Como lidar com incertezas em contratos na nova Lei de Licitações?
JOTA.Info 2023-04-23
O gerenciamento de riscos não é nenhuma novidade no âmbito do gerenciamento de projetos e a matriz de riscos é uma de suas ferramentas. A nova Lei de Licitações e Contratos (Lei 14.133/2021) tende a consolidar o gerenciamento de riscos contratuais, já que passou a permitir que qualquer contrato contenha uma matriz de alocação de riscos (e, em alguns casos, tornou seu uso obrigatório).
Em um breve resumo, a matriz de alocação de riscos (que é um passo a mais em relação à simples “matriz de riscos”) é uma cláusula contratual que identifica situações que podem afetar o contrato. É uma forma de dar segurança à execução contratual e que permite a distribuição de responsabilidades entre os contratantes acerca dos riscos identificados.
O problema é que, ainda que existam bons parâmetros e procedimentos – e ainda precisaremos consolidar quais são eles – para a adequada formulação de uma matriz de alocação dos riscos contratuais entre os contratantes, toda previsão tem certas limitações. Na verdade, os próprios limites da cognição humana em relação à previsibilidade de eventos incertos em um contexto de complexidade já representam, por si, uma fragilidade da matriz de riscos.
É aqui que o que chamaremos de “problema do cisne negro” ganha especial relevo.
Como é de conhecimento geral, Nassim Nicholas Taleb[1] chama de “cisne negro” o evento fora da curva (que foge das expectativas ordinárias), que tem um extremo impacto, mas que é imprevisível de forma prospectiva. No entanto, o mais interessante para o ponto aqui abordado é que a terminologia adotada pelo autor surgiu do fato de que, até a descoberta da existência de cisnes com plumagem negra na Austrália, as pessoas estavam certas de que todos os cisnes eram brancos.
Trata-se de um exemplo perfeito para demonstrar o quanto podemos criar vieses cognitivos em razão da análise de padrões passados[2]. Ele revela uma inerente condição humana: somos ótimos na percepção de padrões, mas incapazes na previsão de fugas do padrão esperado.
Em retrospectiva, todo risco pode ser uma certeza. A análise do passado permite identificar a cadeia de eventos que levaram à concretização daquele evento considerado como risco e que afeta a execução contratual. Essa cadeia organizada, contudo, pode existir apenas em retrospecto.
Essa mesma problemática que levou à criação da terminologia de Taleb pode ser vista no processo de identificação de riscos. É natural que toda análise de riscos faça uso de dados históricos sobre a execução de determinado objeto contratual para identificar os riscos potenciais. A experiência com projetos anteriores é, inclusive, valorizada por normas como a ISO 31001 e outros padrões internacionais para gerenciamento de riscos, como o PMBOK.
Ainda assim, pode-se dizer que é necessário conhecer o passado para prever razoavelmente bem o futuro. Os dados estatísticos são um bom indicativo dos riscos associados a determinados empreendimentos, mesmo que não sejam perfeitos. Talvez seja o mais próximo que temos de uma capacidade aceitável de previsão de eventos incertos.
Aqui vale pontuar que o gestor público nem sempre terá acesso a dados estatísticos bem coletados e formulados. Esses dados variam de acordo com o objeto contratual e podem variar até mesmo em relação a um mesmo objeto, em razão de diferentes locais de execução do contrato. Nesse sentido, um mesmo objeto contratual pode admitir diferentes matrizes de riscos, a depender dos fatores específicos incidentes sobre cada contrato.
De qualquer maneira, a questão principal aqui é: como identificar riscos que fogem do padrão quando apenas os padrões passados estão disponíveis para análise?
A resposta é que o problema do cisne negro acaba sendo, de certa forma, inevitável, ainda mais com contratos de longo prazo. O que é necessário é que existam formas de fazer com que a matriz de alocação de riscos seja suficientemente dotada de plasticidade para reagir adequadamente a riscos fora da curva.
É necessário, assim, reconhecer o problema e pensar em respostas adequadas a ele.
Inclusive, uma proposição que já apresentamos para enfrentar o problema do cisne negro foi a adoção de uma matriz de alocação de riscos dinâmica[3], que possa ser adaptada e melhorada durante a execução contratual, dentro de parâmetros previamente estabelecidos, de acordo com as necessidades decorrentes do monitoramento de riscos.
[1] TALEB, Nicholas Nassim. A lógica do Cisne Negro: O impacto do altamente improvável. Tradução: Renato Marques de Oliveira. São Paulo: Objetiva, 2021.
[2] Uma excelente abordagem do tema pode ser vista em TEIXEIRA JÚNIOR, Flávio Germano de Sena; NÓBREGA, Marcos; CABRAL, Rodrigo Torres Pimenta. Matriz de riscos e a ilusão da perenidade do passado: precisamos ressignificar o conceito de tempo nas contratações públicas. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, Belo Horizonte, ano 19, n. 74, p. 59-82, jul./set. 2021.
[3] ALBUQUERQUE, Caio Felipe Caminha de. Contratos administrativos: teoria e prática na Nova Lei de Licitações. Belo Horizonte: Fórum, 2023, p. 70.