Preços de transferência: o fim do ajuste secundário
JOTA.Info 2023-04-03
No momento em que lemos este artigo, todos sabemos que no último dia 28 de dezembro a MP 1152 trouxe ao universo jurídico as tão esperadas novas regras de preços de transferência, segundo as quais as transações entre partes relacionadas deveriam observar – para fins tributários – os mesmos parâmetros de precificação estabelecidos entre partes independentes.
Neste mesmo momento, sabemos todos também que o deputado Da Vitória (PP-ES), nomeado relator, apresentou na última semana seu parecer preliminar sobre o texto de 28 de dezembro propondo, entre outras poucas coisas, a remoção do controverso ajuste secundário das novas regras. O texto foi aprovado na Câmara dos Deputados na última quinta-feira (30) e segue para votação no Senado. É uma vitória.
Vamos ao contexto. Na forma da legislação atual, em caso de diferença entre o preço praticado e o preço considerado como de mercado, identificada por meio da aplicação das fórmulas previstas na legislação, o contribuinte deverá realizar ajustes diretamente à base de cálculo do IRPJ e da CSLL, de modo a eliminar o efeito tributário causado pelo descumprimento.
Assim, caso o preço praticado em operações de exportação esteja abaixo daquele praticado entre terceiros, a diferença negativa deverá ser adicionada à base de cálculo dos tributos. Da mesma forma, caso o preço praticado em importações seja superior ao praticado entre partes não relacionadas, as despesas correspondentes a esta diferença positiva não serão dedutíveis da base de cálculo dos tributos.
A MP 1152 vai além, trazendo quatro possibilidades de ajustes para eliminar eventuais diferenças de preços entre as transações praticadas pelos contribuintes e as transações comparáveis:
- ajuste espontâneo: aquele efetuado pelo contribuinte diretamente à base de cálculo do IRPJ e CSLL, de modo semelhante àquele previsto pela legislação atual;
- ajuste compensatório: efetuado pelo contribuinte e sua(s) contraparte(s), até o encerramento do ano-calendário da transação, para ajustar o valor da transação. Aqui, temos mais do que um mero ajuste de base de cálculo, mas sim um ajuste efetivo de valor da transação;
- ajuste primário: efetuado pela autoridade fiscal para adicionar à base de cálculo do IRPJ e CSLL o valor das diferenças verificadas, como existe hoje. Tal ajuste é semelhante ao ajuste espontâneo em sua mecânica, com a diferença fundamental de ser realizado pela própria autoridade fiscal, mediante lavratura de auto de infração;
- ajuste secundário: efetuado pelo contribuinte (ou pela autoridade fiscal, em caso de ajuste primário) em decorrência dos ajustes espontâneo e primário, e objeto da presente análise.
O ajuste secundário busca expandir o alcance dos ajustes espontâneo e primário, ambos realizados diretamente na base de cálculo dos tributos em questão, de modo a alcançar também o próprio valor da transação praticada, tal como faria o ajuste compensatório.
Para tanto, a MP 1152 prevê que o ajuste secundário será considerado um crédito[1] concedido às partes relacionadas envolvidas na transação controlada, remunerado à taxa de juros de 12% ao ano e cobrados até o momento em que o crédito seja quitado entre as partes (não sendo cobrados apenas na hipótese em que a quitação ocorra em até noventa dias). Tais juros ficarão, naturalmente, sujeitos à incidência de IRPJ e CSLL.
O conceito é simples. Assumamos uma importação de US$ 100 com um preço parâmetro máximo de $80 e um ajuste espontâneo descrito acima de US$ 20. Considerado o crédito a ser registrado, teríamos também um ajuste secundário no mesmo valor (US$ 20). Este é o legislador apontando que não quer apenas um ajuste às bases tributárias, mas também um ajuste à operação comercial ou financeira.
Tal previsão naturalmente gera uma série de dúvidas a respeito de sua operacionalização e de seus reflexos.
A questão mais imediata seria entendermos se este ajuste seria registrável como ativo da empresa (contas a receber). Neste caso, a contrapartida óbvia seria a linha de resultado, reduzindo o custo da operação (ou aumentando a receita em caso de exportação, mas estamos aqui usando o exemplo mais comum, de importação).
Neste caso, teríamos uma redução de US$ 20 no custo paralelamente a um ajuste espontâneo também de US$ 20 – ou seja, um duplo efeito tributário. A MP 1152 não endereça o assunto, embora devesse considerar que, em caso de ajuste espontâneo, um ajuste de custo deveria ser isento. Na falta de tal disposição, a saída seria registrar o ajuste secundário em conta de lucros acumulados diretamente no patrimônio líquido.
Apesar destes contornos, é claro que o ajuste secundário corresponde a uma imposição da legislação tributária, e não um acordo fechado entre as partes. Havendo a incerteza de que a parte relacionada no exterior enviará o valor (afinal, não pactuou nada com a empresa brasileira), portanto, seriam os US$ 20 afinal registráveis como ativo? A dúvida é razoável para que auditores resistam em permitir o próprio registro contábil, independentemente da contrapartida em resultado ou patrimônio líquido[2].
Não sendo contabilizável, a provável saída seria um controle em ECF. Ainda assim, restaria a questão do registro de juros: havendo também incerteza sobre o reconhecimento desta remuneração, a saída estaria na mesma rota de registro na ECF. Neste caso, no entanto, teríamos adições periódicas às bases tributáveis pelo IRPJ e pela CSLL – provavelmente perpétuas se não houver qualquer pagamento ou compensação pela parte relacionada.
