativos do modelo de indicação de ampla discricionaridade do presidente sobre o desempenho do PGR, especialmente no que toca ao controle criminal de seus atos. Uma medida que pode atender aos reclames de preservação da independência do Ministério Público é o fim da recondução (provavelmente associada à extensão do mandato, que atualmente é de dois anos). Inexistindo expectativa de ser reconduzido pelo presidente da República, o PGR está – em tese – menos propenso a um comportamento adesista que arrisca a autonomia funcional e atua contra o interesse público.
Nesse mesmo sentido, as medidas de quarentena já previstas pelo ordenamento jurídico brasileiro para que certos agentes estatais possam assumir atividades na iniciativa privada podem ser aprimoradas, estendendo-se as restrições também para a ascensão a novos cargos que não são preenchidos por meio de concurso público – sejam eletivos, sejam outros altos cargos públicos, inclusive aqueles de indicação direta do presidente da República.
Por fim, o pleno reconhecimento da alteração do quadro institucional de incentivos e restrições pela passagem do processo de indicação para o exercício efetivo do cargo implica na possibilidade de discussão acerca da revisão judicial das decisões do PGR, como lembrou Eloisa Machado (FGV-SP) em entrevista concedida a Cláudio Couto, em seu programa “Fora da política não há salvação”. Na esteira da reação do STF à inação de Aras em face do necessário controle criminal dos atos de Bolsonaro e seus aliados de primeira ordem, urge que se discutam mecanismos formais de revisão judicial das (não) decisões do PGR, nos moldes do que já é legalmente previsto para as instâncias inferiores do Ministério Público da União.
A sinalização de Lula de que não pretende ceder às pressões da ANPR para manter a tradição de escolha do PGR com base na lista tríplice pode se constituir como um primeiro passo do governo no sentido de avançar uma agenda positiva de reformas de aprimoramento institucional que beneficiem o controle público sobre o desempenho do Ministério Público Federal em favor da estabilidade democrática.