Empregador pode obrigar empregado cristão a trabalhar aos domingos?
JOTA.Info 2023-04-19
A Suprema Corte dos EUA ouviu nesta semana os argumentos orais do caso Groff v. DeJoy, no qual um empregado cristão do United States Postal Service (a empresa de correios dos EUA, estatal como a nossa) alega que foi obrigado a pedir demissão por não concordar em trabalhar aos domingos, dia santificado para ele.
Gerald Groff foi contratado para trabalhar em uma agência postal de uma sonolenta comunidade rural no interior da Pensilvânia, em 2012. Ele foi admitido para cobrir folgas de outros carteiros, motivo pelo qual constava do seu contrato a necessidade de flexibilidade de horário, incluindo fins de semana. No início, nunca era chamado para trabalhar aos domingos, pois o correio dos EUA não costumava fazer entregas nesse dia. Porém, a partir de 2013, a empresa estatal americana fez um acordo com a Amazon, para entregar suas encomendas em certos lugares afastados do país somente cobertos por ela. O acordo foi importante, pois o U.S. Postal Service vem enfrentando dificuldades financeiras há anos.
Como era de se imaginar, após o acordo com a Amazon, Groff passou a ser convocado para o trabalho quase todo o domingo. Ele reclamou junto à empresa que segue uma religião cristã evangélica de forma ortodoxa, a qual obriga a guardar o dia santo. A Lei dos Direitos Civis (Civil Rights Act, de 1964) determina que para evitar discriminação religiosa, em casos que tais, o empregador deve promover uma “acomodação razoável”, desde que esta não resulte em “dificuldade excessiva” à administração empresarial.
A empresa de correios alega que, ao ser notificada do fato por Groff, concordou em que ele somente iniciasse a jornada após o horário da missa que frequenta, facultando-lhe, ainda, negociar diretamente com outros empregados a troca de turno. Groff alega que isso foi insuficiente para respeitar sua crença e que nem sempre conseguia trocar o turno com colegas. O empregador sustenta que Groff faltou em vários domingos sem avisar e em certas ocasiões o próprio diretor da agência precisou substituí-lo. Ainda de acordo com a empresa, a recusa do empregado em trabalhar aos domingos criou um ambiente ruim de trabalho, pois os demais empregados acreditavam que ele estava tendo um tratamento privilegiado pela administração.
O problema deste julgamento é que a Suprema Corte nunca definiu de forma muito clara o que seria a “dificuldade excessiva” para o empregador que precisa “acomodar” a crença religiosa do empregado. No único precedente que regula o assunto, Trans World Airlines v. Hardison (1977), o tribunal entendeu que a acomodação poderia ser feita se o custo para o empregador fosse “mínimo” (o que também é de grande subjetividade). E, neste caso, a decisão foi, pelo voto da maioria, contrária ao empregado.
Embora alguns liberais simpatizem com a tese do reclamante Gerald Groff, por ser um caso de proteção aos trabalhadores diante do ritmo de trabalho insano imposto por corporações como a Amazon, muitos temem que a decisão possa ser mais um cavalo de troia na tendência da atual composição conservadora da corte em excetuar a crença religiosa na aplicação da ordem civil de proteção a minorias, como nas situações em que prestadores de serviço se negam a fornecer serviços a homossexuais, ao argumento de que isso viola princípios de seu credo. No ano passado, por exemplo, a Suprema Corte entendeu que um serviço social da Igreja Católica, seguindo sua doutrina religiosa, pode se recusar a encaminhar crianças para adoção por casais homoafetivos, sem com isso sofrer boicote financeiro da municipalidade da Filadélfia (Fulton v. City of Philadelphia, 2022).
Seja como for, independente das batalhas ideológicas, o caso é importante para se refinar melhor sob que condições se deve equilibrar a liberdade religiosa e o trabalho na sociedade capitalista, em momento de clara intensificação da exploração do trabalho provocada pelo comércio online, no mundo todo, sendo evidência disso, aqui no Brasil, as inúmeras portarias editadas no governo Bolsonaro que liberaram o trabalho aos domingos em praticamente todas as atividades econômicas.
Na jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho (TST), recordo de apenas um caso que foi julgado a respeito do tema, em 2015. Um empregado de uma empresa estatal de energia do Rio Grande do Norte que cumpria plantões, incluindo sábados, há mais de 28 anos, converteu-se à Igreja Adventista e solicitou à sua chefia mudança de turno, o que lhe foi negado. Em voto do ministro Hugo Carlos Scheuermann, a Justiça do Trabalho entendeu que o indeferimento do pedido era desarrazoado, já que a alteração pretendida não seria demasiadamente onerosa para a empresa, que poderia preservar a convicção religiosa do empregado apenas mudando a escala. Há algumas outras poucas decisões de TRTs, mas os julgamentos tem sido casuísticos e de pouca coerência. Como nos EUA, ainda não desenvolvemos em nosso país critérios — legais ou jurisprudenciais — mais objetivos para a solução deste tipo de conflito constitucional.