E se houver o efetivo recebimento dos US$ 20 na operação acima? Se o registo do recebível (e juros) não tiver sido previamente feito na contabilidade, o recebimento afinal imporá o registro de entrada de caixa em contrapartida a uma correspondente receita, gerando o duplo efeito que apontamos alguns parágrafos acima. Novamente, a saída aqui para evitarmos este efeito seria o registro de todos os valores de caixa em contrapartida a lucros acumulados no patrimônio líquido.
O ajuste secundário também contamina tributos paralelos ao IRPJ e à CSLL:
a) os juros a serem recebidos estariam sujeitos à incidência do PIS e da Cofins? Se eventualmente registrados nos livros contábeis, não haveria por que não tributá-los caso a empresa esteja sujeita ao regime não cumulativo.
b) na medida em que o ajuste secundário interfira de fato na operação comercial ou financeira por impor o recebimento do caixa correspondente, seria justo que ele se refletisse nos tributos relativos às importações de bens tangíveis. Se os US$ 80 no exemplo acima são considerados valor de mercado (arm’s length) – e os US$ 20 são reembolsados –, por que não se perceber que este valor de mercado seria também aquele base para incidência de PIS-Importação, Cofins-Importação, IPI e II[3]?
c) por que não usarmos o mesmo raciocínio para importações de serviços e/ou intangíveis? Conceitualmente, o contribuinte também deveria ter direito ao PIS-Importação, Cofins-Importação e CIDE incidentes sobre os $20 recebidos de volta[4].
Esses desencontros de bases listados em b) e c) já são discussão vigente em função da Lei 9.430, mas a ideia de um ajuste secundário evidentemente reforça a questão e evidencia as distorções trazendo à mesa também o potencial dilema de a).
A Receita Federal não embarcará nessas discussões, e no último dia 24 de fevereiro formalmente reassegurou por meio da Instrução Normativa 2.132 a posição de que os ajustes e conceitos contidos nas regras de preços de transferência possuem independência em relação aos demais tributos e operações[5].
O interessante é que nesta manifestação ela regulou os ajustes espontâneo, compensatório e primário para 2023, sem fazer qualquer referência ao secundário. Parece que mesmo ali já não se percebia que este ajuste teria força para seguir.
Considerando todas essas questões, a aprovação da retirada dos artigos 17, IV e 19 pela Câmara dos Deputados vem como uma boa notícia ao contribuinte, como dissemos acima. Considerando a tecnicidade da matéria e a forma como a aprovação foi feita naquela casa legislativa, não se espera que isso venha a sofrer resistências ou receber alterações no Senado.
É importante observar que esta boa notícia não se alinha ao texto descrito nas orientações da OCDE[6], que entende que o ajuste secundário é uma forma complementar de se recompor a situação que teria existido sem a alegada evasão fiscal. E, claro se a ideia é que nos alinhemos às regras internacionais, não faria sentido escolhermos os itens que nos convêm.
A nosso ver, no entanto, esta posição da OCDE não considera a complexidade (e, assim, os efeitos) da teia tributária brasileira, com tributos sobre operações, lucros, receitas. No universo OCDE, não existem CIDEs em remessas por serviços ou PIS/Cofins sobre a importação de mercadorias e seus efeitos adversos.
A retirada do ajuste secundário não alterará a essência do que se pretende com as novas regras. Ainda que venha a tirar um pouco do alinhamento pretendido, ela evitará controvérsias na contabilidade, discussões regulatórias (qual seria o código cambial de entrada no país do caixa decorrente do crédito, se não houve saída como tal?), efeitos tributários potencialmente indesejados e eventuais autos de infração ainda mais milionários que os atuais. Ponto para o contribuinte.
[1] Artigo 19. (…) I – o valor ajustado será considerado como crédito concedido às partes relacionadas envolvidas na transação controlada, remunerado à taxa de juros de doze por cento ao ano; (…)
[2] O Reino Unido, por exemplo, não considera o registro contábil em seu ajuste secundário: “no caso em que um ajuste secundário é necessário, é improvável que a contabilidade seja ajustada para refleti-lo a menos que o impacto do ajuste secundário seja tal que a contabilidade não demonstre uma visão verdadeira e justa. Assim, se o ajuste secundário resulte em um empréstimo presumido entre as duas partes, tal empréstimo presumido e qualquer juro dele derivado será provavelmente refletido nos cálculos tributários e não na contabilidade.” Item 2.22 do “Introduction of secondary adjustments into the UK’s domestic transfer pricing legislation”, disponível em https://assets.publishing.service.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/file/524598/Introduction_secondary_adjustments_into_UKs_domestic_transfer_pricing_legislation.pdf
[3] Não falamos aqui sobre o ICMS porque este tem nível estadual.
[4] Da mesma forma, aqui não se fala do ISS, cobrado em nível municipal.
[5] O lado positivo desta posição está no fato de que esta independência também não deve ser usada de forma negativa. Assim, ainda que se reconhecesse uma operação de crédito, ela não deveria gerar a incidência do IOF Crédito à alíquota máxima de 1,88% e do IOF Câmbio à alíquota de 0,38%.
[6] OECD Transfer Pricing Guidelines for Multinational Enterprises and Tax Administrations, Capítulo IV, C.5.